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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - SANTOS EM... - BIBLIOTECA NM
El Brasil (A)

Clique na imagem para ir ao índice da obraUm país recém-entrado no regime republicano, passando por grandes transformações políticas, econômicas e sociais, sob o império dos oscilantes preços do café. Assim é o Brasil encontrado pelo jornalista argentino Manuel Bernárdez, que em 1908 vem tentar decifrar o que aqui ocorria. É dele a expressão "Metrópole do café", com que alcunhou a capital paulista [*]. Sua obra El Brasil - su vida - su trabajo - su futuro foi editada na capital argentina, em castelhano, sendo impressa em Talleres Heliográficos de Ortega y Radaelli, Paseo Colón, 1266, Buenos Aires.

O exemplar pertencente à Biblioteca Pública Alberto Sousa, foi cedido em maio de 2010 para digitalização, através da bibliotecária Bettina Maura Nogueira de Sá, a Novo Milênio, que apresenta nestas páginas a primeira tradução integral conhecida da obra para o idioma português - páginas V a XXXII:

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El Brasil

su vida - su trabajo - su futuro

Manuel Bernárdez

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SENSAÇÕES DE RIO DE JANEIRO - Vista panorâmica da Enseada e Botafogo, por cuja borda se desenvolve a Avenida Beira-Mar, orlada de jardins – sobre a seda da água, os ouros do céu do trópico, em contorno os montes de esmeralda – domina no conjunto o Corcovado, atalaia do mar

Imagem e legenda publicadas na página III-A. Clique <<aqui>> ou na imagem para ampliá-la

 

O Brasil e o Prata

(Notas de um fim de viagem, para um princípio de livro)

Em fins do ano passado, El Diario de Buenos Aires, que em várias ocasiões me confiara a tarefa de informar ao público argentino acerca de questões atinentes às suas grandes preocupações morais, à marcha de seus progressos no interior e de seus interesses na vizinhança geográfica, me propôs uma viagem jornalística ao Brasil.

Dizia-se que aquele país cambiava rumos em suas velhas orientações de cordialidade continental, armando-se com pruridos imperialistas, o qual dizia-se também que importava especialmente à República Argentina. Isto criava a atualidade jornalística do Brasil, e aconselhava aos diários o estudo de seus recursos e seus meios, de seus conflitos e harmonias internos e do pensamento dominante em seus homens consulares, para exprimir do conjunto a verdade resultante.

Mas tal estudo se fazia difícil e levado a erros, pelo singular desconhecimento em que nos achávamos todos sobre o país vizinho. A necessidade de saber o que era, o que pensava e o que podia, nos surpreendia em uma curiosa falta de certezas e até de dados a seu respeito – e isto dava margem às mais extravagantes conjeturas. Era evidente a conveniência de ir observá-lo por dentro, para conhecer suas idéias e seus homens, seu verdadeiro estado orgânico, seu trabalho e seus elementos de ação na paz, que são os que dão nervo e vida à ação na guerra, quando esta impõe sua fatalidade. Para tal fim, aceitei a missão, sobre o amplo conceito de ver segundo minha consciência, e expor o visto e observado, segundo entenderam meus olhos e meu espírito a verdade essencial.

Daquela viagem se originou este livro, formado em parte principal com as correspondências enviadas a El Diario desde Rio, São Paulo e Minas Gerais, se bem tudo isso havia sido lastreado com ampliações que não cabiam no estilo jornalístico, além de alguns capítulos novos, escritos para completar a fisionomia de certos fatos e facilitar o domínio visual do conjunto, com um discreto alargamento das perspectivas.

 


OS PALÁCIOS DO OCEANO - Atrativos para o turismo platense de inverno - O Araguaya, como seus gêmeos Avón e Aragón, com seus cascos enormes, conservam na marcha uma estabilidade de terra firme, convertendo a viagem ao Rio de Janeiro num prazer contínuo, donde corpo e alma descansam com delícia, gozando impunemente o conforto da vida, a boa mesa e o encanto do céu e do mar; e a intervalos, a vista da costa, que atrai e tranqüiliza...
Imagem e legenda publicadas na página VI-A da obra

*

O estudo realizado, segundo se verá nestas páginas, devia mudar desde as primeiras indagações sua índole presumida. Ia para ver possibilidades de guerra, e achei um povo de paz, preocupado intensamente, como os nossos do Prata, na preparação de seu destino, movendo-se por dinamismos de pensamento e artes de trabalho. O tema bélico caía das mãos; entretanto, outro tema de não menos autoridade se impunha: o tema do Brasil mesmo, o tema daquele grande país, para nós pouco menos que ignorado, daquela força em potência que inicia desmedidos desdobramentos, procedendo com arranjos a um ritmo que revela a intensidade de seus meios mentais e que é fácil de destacar com a simples observação da obra realizada por cada presidência das seis que manejaram a nação desde o nascimento da República.

De fato: depois de Deodoro da Fonseca, soldado de alma brava e simples, que os autores civis da revolução republicana elegem como braço da idéia, no desejo de evitar à sua pátria o horror de uma tragédia regicida ou uma cruenta guerra civil, vem Floriano Peixoto, que com mão de ferro abate e extingue a anarquia e a revolta reacionária, impondo definitivamente em todo o país a autoridade central, sob a forma republicana. Segue-se Prudente de Morais, já um civil, e sobe com ele o civilismo à alta direção da República.

A evolução não podia ser mais eficaz nem mais rápida. Dois governos militares, com um período de ditadura, haviam dado pé a certas tendências até o militarismo sectário – mas o primeiro governo civil que tomou o poder acabou com elas. Para isto teve que fechar por tempo indefinido a Escola Militar, e se fechou; teve que destruir a esquadra, e se desfez. O primeiro era o primeiro – e o mérito histórico daqueles homens foi saber ver com claridade na confusão dos sucedidos e os dias, e proceder para assegurar a suprema conquista com abnegação e energia.

A Morais sucede Campos Salles, que havia já limpado o horizonte político – mas na administração e nas finanças, o caos. O presidente não vacila. Procede neste sentido ao saneamento e à organização, com a mesma bravura metódica e inflexível empregada por seu antecessor para decapitar o militarismo e assegurar a estabilidade e o prestígio institucional dos governos. Os gastos são cortados a machadadas, em uma poda inexorável e violenta. As obras públicas são suspensas totalmente. O sacrifício é imposto a toda a nação, dando exemplo o governo. Põe-se em ação um tratamento salvador que não se detém ante nenhuma crueldade necessária. Campos Salles não fez mais que isso; mas com isso preencheu seu período fecundamente, e entregou o governo a Rodrigues Alves com prestígio financeiro, com um severo regime administrativo e com rendas acumuladas para poder começar a refazer materialmente o país, atrasado pela rotina e devastado pela guerra.

Rodrigues Alves respondeu à exigência dominante de seu período e fez quanto se verá nas crônicas deste livro: portos, uma metrópole nova, uma nova saúde e um novo crédito para sua nação. E fez outra coisa, que respondia à idéia de levantar o nível exterior do Brasil, e que lhe agradecem de coração seus concidadãos: colocou Rio Branco na chancelaria da União, conseguindo assim que as obras materiais de progresso fossem realçadas e completadas por uma ação diplomática superior, capaz de concorrer, em prestigioso estilo, ao fim de criar um novo conceito do Brasil ante o mundo civilizado.

Por trás de Rodrigues Alves, que teve um tato genial para eleger seus colaboradores, estava uma obra enorme sendo concluída em suas linhas fundamentais, liquidamente concretizada nesta síntese: preparar o Brasil para que abrisse suas portas ao trabalho europeu, mostrando que estava pronto para recebê-lo em saúde e acolhê-lo com sérias perspectivas de prosperidade, localizando-o aos milhões em seu território, rico, variado, imenso. Assim foi deixado o Brasil pelo grande presidente Rodrigues Alves.

E o presidente atual, consciente disso e do dever que lhe incumbia preencher, não perdeu um dia em pôr-se na tarefa, seguindo o vasto programa nacional. Recebia o território já em aptidão de ser povoado sem risco e com proveito por todas as raças úteis da terra; em conseqüência, ele formulou, desde que chegou ao governo, e fez sancionar, uma lei de "povoamento do solo", em cujo amplo articulado, inspirado no espírito liberal dos novos tempos, estão previstos todos os incentivos para atrair o homem e todas as garantias para inspirar-lhe fé e abrir-lhe vias de prosperidade.

O povoamento do solo e a vinculação dos Estados  entre si por meio da ferrovia, com fins imediatos de desenvolvimento econômico e os altos objetivos de coesão nacional, tal é o programa do presidente Pena, para cuja realização buscou e encontrou um colaborador de singular eficácia no jovem ministro de Obras Públicas, doutor Miguel Calmon, cuja energia ilustrada e metódica vai levando avante a múltipla e enorme tarefa, organizando a propaganda de atração e os sistemas de radicação do imigrante, o fomento do trabalho nacional, o progresso dos processos agrícolas e pastoris, lançando novas linhas férreas através de serranias e "sertões", em busca das fronteiras, para formar, ao mesmo tempo que o sistema circulatório do comércio e da vida, um novo vínculo da nacionalidade.

E segue conjuntamente, este ministro de sangue francês, a iniciada empresa de construir grandes portos, que lhe deixou planejada seu antecessor, Lauro Müller, de autêntica estirpe teutônica. Todos ali, de qualquer procedência e qualquer cruzamento étnico, se seguem, se continuam e se completam, dando um verdadeiro exemplo de patriotismo altruísta e solidário, não comum nas democracias novas, onde cada governo, cada ministro, normalmente acredita que é questão de honra abandonar ou desfazer o iniciado por seu antecessor, para mostrar que tem idéias próprias – de onde resulta um lamentável tempo perdido em fazer e desfazer – sendo verdade que amiúde prova maior altura moral o saber sobrepor-se às sugestões do amor-próprio e tomar a tarefa de onde a deixa o que cessa, para que não haja no progresso evolutivo da nação nem moeda tirada nem hora perdida.

*

Esta forte coesão no propósito caracteriza em meu sentir, de acentuada maneira, os governos republicanos do Brasil, que em tal sentido poderiam se oferecer como um modelo à América do Sul. Considerando sua obra, pode-se afirmar em sua honra que os estadistas que até agora presidiram os destinos da União não pensaram em sua glória individual; não serviram seus interesses nem suas vaidades.

Daí essa fecunda coerência em sua ação, desenvolvida em ciclos firmes e sucessivos, em que o trabalho e o temperamento de homens diversos, de distintas origens, com afinidades afetivas e até com princípios e credos diferentes, parece, contemplada na perspectiva de sua progressão, o labor de um só. É que cada um teve o talento e a abnegação necessária para responder à exigência dominante de seu momento histórico, mantendo entretanto insuspeitável a dignidade do cargo e a alta imparcialidade de sua função federal, especialmente demonstrada em um invariável respeito à autonomia dos Estados.

Um país que tem homens e ambiente para se manejar assim não precisa "porfirizar-se" (N.E.: pulverizar-se) nem se jogar nos braços do acaso. Renovará as forças dirigentes sem mudar os caminhos nem desperdiçar nenhum útil esforço consumado. Tal é o verdadeiro espírito das instituições republicanas; e sua observação no Brasil é fácil para qualquer temperamento desapaixonado, que se sobreponha às sugestões do meio em que lutam os partidos e considere os fatos em seus grandes conjuntos e em suas já palpáveis conseqüências.

*

Pueril seria pensar, por isso, que tudo está feito no Brasil no sentido de uma boa educação democrática. Quem lá vá e se mescle às paixões faccionárias, ou busque em jornais e clubes seus elementos de juízo, sentirá estremecimentos interiores, crispações e espasmos, âmagos de conflitos violentos, conjeturas pessimistas e temerárias.

Mas já disse o Evangelho que pelo fruto se conhece a árvore. E o fruto da jovem democracia brasileira é esse que fica brevemente esboçado: uma sucessão regular e prestigiosa de governos, cada um dos quais cumpre uma tarefa concreta, que permite distinguir nitidamente os seis períodos pela obra contida em cada um deles, classificando, primeiro, ao braço que encarnou a idéia da República; logo, ao cérebro austero e ao punho forte que a consolidou; em seguida, ao que afirmou a supremacia civil desvelando os pruridos da casta militar e elevando ao seu nível a dignidade e o prestígio do governo; detrás deste, ao que organizou o país no administrativo e financeiro, restaurou o crédito e abriu canais seguros à renda; seguindo-se, destaca o que aproveitou essa força acumulada para derrubar a dupla muralha chinesa da insalubridade e do isolamento, dotando o país de uma grande capital moderna e preparando-o para que possam ir povoá-lo os povos emigrantes; e enfim, o que, atualmente, está na tarefa de povoar a vasta terra, já sanada – e governada, no político e no econômico, por leis de justiça, de tolerância e liberdade.

Nenhum presidente até agora deixou de responder à exigência de seu momento, nem foi inferior à obra. Daí essa considerável soma de civilização positiva que o Brasil pode já creditar ao haver de seus dezoito anos de existência republicana.

*

Quanto aos elementos essenciais à fundação de organizar os poderes, a observação lança também estes saldos: abaixo, um povo de uma disciplina acentuada, humilde, laborioso e benévolo, ao mesmo tempo em que com grande amor próprio nacional, com um sentimento pátrio muito suscetível e desperto – e acima, uma classe ilustrada solidamente, muitos homens de primeira linha, com uma larga herança de cultura -, muitos homens novos provando-se e descolando nas tarefas do parlamento e do governo, e todos eles temperados no fogo purificador da todavia recente propaganda republicana, que preparou a queda do Império e que acaudilhou sob seu ensino as mais ricas inteligências e os mais fortes temperamentos do Brasil.

Está, pois, aquele país, como estavam os do Prata, aos vinte anos de sua independência: usando no governo suas melhores entidades patrícias, as que haviam sublimado seu patriotismo juvenil no austero sacerdócio da propaganda pela liberdade. Mas tem em seu favor a paz ambiente, o caminho livre daquelas gigantescas lutas pela independência continental, que absorveram e devoraram a vida de nossos libertadores; e estão igualmente livres do período caótico que, em sua dolorosíssima aprendizagem, deveram atravessar estas democracias precursoras. De sorte que os varões formados lá, na luta de idéias contra o velho regime imperial, podem empregar todo seu altruísmo, seu saber e seu prestígio, em organizar a República que eles criaram, depois de havê-la feito verbo na consciência nacional.

Atuando tais homens, outra suprema vantagem lhes é familiar: e é que a função do governo se mantém em níveis superiores, tanto se trate da União como dos Estados. Já temos visto a qualidade moral e o volume patrício dos chefes que teve até agora a República. Nestas crônicas se poderá ter idéia do que são os governos dos Estados, julgando pelos dois que observei de perto: o de São Paulo e o de Minas Gerais.

Para a presidência da União há grandes interesses regionais em luta, pois ali a influência dos Estados na eleição presidencial, e até a influência de regiões geográficas, Norte contra Sul ou Centro, são fatores poderosos, que não se conhece no Prata, onde o lugar de nascimento do candidato carece de importância e nem se tem presente senão para algum epigrama de gazetilha. É, pois, uma complicação mais das eleições brasileiras, que mais bem parece que devia dar por resultado a eleição de mediocridades, presuntivamente manejáveis. Mas não acontece assim: todos estão de acordo em que o presidente há de ser uma entidade conspícua, e depois de brigar por seus respectivos interesses, como em todas as partes onde a fraqueza e a ambição humana têm lugar e papel, acabam sempre por depurar o juízo e consagrar em um nome patrício a prevalência do supremo interesse nacional.

Eis aqui, sinteticamente apontados, os aspectos que, no político, me pareceu útil observar e trazer ao Prata, como pontos de vista que poderiam explicar-nos o Brasil atual e deixar-nos medir sua capacidade para o progresso, calibrando-a por suas aptidões para o governo próprio e por sua abundância de homens para servi-lo com dignidade e eficiência.

 


OS PALÁCIOS DO OCEANO - Um aspecto interior do Araguaya - Escadaria do piso baixo (restaurante) ao salão superior, de sociedade e festas
Imagem e legenda publicadas na página XII-A da obra

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Os aspectos materiais do progresso, no que afeta ao desenvolvimento industrial, ao saneamento e reconstrução das cidades, à construção de portos e ferrovias, à colonização agrícola e pastoril, estão bastante assinalados neste livro, como para que possa estimar-se seu considerável volume e o ritmo brioso com que se movem.

Nas indústrias, se verá em ação um vigoroso propósito nacional, que levou sua influência à tarifa aduaneira, impondo um regime resolutamente protecionista. Não é o caso de renovar aqui uma discussão de escolas, nem de fazer profissão de fé econômica, pois as idéias do autor não interessam, apenas suas observações; e estas permitem assinalar ao protecionismo brasileiro um caráter de legitimidade considerável, pois se baseia no interesse de fomentar indústrias já criadas, sendo muitas delas, especialmente as indústrias do fogo como a metalurgia e a cerâmica, e o curtume, a fiação e a fabricação de tecidos, indústrias de vida secular em diversas regiões do Brasil.

Assim, pois, a pauta protecionista não foi feita para criar artificialmente indústrias exóticas, mas para desenvolver as já existentes, com mercado, tradição e elementos próprios, tanto em matéria-prima como em mão-de-obra.

A mesma indústria pastoril e seus grandes derivados têm, como se verá nestes estudos, bases consideráveis para operar um vasto desenvolvimento  e buscam os estadistas brasileiros esse fim – do ponto de vista industrial e zootécnico – gravando os produtos pastoris estrangeiros, para oferecer o incentivo de um profícuo mercado interno a seus criadores, e dando em troca tais facilidades à entrada de reprodutores destinados a melhorar suas raças, que lhes pagam o frete e gastos de transporte desde o país de procedência até a própria fazenda do importador.

Certamente: o protecionismo, exagerado em numerosas linhas, leva sensíveis dores à vida das classes pobres, encarecendo-a em artigos indispensáveis. Mas já há consciência, nas classes dirigentes, sobre este excesso, em que ali como em todas as partes caiu a escola predominante, derivando fatalmente aos exageros sectários; e não tardará, decerto, em operar-se uma reação que pondere os interesses do povo trabalhador e os das indústrias, fazendo uma justa média que torne fácil a vida.

Isto pode fazê-lo o Brasil, pois o temor de agredir sua renda não lhe será maior óbice, desde que a criação do imposto territorial, que hoje não existe, lhe permitirá suprir com facilidade qualquer redução na renda alfandegária. E esse imposto ou contribuição imobiliária rural, que já está, segundo creio, sendo ensaiado em Rio Grande, poderá vir até como um meio de estimular os grandes proprietários de terra no trabalho e colonização de suas propriedades, gravando o latifúndio com uma escala tributária que diminua em razão direta da maior população produtiva que se vá radicando nas terras incultas.

*

A impressão produzida em meu ânimo de observador curioso pela metamorfose operada no Rio de Janeiro durante a Presidência Rodrigues Alves está refletida nas páginas que seguem – sumariamente, mas o bastante para que seja desnecessário voltar aqui sobre o tema daquele trabalho – verdadeiro renascimento de uma cidade à saúde, à vida e à beleza, à fé em seu destino e à visão de sua escala continental.

Dessa escala, sim, pode-se dizer algumas palavras, para despojá-la da imotivada rivalidade que a observação superficial normalmente se empenha em estabelecer entre Rio e Buenos Aires. Nada é mais trivialmente insustentável, nem nada seria tampouco mais lamentável e estreito, que crer que o engrandecimento e o prestígio de cada uma destas capitais da América do Sul não pode se produzir senão às custas da outra.

Conhecendo-as, penetra e apazigua o espírito a certeza de uma dupla grandeza, nutrida por meio de duas nacionalidades amplamente capazes de alimentar seu progresso em uma incalculável medida, sem necessidade de menoscabar o futuro de nenhuma delas, nem fazer-se sombra, nem ter-se ciúmes.

O desenvolvimento progressivo, o aspecto característico de cada uma delas, são coisas que vão sendo impostas pela natureza, com a força simples e incoercível de uma fatalidade. Por demais, quanto mais cresçam, menos se parecerão e, em conseqüência, menos poderão mirar-se com receio de sofrer na importância e no destino que cada uma está esculpindo.

Impossível pretender comparações entre as duas metrópoles; e isto é um feliz acidente, porque evita apreensões e jactâncias que, ainda que só se inflamem nos espíritos superficiais, incomodam e ofendem. Em troca, cada uma em seu papel, em seu aspecto e em seu estilo, têm razões poderosas para se estimarem e elementos para se completarem, para intercambiar regalias de conforto e prazer, oferecendo-as ao turismo universal, e gozando-as elas mesmas, em uma recíproca permuta de simpatias.

*

E dizendo isto das capitais, podemos estender igual conceito aos dois países que nelas se miram e se glorificam, afirmando que apenas poderia conceber-se absurdo maior que uma maldade ou indiferença, por razões de banal emulação, entre duas nações que, acima da preocupação pela terra ou pela riqueza do vizinho, devem por e põem o afã por sua própria terra e por sua própria civilização.

O que a estes países estorva e prejudica não é a grandeza nem o progresso alheio, senão precisamente o contrário – a pequenez nos objetivos e a desordem e atraso na vida, que, vistos desde Europa, complicam em seu descrédito e molestam com seu escândalo a todo o grupo continental. Tal é o conceito líquido expressado pelos estadistas do Brasil; e depois que se vê aquele povo posto à vasta tarefa de seu engrandecimento, de sua cultura em todas as formas, instalando-se em sua imensa herança com a mesma paixão, energia e confiança em si mesmo com que se instala o povo argentino em seu também imenso território patrimonial, se adquire a convicção de que, de fato, uns e outros têm como supremo interesse a paz e a ordem no continente, e que, quanto mais progridam, menos lhes convém que o prestígio comum se empane e deteriore com salpicos de conflitos e rumor de aventuras.

O imperialismo é concebido por duas razões: ou por falta de território para viver e progredir, ou por abundância de progresso material. Nenhum país dos que têm saída ao Prata sofre de afogamentos territoriais, pois mesmo os menores em superfície têm todavia milhares e milhares de léguas de terra virgem para entregar ao trabalho; e quanto ao progresso material, os que mais longe vão se encontram ainda no princípio do caminho, em pleno período de assimilação.

Não há, pois, razões de discórdia, e não havendo razões não haverá questões, pois em matéria de bom sentido coletivo, nisso sim, estes povos, educados no sofrimento, fizeram decisivas jornadas, e não haverá quem os mova fora do canal de suas conveniências fundamentais.

Em troca, tudo deriva à coesão continental, tendendo a formular-se na clara e explícita maneira em que expressou o barão de Rio Branco: na aliança dos que já somam força eficiente em benefício do conjunto geográfico – aliança material, que trará a vinculação moral e afetiva, e dará passo ao leal intercâmbio de luzes e interesses.

Muito temos que aprender uns dos outros, e muito serviço podem reciprocamente dar-se estes países; para o quê será preciso a aproximação cortês e as viagens de estudo, as visitas sociais, tão gratas, tão fáceis, tão cheias de atrativos, em expedições que, como a do vapor Pará, podem ser organizadas de Rio a Buenos Aires e de Buenos Aires a Rio, com um mínimo de gastos e uma ampla margem de prazer e recreio.

Por minha parte, desejando ensaiar, desde logo, algo prático no sentido de vincular interesses, e vendo a vontade com que o Brasil está impulsionando sua indústria pastoril, tratei de propagar, em conversações e artigos, algumas informações sobre as vantagens com que os fazendeiros de lá poderiam adquirir no Prata reprodutores de diversas raças pecuárias para povoar seus campos de criação, baseando minha observação sobre o duplo fato do que mais convém por seu clima e forragens e da economia com que poderiam fazer suas aquisições.

De fato: em raças bovinas, os Flamengos, de Lozano, na Argentina, e os Devon, da Loraine, no Uruguai, oferecem ao Brasil o animal rústico, frugal, resistente às epizootias e a climas fortes, bom tanto para carne como para leite, excelente para o trabalho e com condições específicas para fazer, sobre a base do rebanho Caracu do Brasil, uma memorável mestiçagem, com tendências firmes a um crescente e indefinido melhoramento, que se buscaria  esterilmente com raças de condições regressivas, como o Zebu, por exemplo, que é inferior ao próprio Caracu e não pode, portanto, dar-lhe o que não tem.

Em raças eqüinas, cujo fomento é de grande futuro ali, os companheiros do Prata podem oferecer o insuperável tipo Percherón e o Árabe puro sangue, adquirido este último por virtuosos da elévage (N.E.: francês = reprodução) que, como os Ayerza, tiveram  o ânimo de custear-se até o coração da Arábia para comprar aquelas famosas éguas da Bética que, segundo a lenda, foram prenhadas pelos ventos.

Esses reprodutores, o Percherón para tiro e trabalho e o Árabe para destinos de luxo e elegância, têm nas fortes éguas crioulas das serranias mineiras, paulistas, fluminenses, e de todos os demais estados de território montanhoso, uma base exímia para dar crias de primeira ordem: igualmente os garanhões do Poitou, cuidadosamente reproduzidos, como um prazer e um capricho de estancieiros ricos, em vários haras argentinos, principalmente em San Jacinto, de Alvear, e na estância do general Roca, que precisamente ganhou na exposição rural do ano passado o primeiro prêmio, com um garanhão de raça do Poitou, e o grande campeonato de tiro pesado com Limay, esplêndido animal de estirpe Percheron.

Essas raças para carne, leite, trabalho e tiro, e em ovinos, os Caras Negras de Herrera Vegas, Casares, Vivot e outros grandes criadores, com sangues que, como o plantel de Oxford-Shire-Down de Herrera Vegas, estão no país desde o governo de Rivadavia, ou seja, com quase mais de setenta anos de aclimatação e aperfeiçoamento incessante, estão claramente indicadas para o Brasil; e é para seus criadores uma circunstância feliz tê-las à mão, em um grau de perfeição igual, pelo menos, ao melhor que se pode trazer de qualquer país, com uma semi-aclimatação devida à vizinhança geográfica, e em condições de comodidade, segurança e economia impossíveis de obter tratando-se de encomendas à Europa.

Aqui pode o mesmo criador brasileiro vir, em um breve passeio de quinze dias, ou mandar pessoa de sua confiança, a comprar os reprodutores e ver logo como foram criados e em que forma lhe convirá tratá-los e mantê-los para obter o melhor resultado. Tudo isso lhe custará a quarta parte do gasto desde Europa e lhe chegarão as bestas muito melhor, pois não é o mesmo uma viagem de um mês  e uma de quatro dias. E quanto a preços de compra, a vantagem que oferecem as vivendas do Prata é igualmente inquestionável.

Era este um capítulo essencial e, ainda que pareça demasiado minucioso e prosaico, tratei de penetrá-lo para dar dados concretos, a fim de basear seriamente esta propaganda de leais interesses recíprocos, em que venho pondo meus melhores empenhos. O resultado de minhas investigações não pode ser mais decisivo.

O governo de São Paulo, que compra reprodutores por encomenda dos criadores do Estado, fazendo-os escolher na Europa por um perito de sua confiança – o qual, sem dúvida alguma, obterá as vantagens possíveis – importou no ano 1906, entre outros bovinos, touros e vacas Schwitz, Devon e Flamencos, ainda que estes sejam de tamanho médio, enquanto a raça de Lozano é de tamanho maior; em raças eqüinas, trouxe potros andaluzes e Alter; e em ovinos, carneiros e ovelhas Oxford.

Temos, pois, insuspeitáveis pontos de comparação, e eis aqui os resultados: os touros Schwitz, de corpo muito menor que os Flamencos da vivenda Lozano (Argentina), pelos quais podem ser vantajosamente substituídos, custaram 62 libras esterlinas, preço a que podem ser adquiridos aqui os tourinhos Flamencos, ficando em favor destes a diferença dos gastos.

Os touros Devon custaram 60 libras, e nesta raça a diferença é muito mais considerável, pois os touros de um ano da vivenda Loraine, no Uruguai (cujas tribos, segundo testemunhos tão autorizados como, entre outros, o do sábio professor de zootecnia mr. R. Wallace, da Universidade de Edimburgo, seriam notáveis entre os melhores do Devonshire), podem ser comprados por 40 libras, ou seja, uma terça parte a menos de seu custo na Europa, sendo esta a razão fundamental que me levou a aconselhar o Devon de modo preferível – pois sendo suas condições zootécnicas iguais, pelo menos, às da raça que melhor possa prosperar no Brasil, a questão do preço adquire uma importância decisiva.

Passando aos eqüinos: o garanhão andaluz importado por São Paulo custou 270 libras, e o Alter 200; enquanto isso, os magníficos potrinhos árabes, dourados, comprados pelo doutor Assis Brasil ao haras do senhor Hernán Ayerza, lhe custaram, conforme meus dados, 1.000 pesos papel cada um, ou seja, pouco mais de 80 libras.

Certo que foi aquele, segundo creio, um preço de gentileza, mas calcule-se ainda que seja 150 libras, e sempre resultará que se pode comprar no Prata, tanto em El Aduar e Las Hormigas, dos senhores Ayerza, como em San Juan, do senhor Leonardo Pereyra, garanhões árabes da mais nobre estirpe e absoluta pureza de sangue, por muito menos do que custou ao governo de São Paulo um  garanhão andaluz – ele que nunca é comparável ao árabe, por sua notória falta de firmeza típica, em razão de ser, mais que uma raça, uma variedade formada pelo cruzamento de árabe e berbere, o qual foi todavia prejudicado com uma mescla inferior de sangue germânico; - e quanto ao Alter, ainda que muito apreciado em certas regiões  da península, não é por sua vez senão uma sub-variedade do andaluz. De sorte que nenhum deles conserva aquela energia  potencial que se poderia chamar de gênio da raça, e que torna a árabe insuperável como aperfeiçoadora de variedades degeneradas.

Poderia falar ainda de outras raças de tiro ligeiro, para carroceria de luxo, e então caberia dizer que a cria de potros Yorkshire e especialmente Hackney, até aqui tão distantes, que agora precisamente estão os Hackneys de Martínez de Hoz competindo em Londres brilhantemente com os de Vanderbilt, o grande criador de Hackneys americanos, que pagou há pouco 80.000 libras por um time dessa raça. Mas por razões relacionadas com a origem do Hackney e os métodos e cuidados necessários à sua reprodução, não o creio aconselhável. Entretanto, para os homens de posses que queiram se pagar gostos senhoriais, os haras argentinos produzem parelhas de Hackneys que se diriam livres dos baixo-relevos helênicos – e os preços, em geral, não passariam, e antes creio que estariam inferiores às 207 libras que custou o garanhão Hackney existente no Posto Zootécnico de São Paulo.

Para tiro pesado tem o citado Posto um garanhão Ardenês. Apesar de sua gloriosa tradição das guerras napoleônicas, esta raça, inegavelmente boa, não é nunca comparável à Percherón, temperada aos rigores do clima pelos ardentes sóis da Beauce, para dar, por cruzamento com as éguas crioulas, os potros fortes, ágeis e resistentes, de tiro, de trabalho e também de guerra, firmes de jarretes e duros de cascos, que necessitam e podem cultivar os criadores de São Paulo, Minas, Goiás, Rio de Janeiro e Espírito Santo, e em geral, de todos os Estados serranos.

O cruzamento do Percherón com éguas leves é superior para toda finalidade; pois o mesmo puxa um arado, um carro de lavoura ou um coche de luxo, que trota e galopa um dia inteiro, com uma grande resistência à fadiga, uma marcada mansidão e a grande vontade que lhe depara seu temperamento sanguíneo.

Eu mesmo possuo uma junta procedente do cruzamento de Percherón e égua de carreira – cruzamento feito pelo doutor Herrera Vegas – e resultam animais altivos e harmoniosos de formas, que se confundem, mesmo para o olho inteligente, com excelentes potros anglo-normandos – ainda que pareçam ligeiramente reforçados em seus centros musculares.

Ignoro o preço que se pagou pelo Ardenês de São Paulo; mas julgando pelo dos outros reprodutores eqüinos, pode-se supor que não foi menos de 200 libras. Por cujo preço, e até por 180 e quiçá por 150 libras, pode-se seguramente adquirir garanhões de puro sangue Percherón, em vivendas rio-platenses de tanto prestígio como as de irmãos Urquiza, General Roca, Rodolfo Peña, Ocampo, Pereyra, Aguirre, Martínez de Hoz e Sáenz Valiente, para não citar senão as que na exposição rural do ano passado ganharam o campeonato e os primeiros prêmios dessa raça.

Finalmente, os carneiros Oxford-Shire-Down, importados pelo Posto Zootécnico de São Paulo, custaram 20 libras por cabeça e tiveram de gasto, também por cabeça, 12 libras e 7 xelins. Entretanto, os Caras Negras de Herrera Vegas, que é o melhor que se poderia exigir nessa raça, podem ser adquiridos por 12 a 15 libras, de 6 a 8 meses de idade; quanto aos gastos, tenho experiência pessoal, pois mandei para dois amigos – o conde de Prates, em São Paulo, e o doutor Carvalho Britto, em Minas -, quatro ovinos dessa raça, com um gasto total, pelos quatro, de 140 nacionais (12 libras), ou seja, o que gastou um só dos carneiros importados da Europa para São Paulo; devendo acrescentar que no gasto feito por minha remessa ia incluído o valor de 12 fardos de alfafa extra e uma gratificação a um marinheiro encarregado de cuidar dos animais durante a viagem até Santos e Rio.

De modo que o gasto por carneiro do Prata ao Brasil, tout compris (N.E.: francês = tudo incluído), pode-se fixar folgadamente em 2 e ¼ libras; assim como o de um touro ou um cavalo, que para São Paulo subiu de 33 até 62 libras desde Europa, não passará de 12 libras, levados do Prata a Santos ou Rio de Janeiro.

Detive-me muitos dias em examinar estas coisas, e me detenho agora também muito em escrevê-las, porque adquiri a convicção de que nossos grandes entendimentos no continente, nossas relações cordiais e proveitosas, devem ser buscados por estes caminhos simples, claros e vulgares, do interesse recíproco.

Parece-me de uma inobjetável utilidade informar aos criadores do Brasil destas coisas tão fáceis de entender, tão simples se se quer, mas também, creio eu, tão persuasivas no sentido de uma evidente conveniência sua, e também nossa.

Os brasileiros, que nos ignoram tanto como nós os ignoramos, não pensaram sequer em que o que eles precisam em matéria de raças pecuárias, podem obtê-lo aqui, imelhorável, barato, fácil de escolher e de levar, até semi-aclimatado e em certos casos imunizado, pois que, por exemplo, o Devon do Uruguai é criado em uma zona de muito carrapato – de sorte que já o levam defendido pelo hábito contra um dos mais sérios inconvenientes da importação bovina no Brasil.

Que mais podem desejar, pois, os criadores daquele país – onde o rebanho, que já tem 20 milhões de cabeças de gado, se prepara a tomar rápidos vôos – senão conhecer essas vantagens e utilizá-las, adquirindo primeiro por si mesmos, como podem fazê-lo com pouco custo, as fáceis certezas que aqui ficam apontadas?

Nestas questões, o amor próprio tem pouco que fazer; e quando se propague no Brasil a evidência de que aqui se pode comprar reprodutores bovinos, cavalares e ovinos, das raças que lá necessitam, tão bons e tão garantidos como na Europa, por metade do preço, com a quarta parte de gastos e sem as moléstias e deterioração de uma longa viagem, os viriam a buscar, sem dúvida alguma.

E que mais querem por sua parte os criadores do Prata, que formar um grande mercado para as raças que precisamente têm aqui menos saída? Porque falta anotar esta outra circunstância, propícia a esta profícua orientação das coisas: as raças que mais convêm ao Brasil carecem aqui de mercado regular.

Os Flamencos e Devon estão dominados pelo Durham e um pouco pelo Hereford; os carneiros Caras Negras não resistem ao influxo dominante da moda do Lincoln; os potros Árabes sofrem a competição e também a moda do Hackney; e o Percherón tem que fazer frente às duas grandes raças inglesas Shire e Clydesdale, que também estiveram em voga e se fizeram favoritas das vivendas. Eis aqui porque as raças mais úteis para os climas fortes e as pastagens rústicas podem ser adquiridas aqui a preços muito mais baixos que os que alcançam em seus países de origem.

Abrigo a confiança de que estas demonstrações, em que pus meu maior zelo e minha sinceridade de observador medianamente iniciado em questões desta índole, hão de parecer úteis e dignas de atenção as pessoas ilustradas e livres de apreensões.

Por minha parte, experimentei a satisfação de saber que minhas modestas crônicas de viajante curioso motivaram já o envio, por parte do Ministério da Agricultura do Brasil, de um distinto e laborioso profissional, o engenheiro Fidelis Reis, que estudou inteligentemente nossas grandes indústrias agrárias, viajando durante dois meses desde Olavarría pelo Sul até La Pampa e Córdoba pelo Oeste e Santa Fé pelo Norte.

Vários pedidos de carneiros Caras Negras foram feitos aqui ultimamente – e o doutor French, proprietário da vivenda Loraine, achou por bem me comunicar que está recebendo importantes pedidos de touros Devon para o Brasil, levando sua galanteria de gentleman (N.E.: inglês = cavalheiro) a atribuir este fato ao meu modesto esforço de propagandista. Bem queria que fosse certo, e não por um vão prurido, e sim porque dou uma magna importância a estes fatos sintomáticos, precursores de relações mais freqüentes, de vinculações mais estreitas, de uma permuta crescente de interesses, fecunda para todos.

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Estas ligeiras notas, que deviam ir ao final da viagem jornalística, vão ao princípio, porque casualmente é este lugar o mais adequado para hospedar uma síntese e antecipar um pequeno conselho que, espero, a leitura das crônicas subseqüentes irá corroborando.

O conselho é este, às gentes do Prata: vão passear ao Brasil; e às gentes do Brasil: venham passear ao Prata. Não pretendo que este livro dê base a nada definitivo; mas abrigo a ilusão de que poderá propagar curiosidades e sugestões, capazes de converter-se em sementes de um reflorescimento da cordialidade antiga, reforçada pela consciência dos novos deveres que têm estes grandes povos para com a civilização da América do Sul.


OS PALÁCIOS DO OCEANO - Detalhe do esplêndido hall de festas do Araguaya, donde, quem desejar, pode esquecer-se completamente de que o rodeia a perfídia da onda
Imagem e legenda publicadas na página XVIII-A da obra

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Ficaria incompleto este bosquejo se entre os progressos mais visivelmente lançados a um rápido florescimento pelas novas energias governantes do Brasil, deixasse de assinalar o que respeita à expansão daquele país até o oceano, tomando a este como um colaborador de seu engrandecimento. Esta tendência se materializa de três modos tangíveis: 1º, construindo grandes portos em todo o comprimento de seu imenso litoral; 2º, fomentando a marinha mercante; 3º dando vida e eficiência à sua marinha de guerra.

Os portos em obra começam, contando desde o Sul, em Rio Grande, cuja barra vai ser cortada e aberta, para dar espaço a um grande porto, abrigado e cômodo, por onde sairão as cargas que baixam desde Porto Alegre navegando as diversas lagunas que formam todo um sistema dentro daquele grande Estado. Esta obra está a cargo de uma empresa formada em Estados Unidos pelo eminente engenheiro Corthell, que tão sábios conselhos soube dar-nos sobre o problema portuário argentino.

Seguindo o litoral marítimo, os portos em obras ou em licitação chegam até Recife, no extremo Norte, primeiro ponto de arribagem da navegação de ultramar. Mas entre esses dois pontos extremos – Rio Grande/Recife – são escavados outros quatro grandes portos, sem contar o de Santos, já concluído e em obras de ampliação, e o do Rio de Janeiro, também muito avançado e com uma seção em serviço para passageiros.

Resulta assim em marcha a construção da série de grandes portos que hão se assegurar ao Brasil a eficiência de sua ação no oceano, não se descuida o fomento da navegação que deve freqüentá-los. Subsídios liberais deram nascimento e desenvolvimento a várias companhias mercantes, cujos paquetes percorrem todas as costas da União, navegando desde o distante Pernambuco até o Prata, internando-se por este águas acima e subindo o Paraguai até Mato Grosso.

Assegurada a navegação do extenso contorno costeiro, procuram a expansão ultramarina, e têm já uma linha nacional que faz viagens regulares entre Rio e Nova York; o qual não lhes impediu fomentar com igual eficácia a navegação de seus rios interiores, estando em serviço linhas regulares no São Francisco, Parnaíba, Marañón, Tocantins, Araguaia e outros, sem contar a florescente rede do Amazonas, que compreende todo um sistema de oito linhas, a Manaus, Iquitos, Baião, Mazagão, Rio Madeira, Rio Purus, Rio Negro e Oiapoque.

Pelo que faz o fomento da frota de guerra, como um complemento enérgico desta tendência brasileira à ação no mar, é um fato de importância considerável – e embora não tenha feito especial estudo da organização que nesse sentido se está laboriosamente preparando, pude, desde a alta atalaia do Corcovado, vendo sair a frota do Brasil comboiando a esquadra americana, apreciar o brioso e admirável esforço condensado naquele conjunto de 56 navios, mobilizados em um febril trabalho de três meses, que saíam da baía a realizar, depois de despedir os navios do almirante Evans, todo um programa de manobras de mar.

A maior parte daqueles navios eram, poucas semanas antes, velhas carcaças arrombadas desde muitos anos em fundeadouros esquecidos, e ali iam todos, vistosos na flamante alvura de seus cascos brancos, refeitos, improvisados e lançados a uma nova vida de atividade, somando toda essa reconstrução um labor enorme e uma incontrastável e sábia vontade dirigente.

Aquele ressurgimento encheu de admiração e de justo orgulho ao Brasil, espectador comovido de tão belo resultado, pois depois de haver sido desfeita a esquadra para abater a sedição; depois da morte dos velhos almirantes, que resumiam em seus nomes o passado naval do Brasil; depois do bombardeio do Aquidaban, que não só custou a perda do melhor navio, mas destruiu a flor da oficialidade de escola, não era certamente de esperar um tão súbito e galhardo renascimento. E se produzia, sem dúvida, aos olhos de todos, sob a ação de um ministro jovem, que tomou o cargo sintetizado em uma frase: rumo ao mar, o lema expressivo de todas as decisões.

Aquele resultado que se via palpável, revelava em verdade um labor da mais alta eficiência, pois não só mostrava navios, com que ninguém contava, restituídos à sua capacidade, velhices remoçadas e feitas ação, inércias galvanizadas e feitas energia, mas que acusava um espírito novo, um sopro de saber inteligente e entusiasta, animando com sua força expansiva aquela organização, tão claramente prometedora.

Aquela frota sacada do nada, feita com verdadeiros despojos do passado naval, e lançada audazmente ao mar para servir de escola à futura marinha de guerra, acusava a capacidade dos homens dirigentes do Brasil, também neste rumo – pois o observador não há de esquecer, para assinalar a este resultado naval sua verdadeira natureza, que ele não é um esforço único, senão um dos vários e grandes esforços que o Brasil efetua em diversos sentidos, servindo um vasto plano de progresso – pois já se notará nas crônicas seguintes, como a formação da marinha de guerra, que surge, como se viu, juntamente com a marinha mercante e com a construção de grandes portos, vai também paralela a expansão ferroviária, a expansão industrial, o incremento da riqueza e do trabalho agrícola, à reconstrução e higienização das cidades.

Colocada assim em sua verdadeira perspectiva, me é grato acabar, com esta nota relativa à frota de guerra, a primeira jornada deste livro de paz – tomando-a como parte integrante da obra que o Brasil consuma, em seu anseio de afirmar-se como país marítimo – e oferecendo-a, em sua integridade prospectiva, à nobre rivalidade dos países do Prata, que são também povos de mar, e que, nesse sentido sim, e com esse amplo e impessoal espírito, devem tomar nota do que progridem os vizinhos, para não ficar à retaguarda de nenhum grande passo.

Façam-se portos, grandes portos de mar, com calados capazes de servir à navegação mundial – faça-se, com leis sábias e liberais ajudas, a marinha mercante, dando à cabotagem impulsos de que carece, fundando cidades oceânicas, estabelecendo-se, enfim, sobre o litoral marítimo, donde tenham campo e aplicação todas as virtudes viris das raças empreendedoras - e ao fazer portos, e ao fazer marinha mercante, faça-se marinha de guerra, para servir àquela e apoiá-la.

Assim, como fruto são de uma política isenta de agressões e de receios, a obra de instalação sobre o Oceano será obra santa – que não servirá nunca para fomentar delírios de hegemonia continental, impossível de basear em razões de força – mas que irá preparando a inexpugnável coerência da América do Sul para a defesa solidária de toda a família continental.

Não deve ser nunca a organização bélica como a enfermiça sugestão de maus sonhos, mas como o complemento deliberado e metódico do progresso de cada país, como a salvaguarda da riqueza que se está elaborando e do futuro sul-americano; que por ser, como será, opulento e esplêndido, pode tentar e tentará, se vivermos isolados e indefesos, ganâncias temerárias.

Preparemos com afã varonil a solidariedade de nosso grupo étnico, para sempre jamais dono e senhor desta vasta porção do novo mundo – e assim Deus faça florescer a vinha e bendiga a vindima dos povos que trabalham seu futuro com o peito aberto ao vento da vida e a cabeça e a intenção ao sol! ao grande, paternal e bendito sol de nossa América, capaz de iluminar o caminho de todos os destinos, sem que ninguém encontre utilidade em confiar seus desígnios à sombra.

Buenos Aires, 20 de maio de 1908.


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Imagem: reprodução parcial da página V da obra