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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - URBANISMO (X)
Porto disputa espaço com a cidade (6-C)

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Metropolização, conurbação, verticalização. Os santistas passaram a segunda metade do século XX se acostumando com essas três palavras, que sintetizam um período de grandes transformações no modo de vida dos habitantes da Ilha de São Vicente e regiões próximas.

Em todo esse tempo, como nos cem anos anteriores, o porto foi avançando sobre o território urbano. E essa verdadeira guerra entre o porto e a cidade que o abriga ficou bem clara numa série de matérias do jornal santista A Tribuna, que continuou sendo publicada em 7 de outubro de 1980:


O porto também invadiu a Bacia do Macuco 
e os armazéns substituíram os esconderijos dos malandros
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A CIDADE SUBJUGADA - 3
A descaracterização da faixa portuária

O bonde 19 corria solto pela faixa do cais, mas diminuía a marcha quando passava pelo Golfo. Ali, as mulheres sentadas em cadeiras, à frente dos bares, eram disputadas na ponta da faca. Era o ponto preferido pelos trabalhadores portuários e também pelos marinheiros. A Bacia do Macuco, por sua vez, guardava debaixo de um rigoroso código de ética uma população de malandros e de valentões famosos como Alemãozinho, Moura, Navalhada e Simião. E também junto ao cais situava-se o berço da Cidade, o Outeiro de Santa Catarina e muitos prédios históricos. Tudo isso acabou, por imposição do porto, que esmagou o Golfo, que transformou o Macuco em um grande pátio de mercadorias e que apagou do mapa a área onde a Cidade nasceu. A descaracterização da faixa portuária foi lenta, mas contundente e arrasadora.

Texto: Álvaro de Carvalho Júnior e José Carlos Silvares
Fotos: Rafael Dias Herrera

O "bom malandro" desapareceu
(e seu código de ética também)

A Bacia do Macuco foi lugar de valentões, onde bom malandro não berrava e onde desaforo não era levado para casa. Local de respeito, mantinha uma convivência pacífica entre trabalhadores e bandidos, sob um código de ética particular. Morador do local não tinha do que reclamar: afinal, os chefões que circulavam por suas ruas estreitas e escuras mantinham a ordem, independentemente do trabalho policial. A lei era especial naquele reduto, regida por homens que não temiam enfrentar a polícia e que na maioria das vezes resolviam seus problemas de maneira diferente do convencional: a bala.

Esses homens sobreviveram enquanto puderam, até que o crescimento portuário acabou com terrenos baldios, com a favela Redenção - onde muitos desses personagens encontravam esconderijo seguro e onde a polícia pensava duas vezes antes de se aventurar. Essa alteração começou há uns 16 anos, quando o Moinho Paulista, com um grupo de gaúchos, resolveu comprar uma série de terrenos que ainda existiam. Duas ruas desapareceram com seu desenvolvimento, não restando absolutamente nada, além dos três prédios do Moinho.

Seu Maneco mora no local há 28 anos e conhece bem os segredos da Bacia do Macuco. Só não gosta quando se diz que o bairro era um reduto de bandidos e marginais. Era apenas, segundo ele, o lugar onde os homens faziam seus negócios, viviam em comum, com as rixas normais em qualquer comunidade. "Dizem que aqui havia bandidos - comenta -, mas na realidade ocorria exatamente como em qualquer outro bairro. É claro que de vez em quando trocavam alguns tiros, brigavam, mas isso não acontecia em qualquer outro lugar? Aqui era muito bom para morar, estou no Macuco há 28 anos e não pretendo mudar".

Comerciante bem situado, seu Maneco cita nomes que deixaram história na Bacia do Macuco: Alemãozinho, Benjamim, Cabeleira, Moura, Antoninho Navalhada, Simião. Pessoas que mantinham o domínio do pedaço, que tinham suas disputas, mas que respeitavam moradores, comerciantes e trabalhadores. "Até hoje - diz ele -, posso sair de madrugada que todos me conhecem. Nunca aconteceu nada comigo, pois sempre soube manter o respeito. Sabe de uma coisa? Se a gente tratar da nossa vida apenas, não acontece nada. Eles levavam suas vidas, eu levava a minha. Na padaria que eu tinha aqui no bairro, esses homens sempre me respeitaram e foram honestos. Nunca deixaram de pagar nada. Gente que vivia com dignidade. Não tenho nada contra, muito pelo contrário. Os tempos eram melhores".

Talvez fossem, realmente. Os bandidos, independente de qualquer coisa, sabiam como respeitar as famílias que viviam na região. Suas desavenças eram decididas a tiros, mas se resumiam em uma luta particular, sem envolvimentos com a população. "Coisa de malandro, de bom malandro. Mulher era sagrada e quando alguém saía da linha, o desafeto resolvia o problema o mais rápido possível. Coisa bem feita, com moral" - comentou um dos freqüentadores da Bacia, que preferiu não se identificar. "Afinal - justificou -, não sou tão importante assim".

Apenas a Polícia Marítima, na época chefiada pelo capitão Secco, tinha carta branca para entrar na Bacia do Macuco. Mesmo assim, dependia de negociações. O assunto, normalmente, era tratado com eficiência: a Polícia Marítima dizia o que, ou quem, queria, e os chefões providenciavam, "sem arruaças ou confusão", comentam alguns freqüentadores.

A Força Pública, por sua vez, não se arriscava. Diz o folclore do bairro que certa vez quatro de seus soldados decidiram invadir o reduto. Com uma viatura, desafiaram e desacataram vários malandros que bebiam nos bares. O resultado dessa imprudência não poderia ser pior: os quatro foram espancados e a viatura atirada no canal. Mais tarde, quando começaram as investigações, os policiais não conseguiram nada. Os moradores e freqüentadores não viram ou ouviram coisa alguma.

Com a mudança dos tempos, o bom malandro desapareceu, assim que sentiu que o ponto já não era mais o mesmo. Os terrenos foram tomados por construções de armazéns, firmas ligadas ao porto e empresas de transporte. A solução foi mudar de vida, abandonar a malandragem, cedendo lugar a outro tipo de malandro - aquele que não obedece ao mesmo código de ética, e que aos poucos acabou descaracterizando totalmente o local.

Hoje, esses homens não são considerados bandidos, apenas pés-de-chinelo, que assaltam qualquer um e acabam desabonando a fama que o bairro manteve durante tantos anos. O bom malandro sumiu, e com ele a ética. Restam apenas as histórias folclóricas e os nomes famosos, que são comentados nas mesas dos poucos bares que sobreviveram à invasão portuária.


Na área do Golfo, só escombros e lembranças da época que o porto esmagou
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A carga sufocou as mulheres
(e o Golfo virou folclore)

Ali aconteciam dois crimes por dia. Crimes passionais, de honra, resolvidos na hora e na base da peixeira. Ninguém viu, ninguém sabe quem foi... Mas os envolvidos eram, quase sempre, trabalhadores portuários.

O Golfo morreu, esmagado pelo avanço do porto. Na parede dos prédios que não foram derrubados resta até hoje o contorno das casas e dos bares demolidos. Resta ainda, na memória dos mais velhos, a imagem das mulheres sentadas em cadeiras à porta dos bares embandeirados, por toda a Avenida Xavier da Silveira, esperando o bonde 19 passar. O bonde partia da Rua São Bento e, sempre pelo cais, conduzia trabalhadores portuários até o Macuco. Quando passava pelo Golfo, o condutor diminuía a marcha. Por isso, os lugares à direita do bonde eram tão disputados. "Quando o bonde chegava à Rua São Bento, todo mundo corria para sentar nos lugares à direita", diz um velho freqüentador do Golfo, hoje exemplar pai de família.

A corrida era justificável. Quando o bonde passava pelos cabarés, em marcha-lenta, as mulheres logo se assanhavam, e os trabalhadores gritavam, diante do desfile, escolhendo esta ou aquela, saltando do bonde, disputando amores, matando. E havia um código para que o bonde andasse mais devagar: quando o cobrador tocava uma vez a campainha, o bonde parava; quando tocava duas vezes, o bonde andava; quando tocava três vezes, era para diminuir a marcha: à direita estavam as mulheres do Golfo, sentadas nas cadeiras, pernas cruzadas, pernas abertas, chamando os trabalhadores...

Era uma zona popular, que acompanhava o horário do porto. "As mulheres iam para a porta por volta das 10,30 horas, quando os trabalhadores deixavam o serviço no cais. O preço de uma noitada também era popular: Cr$ 5,00, enquanto na Boca da Rua General Câmara se cobrava Cr$ 50,00 ou mais". O depoimento é de um ex-morador do morro, também pai de família, assíduo freqüentador do pedaço na década de 50. "A gente tava sempre duro. Descia o morro, em turmas, e ia pro Golfo, tentar a sorte. Tentar a sorte era fazer um programa com as mulheres, mas sem pagar. A gente fazia cara triste, cumprimentava educadamente e, quase sempre, um de nós tinha sorte e não pagava. Ou então ia no fim da feira, de madrugada, quando as mulheres estavam cheias de dólares...".

O dólar era a moeda corrente ali. Na Boca ainda é, mas não como nos velhos tempos do Golfo, onde os marinheiros deixaram muitos meninos loirinhos e de olhos azuis. As casas de mulheres eram tão populares que os comandantes dos navios não punham os pés ali: iam todos comer a melhor lagosta da América do Sul, no Restaurante Chave de Ouro, onde também as famílias de tradição na Cidade almoçavam e jantavam. Ou então se disputava um lugar nas mesas de toalhas brancas do Marreiro ou do Boêmio, na Praça da República. Os cabarés de melhor freqüência eram o Casablanca, o Gambrinus, o Imperial e outros, quase sempre localizados na Rua General Câmara.

"Boca" da Tristeza - O Golfo teve morte lenta e agonizante. Começou a morrer com a retirada do bonde, no fim da década de 60, e também em vista da concorrência dos bares menores da Boca. Em 1974, quando o porto movimentou 19 milhões de toneladas de carga - 13 milhões de toneladas de importação e apenas seis milhões de toneladas de exportação -, as cargas importadas invadiram as avenidas que beiram o cais, lotaram pátios e armazéns, todos os vãos dos depósitos portuários e toda a área central da Xavier da Silveira.

Conta o folclore do cais que nessa época os trabalhadores pediam licença às mulheres do Golfo para deixar bobinas de aço e outras mercadorias importadas ali, junto aos bares e aos hotéis. De certa forma, a carga de importação sufocou as mulheres e acelerou o processo de degradação do Golfo, empurrando para dentro, para as ruas paralelas, todo aquele contingente humano que sobrevive graças ao porto. A Boca tornou-se uma cidade do sexo, com apresentações internacionais, ao vivo, um ponto turístico sempre mal explorado.

Com o anúncio da abertura da Avenida Portuária, beirando o cais, as casas de mulheres do Golfo, algumas da Boca e outras da área das ruas João Guerra e Conselheiro João Alfredo foram demolidas. A situação econômica dos trabalhadores também contribuiu para a decadência da faixa portuária, que perdeu o Restaurante Chave de Ouro e o ABC, no fim da Rua General Câmara, e transformou em escombros o Liberty, da Rua João Guerra, 17, onde ainda se pode ver algumas inscrições e o desenho imponente da Estátua da Liberdade.


O Outeiro sumiu, mas a Casa do Trem...
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O berço de Santos sumiu
(hoje só há fantasmas)

O bombardeio foi inevitável. E hoje, no cinturão do porto, os escombros estão à mostra - casas semi-destruídas, paredes cobertas de mato, muito lixo e fantasmas. Fantasmas que gritam todas as noites, chorando a destruição da faixa do cais.

Gente saudosista ainda ouve o som dos cabarés e enxerga, entre um gole e outro,  as formosas dançarinas, meninas que estontearam muitos comandantes de navios estrangeiros, nas décadas de 30, 40  e 50. Época de fausto, de luzes, de vestidos cintilantes, apagada da história pelo bombardeio na faixa do cais. Um bombardeio feito em nome da futura avenida portuária, de antiga promessa, e que um dia - quem sabe quando? - vai soterrar no asfalto o que restou do Golfo, entre o prédio da Receita Federal e a Rua João Otávio, zona que envolve o berço da Cidade.

A destruição de parte da Cidade está marcada nos 10 quilômetros da faixa portuária. Começa no fim da Via Anchieta, na Avenida Martins Fontes, onde o tráfego pesado, em nome do progresso, esburaca, sufoca, polui, mancha e mata. Ali se inicia a invasão dos caminhões, como moscas sobre o doce, às centenas, de uma só vez, rumo ao porto.

Entrando à esquerda, a destruição prossegue: a velha igreja de ouro, Igreja do Valongo, erguida em 1640, é sacudida pelo tráfego pesado. O altar dourado treme, as imagens do século XVI se desgastam e frei Basílio, na sua humildade, denuncia: "A igreja está sendo destruída pelo trânsito".

Ao lado, o terminal de trens da Santos a Jundiaí, prédio em estilo vitoriano, único em Santos, despeja diariamente dezenas de famílias, migrantes perdidos, em busca de melhores dias. Em frente, ainda na Rua São Bento, os casarões que sediaram a Prefeitura e a Câmara Municipal, no século passado (N.E.: século XIX), transbordam promiscuidade, lotados de forasteiros que se apegam às fantasias, nos bares e nos hotéis. Diante de uma borracharia, estrategicamente instalada num dos casarões, centenas de motoristas aguardam carga, batem papo, esperam o conserto do pneu. O trânsito infernal está destruindo também as árvores e postes em estilo antigo, do programa de revitalização do Valongo executado pela Prodesan e que não sobreviveu dois anos.

Lado a lado - Cidade e porto sempre caminharam lado a lado. O porto nasceu ali, na região do Valongo, onde os barcos descarregavam para trapiches e armazéns das proximidades. Pouco a pouco, entretanto, foi avançando sobre a Cidade, comendo-lhe grandes pedaços e levando à destruição vários prédios históricos.

Das marcas do nascimento da Cidade só restam mesmo uma rocha e a Casa do Trem na zona do Golfo, entre as ruas Tiro Onze e Visconde do Rio Branco. A Casa do Trem sobreviveu por milagre; a rocha continua lá porque um particular, João Éboli, construiu sobre ela sua casa, acastelada, em 1880, e que ainda existe. Essa região, do Outeiro de Santa Catarina, onde Braz Cubas fundou Santos, foi perdida em nome do progresso, com o avanço do porto. O outeiro foi demolido, restando apenas a rocha, onde a Câmara Municipal afixou, em 1902, uma placa comunicando que ali nasceu a Cidade.

Perto dali, onde estão hoje os prédios da Receita Federal, da Recebedoria de Rendas, do Instituto Brasileiro do Café e do Banco do Brasil, ligados ao porto, existiram o 1º Conselho, o Colégio dos Jesuítas, a Igreja do Colégio, a Igreja Matriz, o Pelourinho, o Forte da Praça e outros monumentos, em torno dos quais a Cidade evoluiu. A área foi devastada, por exigência da construção do porto e das vias de acesso, desaparecendo por completo os vestígios da povoação que, em novembro de 1546, passou à categoria de Vila, e onde os historiadores dizem que Dom Pedro I, em outubro de 1822, foi aclamado Imperador do Brasil. O berço da Cidade desapareceu, a área foi aterrada e, sobre ela, construído o porto.


...e a Igreja do Valongo resistiram, apesar de tudo
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