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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - SANTOS EM... - BIBLIOTECA NM
El Brasil (H)

Clique na imagem para ir ao índice da obraUm país recém-entrado no regime republicano, passando por grandes transformações políticas, econômicas e sociais, sob o império dos oscilantes preços do café. Assim é o Brasil encontrado pelo jornalista argentino Manuel Bernárdez, que em 1908 vem tentar decifrar o que aqui ocorria. É dele a expressão "Metrópole do café", com que alcunhou a capital paulista [*]. Sua obra El Brasil - su vida - su trabajo - su futuro foi editada na capital argentina, em castelhano, sendo impressa em Talleres Heliográficos de Ortega y Radaelli, Paseo Colón, 1266, Buenos Aires.

O exemplar pertencente à Biblioteca Pública Alberto Sousa, foi cedido em maio de 2010 para digitalização, através da bibliotecária Bettina Maura Nogueira de Sá, a Novo Milênio, que apresenta nestas páginas a primeira tradução integral conhecida da obra para o idioma português - páginas 67 a 80:

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El Brasil

su vida - su trabajo - su futuro

Manuel Bernárdez

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AS GRANDES FERROVIAS DO BRASIL - São Paulo Railway - Estação "do alto da Serra", no ponto culminante da linha que sobe de Santos a São Paulo, salvando uma altura de 800 metros em 10 quilômetros e meio de distância
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O passado de Minas Gerais - As ferrovias no Brasil

Metrópole destronada - Um crepúsculo em Ouro Preto - O utilitário e o sentimental - Uma cidade em agonia - Reminiscências de um nobre passado - O prédio de Tiradentes - A casa de Marília de Dirceu - Templos e escolas - O "Aleijadinho" - Um artífice de templos - A ponte dos suicídios - O passado na vida das nações - Ouro preto não pode morrer - A Coimbra brasileira - Minutos lentos e ocasos tristes - Apelo à vida - As ferrovias brasileiras - Dez mil quilômetros em sete anos - O trilho civilizador - As rivalidades do progresso - A rede brasileira e a rede argentina - Caminhos de Pampa e de montanha - O luxo e a utilidade - A hegemonia não sairá dos estaleiros europeus

Ainda que tenha posto ao final no sumário, impõe-se a mim com um forte atrativo, ao começar a escrever esta crônica – mesmo que seja para uma referência à conta de maiores informes – o tema das ferrovias brasileiras, cuja rede vai se estendendo rapidamente para todos os rumos do imenso país.

O Império, em seu sistema estático de isolamento e imobilidade como característica de uma política de patriarcado, não deu nunca maior importância à via férrea, havendo apenas construído, como já disse em outra carta, uns 8.000 quilômetros em todo seu tempo. Mas o dinamismo natural do regime republicano, a forte ansiedade do progresso nascida com o sistema de liberdade política e social, impondo como fator primário a comunicação e o movimento, apresentou entre os problemas mais imperiosos o da construção de caminhos de ferro.

Estava o Brasil isolado de si mesmo e era urgente relacionar-se para afirmar sua unidade territorial, sem a qual seria frouxo e precário o vínculo político. Dez mil quilômetros de vias novas, estendidos em menos de oito anos através de regiões montanhosas, de desertos e cursos de água, encaminhados a enlaçar os Estados dispersos no mapa e remotos entre si como antípodas, para dar elementos de progresso à mineração, canais à circulação comercial e facilidades ao povoamento dos sertões selvagens, representam um esforço que só se pode apreciar em sua intensidade andando naquelas ferrovias, calculando seu custo quilométrico e as ingentes dificuldades de seu traçado e de sua execução, que representa com freqüência um triunfo da engenharia e outro do vigor muscular e da audácia do povo que a tais obras põe a mão.

É muito difícil dar uma idéia aproximada daquelas curvas, daquelas colinas, daqueles lançamentos no vazio, daquelas franqueadas nos montes, daquelas encostas de cumes íngremes, daquela sucessão de túneis e viadutos, daquele contínuo corpo a corpo do homem com a natureza.

Apenas a linha de Jujuy a Humahuaca pode oferecer semelhança com as proezas ferroviárias do Brasil; mas deve-se acrescentar que estas linhas foram construídas com solidez e previsões admiráveis, fazendo defensas e obras de drenagem tão custosas como a própria via, com um verdadeiro luxo de trabalho, prodigalizando a cantaria e o lastreamento, a canalização em pedra de todos os morros que deságuam nas linhas, para evitar interrupções e dar saída às violentas descargas aluviais das cúpulas.

Tão custosa e complexa exigência por parte da natureza, dá um volume excepcional à obra já realizada, ao extremo de que, a fim de tomar um ponto de apoio comparativo, se estimássemos cada quilômetro de via brasileira de montanha, que são 4/5 de sua rede, como dois quilômetros de via argentina de planície, que são também nossos 4/5, teríamos o total de 10.000 quilômetros feitos pela República brasileira em sua breve existência, equiparados a 20.000 quilômetros de ferrovia em nossas planícies, como valor por unidade e como dificuldades vencidas – ou seja, que dentro desses termos, o Brasil republicano teria em uma década realizado um esforço, em dinheiro e energia, para ampliar seus caminhos de ferro, análogo a 5/6 do conjunto de nosso considerável sistema ferroviário, que anda roçando os 24.000 quilômetros em tráfego.

Parece-me que estas sugestivas evidências, longe de serem mortificantes, devem ser saudáveis para nosso amor próprio de povo progressista e enérgico, movendo o ânimo de governos e povos no sentido de sãs e varonis emulações – as únicas nobres, as únicas úteis, as únicas que devem ser estimuladas entre estas duas grandes nações, tão dignas de se conhecerem mais para se estimarem melhor.

Não quero falar todavia da ferrovia de Rio de Janeiro a São Paulo, nem da de São Paulo a Santos, obras-primas em seu gênero, comparadas com qualquer similar universal – vou por agora discorrendo sobre o que vão vendo meus olhos – e creio de sensato patriotismo rio-platense fazer franca justiça ao vigor, à inteligência, à decisão tenaz e firme com que o Brasil vai realizando sua obra magna de vinculação interior – consciente de que está aí o segredo de sua força, de sua prosperidade, e em conseqüência, de sua futura grandeza e de sua escala sul-americana.

Precisamente, nos jornais que lia no caminho, encontrei a descrição de uma nova linha de penetração, não me recordo agora para que rumo do território ignoto – mas o caso é que já vão, nesse rumo novo, construídos mil quilômetros de via de 1,60 m (N.E.: = medida da bitola), que foi descobrindo regiões admiravelmente aptas para a agricultura, a criação pastoril, a mineração.

Essa linha encontrou em seu desenvolvimento um obstáculo sério – uma zona paludosa que fez estragos em seu pessoal: em seguida, a nova organização sanitária que o Brasil possui mandou brigadas de defesa, atacou-se o flagelo em suas origens, organizou-se a proteção de centenas de operários, e a zona inimiga foi vencida, cruzada, deixada atrás, realizando-se nela um saneamento que tornou já possível a vida – e a ferrovia passou, seguiu seu avanço, a desvelar o mistério de outras imensidões, preparando-as para instalar nelas novos centros de civilização (N.E.: pela descrição, o autor deve estar se referindo à contmporânea ferrovia Madeira-Mamoré).

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AS GRANDES FERROVIAS DO BRASIL - São Paulo Railway - Saindo de um túnel e entrando em outro. Túneis 1 e 2. A linha tem 13 em seu breve trajeto
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Nós que levamos o corpo acostumado às comodidades regaladas de nossas confortáveis ferrovias, experimentamos ali uma primeira impressão meio desconcertante: não há vagões-restaurantes – pelo menos onde eu andei – e o luxo de nossos parlor-wagons (N.E.: inglês: vagões-salas) e carros-dormitórios não acaricia ali os olhos senão muito limitadamente. Mas essa impressão superficial deixa de imediato a passagem às observações fundamentais, e se chega a estimar até como um lance de sensatez a sobriedade do conforto ferroviário, amplamente compensada com a solidez, o impulso e a importância da obra total.

Nota-se, ou pelo menos a mim parecia notar, um deliberado propósito de subordinar o luxo à utilidade, criando o mais urgente – a via e a circulação regular – em proporções que teriam sido prejudicadas por um critério de maiores dispêndios no conforto e na estética.

Os trilhos avançam, e avançam pisando firme, como para não retroceder nem fraquejar no impulso de suas definitivas conquistas. O progresso se instala frugalmente em seus novos impérios, confiando sem dúvida em que o trabalho que ele semeia em seu avanço trará mais tarde o florescimento das comodidades e o maior acolhimento da vida – que hoje é de luta e de submetimento da natureza.

Pensando assim, que em meu modo de ver é bom pensamento, inclina-se o ânimo a um simpático e vivo sentimento de consideração para com a engenharia brasileira – realmente brasileira – porque desde o eminente engenheiro Aaron dos Reis, chefe das ferrovias, até os jovens engenheiros auxiliares da administração, são todos filhos do país, formados nas escolas técnicas do Rio e de outros Estados.

Por certo que me tocou a boa sorte de viajar com dois deles – os senhores Paulo da Costa Azevedo e João de Carvalho Araújo, engenheiros da Central, cuja ampla ilustração, geral e técnica, realçada por uma cortesia plena de gentileza, me fez apreciar os elementos próprios com que o Brasil vai consumando seu enérgico movimento de avanço – e me ocorria pensar que eram estas coisas as que especialmente deveriam nos interessar -, que eram estes aspectos internos do grande vizinho geográfico, seus progressos, suas ferrovias, sua mineração, sua expansão industrial, seu já muito importante e sempre crescente comércio interno, sua produção, que multiplica suas formas e alça seus níveis com ímpetos de maré, sua organização, que se improvisa sabiamente em todos os sentidos – me ocorria que era tudo isto, melhor ou pelo menos tanto como as encomendas de navios e as manobras militares, o que merecia a atenção de nossos pensadores e estadistas, porque para quem examina o interior do Brasil, fica evidente que se alguma superioridade se prepara, se algum prestígio descolante lavra seus fundamentos, se alguma hegemonia continental pode chegar a se fundar e ser possível em nosso vasto triângulo geográfico, não há de sair ela dos estaleiros navais europeus, e sim das usinas industriais, dos quocientes úteis do trabalho, da acertada preparação técnica das juventudes, da maior ordem e da maior coerência na política, da superioridade econômica, que só a dão as ferrovias, a marinha mercante fomentada com afinco – como a está fomentando agora o Brasil -, o trabalho dos campos, a indústria das cidades, a educação, a cultura operária, o bem-estar da vida coletiva que prepara a saúde e a energia das raças.

Nossa paixão por sermos os primeiros me parecia então enobrecida, grande e luminosa, exercitando suas virtudes e suas bravuras nesses planos superiores da rivalidade – impondo-se ao espírito como um dogma da certeza de que o destino reserva seus louros e seus prestígios, não tanto para o que tenha cifrado sua ilusão em ser mais forte nas armas, e sim para o que tenha sabido ser mais eficiente nas idéias e melhor tenha servido, com a ciência aplicada à vida, o ideal concreto e grande de sua própria civilização.

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AS GRANDES FERROVIAS DO BRASIL - São Paulo Railway - Viadutos da velha e da nova linha, na localidade denominada "Grota Funda". A linha nova é a de acima, e só ela tem 18 viadutos e 17 terraplenos
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A atualidade ferroviária do Brasil, traduzida em quilômetros, é útil de anotar: tinha em 31 de dezembro de 1906 um total de 17.242 quilômetros em tráfego, 3.042 quilômetros em construção e 6.683 quilômetros com estudos e planos aprovados. Destes últimos se pode contar com certeza a construção da maior parte, pois pertencem a antigas empresas em exploração, como a Mogiana, Sapucaí, Sorocabana, São Paulo, Rio Grande, Leopoldina – ou são concessões com garantia da União, para serem construídas em prazos peremptórios.

Poder-se-ia contar, pois, que, com o já em tráfego, em construção e a ponto de se por em obra, teria o Brasil dentro de 3 anos 25.000 quilômetros de ferrovias, que será também nossa rede então. Mas ele não ficará nisso, pois o atual presidente da União expôs como plataforma essencial de sua administração o fomento dos transportes, e o que já está feito ou em caminho de estar não é obra de seu governo.

Lógico é, pois, supor que esta presidência dará um impulso firme e grande à expansão da rede ferroviária – de sorte que, se ao se concluir a administração Afonso Pena, tivesse o Brasil 30.000 quilômetros de vias férreas em tráfego, enquanto nós ficássemos em 25.000, perdendo a honrosa vantagem atual nessa ordem de progressos, seria um bizarro exemplo, certamente, mas que não nos deveria assombrar se por estas notas e outras observações mais competentes e sagazes, que devemos fazer, nos vamos dando conta da energia daquele povo e da capacidade eficiente de seus governos.

A propriedade das linhas é assim detalhada: pertencentes à União e administradas por ela: 2.883 quilômetros em tráfego, 710 em construção e 413 com estudos aprovados; pertencentes à União e arrendadas a empresas particulares: 4.542 quilômetros em tráfego, 223 em construção e 975 aprovados; concedidas pela União com garantia: 1.563 quilômetros em tráfego, 759 em obra e 1.277 aprovados; concedidos sem garantia: 1.930 quilômetros em serviço, 622 em construção e 3.821 aprovados; e por fim, de propriedade ou concessão dos Estados, 6.323 quilômetros em tráfego, 717 em construção e 9.787 aprovados.

Segundo fiz notar em uma carta anterior, a União adquiriu, por meio de um empréstimo de 4 por cento, numerosas linhas concedidas pelo Império com garantia de 7 por cento; e um recente documento de governo declara virtualmente caducada a era das concessões com garantia, salvo excepcionais circunstâncias.

Esta vasta rede que acabo de detalhar e que compreende 195 linhas e ramais distintos, padece em grande parte do defeito de atender só a fins locais, sem tendência a vinculações de maior envergadura; mas o governo do Brasil está precisamente se esforçando por tecer, com um conceito prospectivo e sistemático, as conexões transcendentais que hão de relacionar os diversos Estados, as diversas regiões hoje afastadas entre si, abrindo largos canais ao comércio e ao tráfego interior.

Para tal fim, favorece toda linha que persiga estes propósitos de alguma maneira, seja qual for o rumo a que levem seus trilhos. Aí vem todo um sistema em marcha, desenvolvendo-se com três grandes linhas desde Rio de Janeiro e São Paulo até as fronteiras oriental (N.E.: da República Oriental do Uruguai), argentina e paraguaia, por Cuareim, Alto Paraná e Mato Grosso.

E se porfia em unificar ao máximo as bitolas, limitando-se às medidas de 1 metro e 1,60 m, e se tende com igual decisão a ampliar o coeficiente de capacidade por quilômetro para o tráfego aperfeiçoado dos serviços, e se procura reduzir as tarifas, que são em geral pesadas para a produção – sendo-me grato ter notado que o ministro de Obras Públicas, engenheiro Calmon, em uma eloqüente passagem de sua última memória, realça neste sentido o exemplo dos transportes argentinos, que são os que mantêm as tarifas mais baixas – apesar da forma amarga como normalmente nos queixamos – entre todos os grandes países produtores de ambos os continentes.

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AS GRANDES FERROVIAS DO BRASIL - São Paulo Railway - Perspectiva de um trecho da linha inclinada. Entre os trilhos se distinguem os cabos que rebocam os trens. Quando ao baixar, desde um vagão especial que põem diante da máquina, se vê somente o céu ante os olhos, porque a terra foge para baixo, se sente a singular sensação de um lançamento no vazio...
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Breve intermezzo espiritual

(A Olavo Bilac, mágico evocador do passado de Minas).

Depois de um admirável trecho de ferrovia que penetra em Ouro Preto deslizando como uma serpente pelo estreito canal do Rio Funil, que justifica seu nome (funil) estreitando-se tanto e com tais meandros, que a via tem que cruzá-lo e voltar a cruzá-lo até três vezes em um brevíssimo trajeto – parecendo que o rio fosse uma larga ferida e o trem uma larga agulha que lhe fora dando sucessivamente pontadas nas bordas – aquela angústia asfixiante entre muralhas de serra a pique, se alarga de repente em um minúsculo valezinho ocupado quase todo pela estação de Ouro Preto – e ponho o pé, não sem algum sentimento de emoção, na antiga capital de Minas Gerais, empório de tradições, sede do reino do ouro, a cidade de Tiradentes, o berço de Marília de Dirceu, romantizada Laura do ouvidor Gonzaga – aquele doce e infortunado Petrarca brasileiro, condenado à prisão e lançado à loucura pelo crime glorioso de haver sentido na alma a sede imensa da liberdade!

Tenho marcada em minhas recordações com pedra branca a hora vespertina em que, em companhia de Augusto de Lima, saímos a pé a buscar perspectivas da cidade, depois de haver visitado a antiga casa de governo, entre palácio e fortaleza, hoje convertida em escola de minas sob a direção do sábio brasileiro Costa Senna, e a igreja construída pelo Aleijadinho – um artista genial, monstruosamente mutilado pelo escorbuto, que se fazia amarrar o cinzel ao coto de sua direita corroída pela horrível doença, e assim levantou os grandes templos nas cidades de Ouro Preto e Mariana, fazendo-o tudo por sua inspiração e seu trabalho pessoal, tanto a arquitetura barroca de suas fachadas, não livres de grandeza e originalidade, como as complicadas florações de pedra de suas colunas e capitéis e as primorosas esculturas de seus altares e suas imagens, talhadas em madeiras eternas dos bosques vizinhos.

Visitamos também a casa em que, como constata o grande poeta Bilac em uma de suas belas crônicas mineiras, se deixou envelhecer burguesmente, até os oitenta e quatro anos, a musa de Gonzaga, dona Maria Joaquina Dorotéia de Seixas, que seu doce poeta adornou com o nome pastoral de Marília; mais abaixo, no centro da cidade, detivemos o passo ante o prédio onde fora a casa de Tiradentes, mandada arrasar e semear de sal como um sítio maldito – e na praça onde hoje se eleva o nome monumento do mártir, descobrimos nossa cabeça reverente ali onde a sua, predestinada e sangrenta, tostada e asperamente barbada como a do Batista, envida desde o Rio em lombo de burro, esteve quatro dias cravada em uma lança, oferecida pela cega tirania à inclemência dos sóis e às picadas dos corvos.

A casa de fundição, por onde, nos tempos idos da grandeza de Ouro Preto, correra caudaloso um Pactolo de ouro (N.E.: Pactolo é um rio da Turquia que nasce no monte Tmolus, passa pelas ruínas da antiga cidade de Sardis e se funde com o rio Gediz, antigo Hermus, acabando por desaguar no Mar Egeu. O Pactolo antigamente possuía as areias auríferas que eram a base da economia do antigo estado da Lídia. Lavando as mãos nesse rio, o lendário rei Midas teria renunciado assim ao seu "toque de ouro") – o cárcere, também com dois séculos passados sobre seus muros de pedra, que guardaram em seu tétrico silêncio um descendente da casa de Áustria – todo o antigo e o histórico havia sido visto de passagem; e lentamente, parando nos pontos altos para ir descobrindo os escondidos bairros da cidade que, ao subirmos, surgiam e se engrandeciam, estendidos caprichosamente nos seios tortuosos dos estreitos vales que os contêm, cruzamos a ponte dos suicídios, romanticamente batizada assim pela fascinação que o abismo que cruza produzia sobre as almas aprisionadas ou enfermas – e andando, devagar, enquanto se alçavam ante nós, como aves assustadas, na evocação simpática do lugar e da hora, as mais estranhas reminiscências, chegamos ao átrio de São Francisco de Paula, que culmina uma altura desde a qual, em três direções, poente, Sul e oriente, se domina por completo o acidentado panorama da cidade.

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VINHETAS DO PASSADO MINEIRO - Detalhe panorâmico de Ouro Preto, tomado desde o átrio de São Francisco - A cabeça de Tiradentes, tal como foi exposta sobre um pique (N.E.: tipo de lança comprida medieval, terminada em ponta), pelo crime de sonhar a liberdade...
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Era um momento propício às coisas da alma. Era esse quarto de hora de minutos luminosos e lentos, em que as coisas inanimadas, aos olhos do homem pensativo que sabe a dor, parecem viver estranhamente, com um fugaz e misterioso espírito. Enquanto subíamos, fora aprendendo dos lábios do amável companheiro a melancólica odisséia da cidade: seu nascimento em cima de ouro, sua grandeza, sua crise de expansão, sua impossibilidade de crescer, sufocada pelos morros que a encurralam, sua decadência e, por fim, seu abandono por Belo Horizonte, a rival improvisada, que a havia deixado deserta, reduzida a três ou quatro mil almas, espalhadas tristemente e andando como sombras por aquelas vias da antiga metrópole do ouro, que congregara oitenta mil habitantes em seus dias de grandeza, quando até seu nome soava como um pregão de opulência: Vila Rica de Ouro Preto!

Miramo-la desde o alto, estendida em silêncio e em paz em seus estreitos vales; e enquanto a luz do sol se ia extinguindo, o casario apinhado e vasto ia tomando, sobre o escuro fundo dos montes, não sei que aspecto de tristeza e mistério. Branqueava, tumular, falando do passado com uma mudez grávida de eloqüência.

A fantasia, flutuante sobre a realidade sumária das coisas, chegava a imaginar se aquilo seria acaso um acampamento de tendas, todas brancas, dos audazes "bandeirantes", fundadores de vilas, ou seria melhor um ossuário, também todo branco, sem mais esperanças de vida que as vegetações da morte. O panorama era belo e austero. Flutuava sobre sua quietude um profundo silêncio. Augusto de Lima, que, sem falar, seguia meus pensamentos, disse à meia voz:

- É uma agonia!

Concordava eu, encontrando uma identidade penetrante entre a cidade moribunda e o dia que, em um ocaso tétrico, encoberto de nuvens, expirava também. De pronto, um último raio de sol, penetrando os cúmulos do poente e vibrando-se alinhado com o nariz do morro que nos servia de observatório, passou, rutilante como uma flecha de fogo, e foi estalar, saltando em milhares de faíscas de luz, contra os vidros das janelas, que um segundo antes semelhavam olhos fechados e que, de improviso, pareceram abrir-se em um espasmo, como a dar um último adeus à vida, a mirar por vez temporã a paisagem, o sol, o horizonte, os montes taciturnos e os céus distantes. Mesmo tendo sido um segundo apenas, bastou para varrer a dor de um fim melancólico, pondo em seu lugar uma curiosa ilusão de apoteose...

Mas a morte era sentida; e quando um instante depois os focos elétricos, alinhados nas ruas, começaram a arder lá embaixo, pareceu que a cidade, como uma Ofélia predestinada e triste, se adornava, para morrer florida e linda, com grinaldas de luz. E então, naquele minuto tão propício às coisas do espírito, desejei, desejei com veemente desejo, possuir uma grande voz persuasiva e potente, para dizer à alma do Brasil:

- Como seria grato e bom socorrer Ouro Preto! Não é possível deixar morrer assim uma cidade que é carne de tua carne, força de tua força e glória de tua glória! Por que não fazer dela tua oficina, tua usina cerebral, tua Coimbra, tua cidade do ideal, teu horto de futuro! Onde floresceu tua velha opulência, por que não plantar a flor preciosa de tua nova cultura! Por que não encher esse canal onde rodaram rios de ouro, com corredeiras inesgotáveis de pensamento, de civismo docente, de ciência, de moral, de porvir! Entre as tumbas gloriosas e os berços livres há uma indestrutível correlação!

- Ouro Preto, eu o vejo, eu que sou um transeunte, vejo que enterra suas raízes no coração mesmo do passado brasileiro, e essas raízes não podem secar sem que sofra uma perda de seiva o coração onde estavam presas. A tradição é como uma amorosa enfermeira que nutre a alma com energias inesgotáveis, e são muito felizes os povos que podem mamar em seus mamilos maternais abnegações exemplares, bravuras, poesia, lendas de heroísmo, lições de fé!

- Ouro Preto, que sabe de grandeza e de infortúnio, que subiu e baixou todas as duras curvas da sorte, como se sua orografia bela e atormentada fosse o diagrama de seu destino, pode ser o magnífico cenário de um grande florescimento acadêmico, artístico, científico – pode ser um ponto de concentração de culturas e de irradiação de aptidões técnicas e de forças morais, armadas para todas as nobres conquistas!

Belo Horizonte e Ouro Preto não se excluem – completam-se, formando a cadeia ideal que une o que foi com o que está sendo e com o que será. Minas não pode, sem dúvida, dar vida e progresso a duas metrópoles – mas a União tem ali um dever e uma honra que tomar e fazer sua – porque se Ouro Preto acabasse, essa vida que hoje se vai extinguindo entre cinzas de lenda, não ia a ser só Minas a enlutada – o Brasil inteiro havia de sentir a ansiedade de uma dor e a brusca evidência de uma perda!

Para dizer algo assim, mas com uma grande voz persuasiva e cordial e com uma fraternal eloqüência, havia desejado em verdade a visita de uma Musa naquela tarde mansa e aprazível, naquele minuto bom, propício aos anseios do espírito. Não me foi dado...

E como quem anda na ponta dos pés na ante-sala de um enfermo grave, descemos em silêncio, para nos dirigirmos pouco depois à estação e partir para Belo Horizonte, onde a juventude, o ardor da força triunfante, a embriaguez da vida, pareciam antecipar-nos seus sanguíneos eflúvios, enquanto ficava lá atrás Ouro Preto, o passado, envolto em seu silêncio como em um sudário.


NOVOS HOMENS DE GOVERNO - Dr. Miguel Calmon du Pin y Almeida - Ministro de Ferrovias, Indústria e Obras Públicas
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