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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - SANTOS EM 1913 - BIBLIOTECA NM
Impressões do Brazil no Seculo Vinte - [13]

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Clique nesta imagem para ir ao índice da obraAo longo dos séculos, as povoações se transformam, vão se adaptando às novas condições e necessidades de vida, perdem e ganham características, crescem ou ficam estagnadas conforme as mudanças econômicas, políticas, culturais, sociais. Artistas, fotógrafos e pesquisadores captam instantes da vida, que ajudam a entender como ela era então.

Um volume precioso para se avaliar as condições do Brasil às vésperas da Primeira Guerra Mundial é a publicação Impressões do Brazil no Seculo Vinte, editada em 1913 e impressa na Inglaterra por Lloyd's Greater Britain Publishing Company, Ltd., com 1.080 páginas, mantida no Arquivo Histórico de Cubatão/SP. A obra teve como diretor principal Reginald Lloyd, participando os editores ingleses W. Feldwick (Londres) e L. T. Delaney (Rio de Janeiro); o editor brasileiro Joaquim Eulalio e o historiador londrino Arnold Wright. Ricamente ilustrado (embora não identificando os autores das imagens), o trabalho informa, nas páginas 133 a 143, a seguir reproduzidas (ortografia atualizada nesta transcrição):

Impressões do Brazil no Seculo Vinte


A famosa aléia das palmeiras, no Jardim Botânico
Foto publicada com o texto, página 134

Sociologia

A imensidade territorial, a que os brasileiros ligam, até certo ponto com razão, uma grande importância - pois ela lhes garante uma capacidade quase universal de produção - tem sido até aqui um estorvo considerável ao desenvolvimento harmônico do país, cujo maior flagelo econômico é, atualmente, a desproporção aniquiladora entre a população e o território.

Este, porém, é um mal que, antes de um século, estará sanado, quando, penetradas pelas estradas de ferro e arroteadas em todos os sentidos as ricas zonas quase desertas do Centro e do Oeste, o país receber o fluxo espontâneo da colonização abundante, de que carece.

A imensidade territorial traz, porém, ao Brasil, um outro inconveniente, mais difícil de remover: o obstáculo à formação duma unidade nacional.

O sr. barão d'Anthouard, que durante algum tempo foi ministro de França no Rio de Janeiro, e que dedicou ao Brasil um livro, Le Progrès Brésilien, que é um dos mais sérios estudos sociais, econômicos e financeiros da vida do Brasil nestes últimos tempos, mostra-se a este respeito muito cético: "Considerando a imensidade do Brasil, a disseminação, a variedade dos meios, o antagonismo dos interesses materiais, a gente põe-se a duvidar de que um sentimento nacional possa algum dia reinar sobre esse arquipélago humano, de que muitas ilhotas estão ainda privadas de comunicações rápidas e freqüentes entre si".

E mais adiante: "Não existe ainda um tipo brasileiro caracterizado. As tradições e a natureza se opõem a isso. Como o habitante da região equatorial da Amazônia poderia parecer-se com o das regiões temperadas do Sul, o ribeirinho do Oceano com o montanhês ou o pastor do interior? Entre o seringueiro que percorre as florestas virgens à procura da borracha, o industrial, o comerciante ou o financeiro das cidades, o plantador de café, de cana-de-açúcar, os pequenos lavradores do Paraná e do RIo Grande do Sul, existem forçosamente grandes diferenças físicas e morais; mas elas se atenuarão à medida que as relações se desenvolverem, que os interesses se solidarizarem, e desde já pode-se constatar, entre a maior parte dos brasileiros, certos traços comuns".

No capítulo relativo à população e raças, estudamos já, com a devida largueza, a formação do povo brasileiro, isto é, a ação dos diferentes elementos étnicos que contribuíram para isso na sua origem, e que ainda continuam a agir no mesmo sentido, formando a evolução de que resultará talvez, num futuro remoto, o tipo definitivo e mais ou menos homogêneo dos brasileiros.

O capítulo que vamos empreender - e que é apenas um complemento do outro - tem em vista apurar esses traços comuns a que se refere o sr. barão de Anthouard. Embora não seja fácil, mesmo com anos de seguida observação, fixar psicologias dessa natureza, o testemunho insuspeito de muitos viajantes poderá servir-nos para apurar as principais características do povo.

As características nacionais - Os brasileiros em geral revelam, antes de tudo, um excesso de franqueza e de espírito hospitaleiro, de que o tempo corrigirá naturalmente o exagero, de modo a reduzir essa qualidade mal limitada a uma verdadeira virtude bem compreendida. A hospitalidade brasileira é tradicional: em Minas Gerais, Bahia e outros estados do Norte, onde ela é mais acentuada, não é raro mesmo que um estranho, após algumas poucas visitas feitas a uma família, seja recebido no mais íntimo do seu lar.

O sr. Pierre Dénis, que não visitou somente as grandes cidades do Brasil, mas penetrou no interior das fazendas, escreve a este respeito, referindo-se particularmente ao brasileiro do interior: "Em cordialidade, delicadeza e tato, a hospitalidade dos brasileiros ultrapassa a imaginação do mais hospitaleiros dos europeus. Tal hospitalidade introduz a gente na intimidade de muitas famílias. Estas famílias são geralmente numerosas: dez filhos não são considerados nada de extraordinário. A autoridade paterna é respeitada; o filho, ao entrar, beija a mão do pai. A esposa ocupa-se com os cuidados caseiros, e ao marido compete fazer as honras da casa. Um estrangeiro raramente vê as mulheres brasileiras, exceto como hóspede de uma família. As mulheres não recebem visitas de homens; para elas, parece-me, a vida mundana cessa com o casamento".

O sr. Paul Walle (Au Brésil - De l'Uruguay au Rio S. Francisco) faz uma descrição mais ou menos idêntica:

"Tem-se falado muitas vezes dos sentimentos de hospitalidade dos brasileiros, e efetivamente é esse o traço mais saliente do seu caráter benevolente. Essa hospitalidade é tal que é difícil, para quem não a tenha recebido, imaginar a sua delicadeza e cordialidade. Isto se observa particularmente nas fazendas do interior, onde cada qual se esforça por provar ao estrangeiro que ele é bem-vindo e que lhe é agradecido por aceitar essa hospitalidade. Apenas chegado, fazem-lhe perguntas sobre seus gostos, sobre as suas preferências; imaginam tudo para ir ao encontro dos seus desejos. Essa hospitalidade não é, porém, indiscreta; ao cabo de dois dias, não o inquietam mais senão para saber se nada lhe falta, se ele está satisfeito, ou para lhe propor algum prazer novo. Pode-se imaginar melhor acolhimento? Ele parece por tal forma sincero que, em vez de se sentir confuso por se ver assim mimado como um velho amigo, o viajante acaba por achar esse acolhimento naturalíssimo. Recebemos a hospitalidade nos campos argentinos, no Chile, no Peru, e tudo isso de um modo largo; mas no Brasil sentimo-nos mais em nossa casa do que em qualquer outra parte. É principalmente no interior que é preciso ir julgar da hospitalidade brasileira".

No Rio de Janeiro e nos estados do Sul, onde a nacionalidade brasileira tem sido mais trabalhada por influências estrangeiras, não só o lar é mais discretamente fechado, nem só aos estrangeiros como aos próprios do país, mas ainda a hospitalidade não tem essa mesma cordialidade, feita de simplicidade e intimidade. Em todo caso, a expansão franca do acolhimento continua a ser a nota dominante do povo brasileiro, por toda a parte.

Dois amigos que passam uma semana sem ver-se, ao encontrarem-se na rua, caem aos braços um do outro, com demonstrações efusivas de contentamento, como se um dos dois houvesse regressado de uma excursão pelo Saara ou pelo Tibete, após cinco anos de ausência. Alguns viajantes gostam de ridicularizar esse hábito do abraço; mas ele corresponde perfeitamente à psicologia do povo, aos seus sentimentos expansivos de cordialidade e simplicidade.

"O fundo do seu caráter - diz ainda o sr. Paul Walle - é uma grande doçura, ele tem horror à violência; é simples, cortês e polido em suas relações, mas nota-se nele um leve tom de melancolia, um caráter doce e triste... Não parece ter prejuízos sociais nem religiosos. Um traço saliente no brasileiro é seu caráter profundamente democrata; ele recebe, aberta a mão a todo o mundo, seja branco ou negro, figure no alto ou em baixo na escala social; parece ter horror à pose e sobretudo não gosta da etiqueta; os mais altos magistrados e funcionários da Confederação são acessíveis a todos e dão mostra da mesma simplicidade para com todos. Isso, da maneira mais franca e cordial".

Outra qualidade (e estamos, por ora, assinalando somente as qualidades) do povo brasileiro, reconhecida unanimemente por todos os viajantes, é a sua requintada polidez, polidez que não é uma máscara de momento, mas uma qualidade inata, e que se pode verificar entre a própria gente do povo. A sra. Robinson Wright, uma norte-americana que tem vivido algum tempo no Brasil e lhe dedicou um livro escrito com muita simpatia pelo Brasil e seu povo - The New Brazil - diz, no último capítulo de sua obra: "Todo estrangeiro visitante de distinção tem palavras de louvor para as qualidades sociais do povo brasileiro. A cortesia encontra aí a sua expressão mais gentil; a hospitalidade não conhece atmosfera mais propícia; e não existe em todo o mundo melhor exemplo do que significa a polidez do que nas maneiras e no falar duma senhora ou dum cavalheiro tipicamente brasileiro".

O sr. Nevin O. Winter, outro norte-americano, autor do Brazil and Her People of Today, escreveu sobre o mesmo assunto: "Os fluminenses, como são chamados os moradores do Rio, são verdadeiros latinos e têm uma cortesia inata, que por vezes é quase opressiva. Se a mesma coisa fosse feita por um anglo-saxão, da mesma maneira exuberante, pareceria exagerada; mas, vindo de um brasileiro, é com tal graça e brandura, que o ato parece perfeitamente natural. A gente é saudada com uma fina polidez, especialmente depois de um ou dois encontros, e a despedida se faz com uma série de cortesias. O condutor de bonde entrega à gente o bilhete com uma pequena cortesia... O carregador, que leva a bagagem para o trem, pode discutir o preço do carreto, mas, combinado o negócio, tira cortesmente o chapéu, e faz votos de 'boa viagem'".

No bom acolhimento feito ao estrangeiro existe também, simultaneamente com a espontânea hospitalidade que está na índole boa do povo, a preocupação, um pouco ingênua no brasileiro, de deixar no espírito do outro uma boa impressão de si, da sua casa e da sua terra.

Dir-se-ia mesmo que a beleza natural da sua terra e as riquezas colossais, embora não postas em valor, do solo do Brasil, ocupam um lugar excessivo no conceito que o brasileiro forma de seu país, em face do estrangeiro, parecendo-lhe que esses predicados naturais dispensam o homem ali de uma série de esforços e conquistas, sem os quais as nações mais bem dotadas, como é sem dúvida o Brasil, não poderão nunca alcançar o posto no mundo que a Natureza lhes destinou.

Daí resulta, entre a gente do povo, um espírito de patriotismo mal compreendido, que lhe permite fazer, entre si, as maiores e por vezes as mais injustas acusações contra os seus estadistas e suas instituições, mas que se sente revoltado à mais leve censura do estrangeiro. A preocupação de obter um bom conceito do estrangeiro existe mesmo - e não há que censurá-la - entre os espíritos mais cultos e os homens de governo, quando se trata de receber ali os estrangeiros ilustres, como Guglielmo Ferrero ou Enrico Ferri, Anatole France ou Georges Clemenceau, William Bryan ou James Bryce.

A repercussão, na Europa, deste acolhimento feito às celebridades não tem sido, entretanto, inteiramente inútil à propaganda do país; porque "fazer a América", descobrir o Brasil ou a República Argentina, começa a ser uma espécie de esporte muito apreciada pelos intelectuais do Velho Mundo - políticos e artistas, jornalistas e filósofos, literatos e cientistas - os quais, de volta da sua viagem de "descoberta", costumam escrever ou dizer coisas, entre as quais, uma quantidade infindável de fábulas e anedotas mais ou menos pitorescas; são felizmente contrabalançadas por uma meia dúzia de livros, artigos ou simples entrevistas, bem observados e bem documentados, os quais têm contribuído utilmente para fazer melhor conhecer aquela parte do mundo que é um celeiro precioso de energias e de recursos para um futuro muito próximo.

Ainda há uma qualidade em que insistem os viajantes estrangeiros, referindo-se aos brasileiros: a sua inteligência, feita embora mais de sutileza e vivacidade do que de profundeza. "Em relação à inteligência - diz o sr. Paul Walle - ele (o brasileiro) não cede o passo a ninguém, assimilando facilmente toda nova produção científica e intelectual que a educação atira em pasto aos sequiosos de saber".

"Entre os brasileiros - observa a sra. Robinson Wright - as qualidades emocionais que pertencem essencialmente aos filhos dos climas meridionais são associadas aos traços mais intelectuais, os quais se manifestam por um espírito vivo, delicada percepção e força imaginativa".

E o sr. George Crichfield, outro norte-americano que, na sua interessante obra The Rise and Progress of the South American Republics, se mostra muito empenhado - como já se verá adiante - em apontar os defeitos da América Latina e de seu povo, diz, falando dos latino-americanos em massa: "Uma acentuada característica nacional dos latino-americanos é seu maravilhoso desenvolvimento do senso de percepção e extraordinária sutileza de espírito. Eles não têm um espírito profundo, mas o que têm é tão afiado como uma navalha e aguçado como a ponta duma espada". O sr. Crichfield prossegue: "Um homem tem que ser muito forte ou excessivamente ágil de espírito para proteger-se contra os inimigos que se lhe deparam na América Latina... Os diplomatas americanos (do Norte, entende-se), em comparação com os espertos representantes dos governos latino-americanos, não passam de asnos para raposas. Existem alguns mentirosos nos Estados Unidos, mas se estes descendentes de Ananias entrassem em competição direta com seus irmãos latino-americanos, eles provavelmente abandonariam a prática de uma arte em que não podem ter esperanças de passar, algum dia, de simples amadores".

Já procuramos assinalar, com o testemunho dos viajantes estrangeiros, as principais virtudes nacionais do povo brasileiro, e é tempo de prevenirmos que ele não abre exceção à regra de todos os povos, em que as virtudes são sempre acompanhadas de defeitos. O primeiro defeito dos brasileiros apontado geralmente pelos que os têm visitado é a sua natural indolência.

"O povo brasileiro - disse o sr. E. Levasseur, que foi um bom amigo do Brasil - é orgulhoso desse país em que a natureza tornou fácil a vida material, ao ponto mesmo de enervar muitas vezes a energia laboriosa sob a dupla influência dum sol tropical e duma terra fecunda. O homem de negócios adia para o dia seguinte o que poderia fazer no mesmo dia, e o operário vai descansar quando ganhou com que comer até o fim da semana".

O sr. Paul Walle, assinalando a mesma indolência, observa ainda: "A conseqüência lógica dessa indolência é uma certa indiferença aparente: o brasileiro se laisse aller, laisse vivre. Ele parece ignorar o valor do tempo: dir-se-ia que nunca tem nada a fazer, e no entanto os negócios caminham regularmente, os jornais aparecem exatamente, os trens partem à hora... Quando se observa esta indolência habitual, a gente pergunta a si mesma como o Brasil pôde atingir tão depressa o seu desenvolvimento presente, que é para admirar; mas é preciso dizer em verdade que esse belo país teria atingido um desenvolvimento ainda mais notável, se não se sentisse na maior parte dos seus filhos uma certa falta de constância e firmeza de vontade".

Para justificar em parte a indolência nacional, é preciso atentar um pouco ao clima, que deprime a energia laboriosa: tanto assim é que não se pode acusar de indolência os brasileiros que vivem de S. Paulo para o Sul, onde a temperatura é mais fresca.

O sr. Paul Walle, que observou os brasileiros com simpatia, mas com sinceridade, assinala ainda outros defeitos: a maledicência, por exemplo, "não por maldade - explica -, porque o fundo de sua índole é excelente, mas ele gosta dos mexericos sobre o próximo, e gosta principalmente de falar, falar..."; e ainda o gosto do jogo, assim como o da política - "que vicia tudo, falseia tudo e atrofia toda idéia larga" -, a qual tomou, nas preocupações de todos no Brasil, "um lugar verdadeiramente grande demais".

O sr. Akers, na sua History of South America, assim se exprime sobre os brasileiros: "A nota dominante do caráter brasileiro advém do tronco latino que colonizou esta parte da América do Sul. As circunstâncias modificaram as idéias em muitos respeitos mas não ao ponto de alterar os princípios fundamentais que presidem e governam a ação e linha de pensamento. No solene mistério que cerca a Igreja Católica, insinuaram-se supersticiosas lendas africanas e, de mistura com estas, há traços de folclore indígena. O produto é uma imaginação pronta a receber sem raciocinar as impressões passageiras, e neste solo as doutrinas de Augusto Comte rapidamente se enraizaram em espíritos falhos de equilíbrio mental, produzindo muitos frutos maus. A perspectiva mental é contraída, e falta energia para tomar decididamente uma nova direção... Agravada pelas condições tropicais em que se desenrola a vida, há uma ausência de educação mental na mocidade e um sistema social extremamente frouxo em relação a uma pauta moral de conduta cotidiana. A crença no espiritualismo é muito difundida, e por vezes inspira a esse povo naturalmente tímido um fanatismo que o arrasta cegamente ao perigo. O brasileiro em regra não é falho de inteligência, mas seu espírito é incapaz de persistência para assenhorear-se de intrincados pormenores. Esta falta de persistência na orientação causou ao Brasil muitos desarranjos no passado, e é uma permanente ameaça ao país no futuro".

Nenhum escritor, porém, se compraz tanto em apontar os defeitos dos latino-americanos em geral como o sr. Crichfield. Depois de mostrar que as qualidades atribuídas geralmente aos povos da América Central e do Sul - como hospitalidade, cortesia e inteligência - não são senão ilusórias, assim cataloga seus defeitos o escritor norte-americano: "Ver-se-á que praticamente todos os latino-americanos revelam as seguintes peculiaridades em grau maior do que qualquer outro povo com que sou familiar: a) falta de persistência, de orientação, de exatidão, de fim definido; b) incapacidade de se aplicarem persistente e continuamente à aquisição de conhecimento sobre um assunto; c) negligência e falta de previsão; d) desprezo pelo trabalho ordinário e disposição para evitá-lo; e) desejo de fazer grande ostentação, pretender ser o que realmente não são; f) satisfação com a aparência exterior de saber, sem desejo real de penetrar no fundo de qualquer proposição; g) falta de iniciativa, de invenção, de energia criadora; h) posse duma multidão de teorias e idéias impraticáveis que são um mal, mas de que é impossível desembaraçá-los; i) completa ausência do sentimento de responsabilidade; j) ignorância dos mais elementares processos de fazer as coisas; k) disposição para falar, mais do que para agir; l) disposição para fazer o trabalho da maneira mais espetaculosa, mas produzir o que é realmente atamancado e sem valor; m) disposição para fazer dinheiro pelo expediente mais do que numa ocupação legítima; n) muito pouco respeito à propriedade ou aos direitos pessoais de outros, particularmente estrangeiros; o) absoluta indolência e falta de verdadeira ambição, e oposição ao progresso".

A simples enumeração dos defeitos apontados pelo sr. Crichfield, que se compraz muitas vezes em repetir a mesma acusação em vários números, serve para mostrar que ela não é produto de uma observação despreocupada, sem parti pris; mas é impossível negar que há aí muitos dos defeitos que se podem realmente apontar ao povo brasileiro em particular.

Eles são vantajosamente contrabalançados por virtudes reconhecidas e proclamadas por quantos viajantes têm visitado o Brasil; e assim - dotados de qualidades cujas vantagens são sobretudo para os que com eles tratam, e de vícios cujas desvantagens são eles mesmos que sobretudo sofrem - pode-se dizer, em média, dos brasileiros, que eles são antes bons do que maus e, como a sua terra, francamente abertos ao estrangeiro, que ali encontrará uma gente hospitaleira sobre um solo farto.

Tipos e aspectos populares - Ainda não há muitos anos, a vida social da generalidade das famílias brasileiras consistia, nas calasses elevadas como na classe média, nas visitas que se faziam reciprocamente, para fim de se manter a amizade, que, mesmo guardada à distância, é no Brasil um sentimento sólido.

Por ser muito grande a terra, os 22½ milhões de indivíduos que a povoam não se adensam; formam grupos, que se derramam pelo território imenso, ficando por isso uns dos outros tão longe que, tendo convivido juntos alguma vez, estes ou aqueles perdem a esperança de se verem mais tarde.

Acresce ainda a deficiência de condução, a circunstância de não se acharem ligados todos os pontos do território por meio de estradas de ferro; há o afastamento produzido pela distância e pela quase inacessibilidade de certos pontos em relação a outros.

Daí a diferença, às vezes profunda, de certos costumes, o fato de se saborear freqüentemente no Amazonas a tartaruga, na Bahia o vatapá, no Rio Grande do Sul o churrasco, no Paraná o mate chimarrão, em Alagoas o sururu, no Maranhão o arroz de cuchá. Em relação à alimentação, há estados que absolutamente o que se come em muitos dos outros.

Há ainda a diferença de sotaque, de linguagem, de construção de frase e de exclamações, que as divisões da população criam e adotam insensivelmente, sem artifício, em obediência à marcha natural da formação das coisas, segundo o ambiente, o meio, a tradição.

O caipira, ou matuto, ou tabaréu ou capichacha, isto é, o tropeiro, o vaqueiro, o canoeiro, o carreiro, o garimpeiro, o sertanejo pobre, rude, áspero e simples, que só conhece a mata, a vila do interior, o recesso intransponível para a civilização, posto de repente na cidade do Rio de Janeiro, na Avenida Beira-mar, defrontando o mar bravio e os palácios suntuosos que a Engenharia levantou, vendo passar ao longe um bonde elétrico, e rodar a seu lado um automóvel, ouvindo a palavra pedante de um desses muitos smarts, que a mania do esnobismo faz difícil de entender, mesmo entre os concidadãos - diria estar dormindo, ou simplesmente declararia que estava sendo enganado.

Porque, na roça, aquele brasileiro não vê ninguém acima de determinado coronel da Guarda Nacional, nomeado por politicagem para servir ao governo quando for preciso; porque ele, que não sabe ler, ignora se isto aqui é República ou Império, se o rei ou o presidente é feito de pedacinhos de ouro, enxertados de pedras preciosas; se é possível rodar sozinho, sem que uma parelha de bois o puxe, o carro luxuoso movido a gasolina que ele não vê.

O caipira não acredita nos palácios a não ser nos dos contos da Carochinha, os quais trazem sempre à sua imaginação o atributo que nas histórias da infância não os abandona: o encanto. Atirado de chofre no seio da civilização, defronte do pano branco onde se fazem projeções de cinematógrafo, depois de ter passado entre arcos de luz elétrica, em cujas peras ele não pode acender o seu imenso cigarro de palha, o caipira não acreditará, nem se convencerá, porque não compreenderá a linguagem da cidade, o contorno empolado da frase, o galicismo ainda fresco, introduzido pelas cantoras de um café concerto, que trouxeram para o Rio de Janeiro, com a sua petulância e a sua graça, o último argot parisiense, nem entenderá a gíria da cidade, nem o português clássico de Herculano.

Ele não compreenderá coisa alguma; e quando abrir a boca, para manifestação do seu pensamento, do seu protesto, da sua surpresa, ninguém saberá o que ele quer dizer. Então o matuto se poderá rir da ignorância da gente ilustrada.

Foi isto só para exemplificar e fazer uma referência ao camponês do Brasil, bem mais ingênuo do que os dos países adiantados onde a superpopulação faz pequenos os territórios e aproxima todos os homens, que se conhecem e se entendem.

O mesmo se daria com o gaúcho arrojado e farrombeiro do Sul, homem dos pampas, destemido cavaleiro, laçador de gado. Aconteceria sorte idêntica ao cangaceiro do Norte, sertanejo ou jagunço aguerrido, que preza a honra própria como um padre jesuíta deve prezar o nome de Deus. Essa gente que traz sempre uma afiada faca à cinta e a tiracolo um rifle carregado, posta de súbito entre os deslumbramentos da cidade adiantada, faria o papel do matuto simples e não seria compreendida pelo atilado espírito up to date dos moços que já cultivam o esperanto, mas não conhecem o patuá da sua terra.

A extensão vastíssima do território impede a vida social entre os seus habitantes, os quais não se conhecem, salvo os moradores das cidades, a gente do comércio, os que se atiram à vida marítima e os indivíduos ilustrados que fazem dentro do Brasil, ou pelo seu litoral, para ir de um a outro ponto, viagens mais demoradas do que as que realizam os melhores paquetes entre o Rio de Janeiro e o primeiro porto acessível da Europa.

O que entretém as relações dos brasileiros entre os seus estados distantes são os jornais, além da crônica viva dos viajantes que gostam de referir impressões. No interior, entretanto, da mesma terra em que moram, os brasileiros têm a sua vida social. Reúnem-se na igreja, onde ouvem a prédica do pároco, nem sempre convincente e tolerante; reúnem-se nos serões de festa, onde, na falta de instrumento mais fácil de ser manejado, figuram o harmônio e a viola, que a inteligência e a instrução musical ensinam a tocar.

Nesses serões, onde se dança e se batuca e se canta, entretêm os roceiros as suas amizades, ou ainda, nas caçadas, que é o esporte mais à mão para quem não conhece outro...

No litoral do Brasil, em toda a sua extensão, aqui e além moram os pescadores, o tipo mais indolente do caipira. Saem à pesca, quando pressentem peixe na costa. Arrostam os mais graves e tremendos perigos em canoas e jangadas, nas quais passam dias, esperando, no mar largo, aquilo para que saíram de casa. Realizada a pesca, ei-los desfrutando o proveito da pescaria. Um pouco de farinha, um pouco de cachaça, um pedaço de carne seca. E uma viola! Nisto se resume a vida. E eles não querem mais nada, porque recusam os oferecimentos de trabalhos agrícolas que lhes fizerem...

Nas cidades, há vida social, especialmente na do Rio de Janeiro, onde ela é brilhante e tem repercussão ruidosa nos jornais. Há os teatros, os grandes clubes, onde se dão partidas familiares como o dos Diários e o da Tijuca; há os prados de corridas, os clubes de futebol; há os cinematógrafos, cerca de 80 em todos os bairros; há o prazer de reunir amigos e famílias na casa em que se mora; há as recepções em dias determinados, nas casas ricas. Em todos esses lugares se reúne todos os dias a sociedade carioca, uma parte da qual não tem dinheiro, nem vai às recepções do Itamarati, nem aos Diários, porque não é convidada.

Mas os cinemas são o ponto de reunião para toda a gente. Tendo sido introduzido pouco depois de 1889, só depois de 1900 e com a criação da Avenida Central o cinematógrafo se estabeleceu definitivamente e desenvolveu e prosperou. Toda a gente o freqüentava, mas ia lá ao princípio, como se vai às missas fúnebres de 7º  dia, séria e carrancuda; ia divertir-se como se fora para um serviço inevitável. No momento em que se escrevem estas linhas, já há grande mudança: o povo sorri não somente às fitas que acha graciosas, sorri ao povo. São caras que já se conhecem e folgam em se encontrar de novo. Essa cordialidade acentua-se, ainda que não nitidamente, nas classes cultas, onde se trocam olhares inteligentes e leves sorrisos que servem para comentar um acontecimento qualquer que chega, ao mesmo tempo, ao conhecimento de todos.

O cinema, no Rio de Janeiro, foi uma solução para a crise de alegria que havia na cidade. Os teatros, na época em que ele começou, estavam abandonados; o público não os freqüentava e se a companhia pertencia ao número dessas que facilmente se organizam na capital, era certo que o teatro ficaria vazio e teria que fechar as portas.

Entretanto, já esses mesmos artistas, nos mesmíssimos teatros, haviam sido alvo da admiração e dos aplausos de platéias delirantes que, anos atrás, ligavam importância máxima às coisas de ribalta e sabiam a vida e a idade dos atores, e conheciam os romances das atrizes.

Essa crise teve uma solução para o público, no cinematógrafo. Para o público e para os artistas, há uma explicação: os clubes dramáticos. Era tal, na época do delírio referido, o interesse pelo teatro, que para entrar mais no seu segredo e desempenhar a sua função educativa ou de simples passatempo, o exemplo do velho Clube da Gávea, onde representavam amadores mais ou menos consumados, frutificou assombrosamente. Em cada canto da cidade se armou um palco e nele representou a sociedade A ou X. Todos os repertórios foram explorados nas récitas mensais desses clubes.

Enquanto isso, o teatro profissional se depauperou, ficara às moscas, sem se atinar com a causa verdadeira. Custava, como ainda hoje, 5$000 uma cadeira no teatro. Custa, no clube dramático, 5$000 a mensalidade de cada sócio. E como cada sócio, com aquele simples dinheiro, pode levar ao espetáculo toda uma numerosa família, até se fazia uma considerável economia no orçamento individual. Era menos bom, mas fazia rir e chorar do mesmo modo, e o preço era muito menor.

Entretanto, a despeito da miséria dos artistas nacionais (que assim se consideram todos os que falem a língua do país, mesmo sendo de origem portuguesa, desde que aqui se achem há anos), eles têm resistido, fazendo mambembes no interior, pelos estados a dentro; e em 1911, com o exemplo dos espetáculos seccionados, nos cinemas, adotaram também o sistema de representar duas ou três vezes na mesma noite a mesma peça, com grande redução no preço dos lugares. O processo estava acertando e dava, no momento, confortadora esperança aos profissionais do palco. Isso, no Rio de Janeiro, porque no resto do Brasil só há o teatro de importação; o que chega do estrangeiro, muito raro, e o que vai da capital da República.

Nesta há, para satisfação da vaidade carioca, um lindo teatro novo, o Teatro Municipal, do qual se dá desenvolvida notícia noutro lugar desta obra. De teatros, mais ou menos velhos e de tradições mais ou menos gloriosas, pode-se contar uma meia dúzia, todos funcionando no momento de se escrever esta notícia, pleno verão, graças aos preços reduzidos, preços de cinema, das companhias que os ocupam. E há ainda, no gênero aproximadamente teatro, os chopps-concertos, onde se esganiçam desembaraçadamente cantores e cantoras de 6ª classe...

O povo diverte-se muito com o esporte, em cuja lista figura em primeiro lugar o prado de corridas, que todos os domingos se enche de uma multidão alegre que conhece a força dos parelheiros inscritos e faz, por intermédio da casa da poule, grandes apostas.

O futebol e rowing ocupam o segundo lugar na predileção dos esportistas. O críquete, o croquet, o lawn-tennis são diversões em que eles não entram tão convictamente como aquelas.

O prado de corridas tem um atrativo especial, que é o jogo. O povo brasileiro gosta, indubitavelmente, de jogar. Não vai às corridas porque se interesse pelo aperfeiçoamento da raça cavalar, mas para comprar poules, em 1º e em 2º lugar, poules duplas, combinações pari-a-la-côte, e o bolo, uma criação recente dos book-makers que aceitam de cada apostador, por um preço determinado, palpites para todos os primeiros e segundos lugares. No fim da corrida, aquele dos jogadores cujos palpites concordarem, em maior número, com as vitórias alcançadas, junta o bolo, isto é, recebe todo o dinheiro que ele e outros apostadores entregaram ao book-maker, para aquele fim. Apenas o intermediário desse jogo fica, para pagar o seu trabalho e a sua iniciativa, com 20% da renda geral...

O jogo é uma paixão popular, que não se limita às casas de tavolagem que, no RIo, se ostentam pomposamente com o dístico de clubes recreativos. Essas sociedades não têm sócios: têm um empresário, que fornece aos freqüentadores o meio de perderem o seu dinheiro na roleta, no bacará, no campista, nos dados etc. O capital das bancas é do mesmo empresário, que é sempre um cavalheiro muito generoso, muito gastador e duma chance incomparável... porque, no jogo, não há como bancá-lo! Nos clubes há restaurante, barbearia, conforto. Freqüentam-no militares de todas as patentes e civis de todas as categorias, desde o deputado desgarrado da família no estado longínquo, até o rufião abjeto, que se mascara nas boas roupas, e entendem muito bem dos pró e contra de todos os jogos.

Os clubes são também freqüentados por cocottes, únicos exemplares do sexo feminino que ali aparecem e que abancam ou borboleteiam das onze horas da noite às cinco da manhã, em torno das mesas de jogo. Mas, para entrar em tais casas é preciso ser livre, poder passar na rua as noites, sem as peias da família.

Por isso, o povo tem o seu jogo predileto, o jogo do Bicho, fundado pelo barão de Drummond, proprietário do Jardim Zoológico. Porque estivesse o Jardim abandonado pelo público, inventou aquele titular um meio de dar ao freqüentador uma bonificação. Escolheu 25 bichos, cuja lista publicou, e todos os dias punha o retrato de um deles num quadro fechado, que abria ao cair da tarde. Os bilhetes de entrada eram numerados de 1 a 100, ou de 01 a 00; de quatro em quatro dezenas, se encontrava um bicho novo: por exemplo, o avestruz tem as quatro dezenas 01 a 04, o cão 17 a 20, o porco 69 a 72. O freqüentador que tivesse em seu bilhete de entrada uma dezena correspondente, segundo a lista publicada, ao bicho que se achava guardado no quadro, ganhava do barão a importância de 20$000.

O povo encheu o jardim todos os dias e não se contentava com o número que lhe cabia por sorte na bilheteria. Escolhia as dezenas, isto é, escolhia o grupo, o bicho, e comprava não uma entrada, mas muitas, no mesmo bicho ou em vários, de acordo com o seu palpite. Ficou tão escandaloso esse jogo do bicho que a polícia acabou com ele. Mas não pôde com o que o substituiu, que é a mesma lista de 25 bichos, nos quais se joga para receber o prêmio conforme o final do prêmio maior da Loteria Federal, que corre todos os dias, no Rio de Janeiro. Todas as casas de bilhetes vendem bicho e já não pagam só 20$. Pelos grupos, pagam 23$ e 24$; pelas dezenas, em que o ponto joga contra 99 probabilidades, pagam 90$; pelas centenas, 900$ e, pelo milhar, 8:000$000. É um dos movimentos mais consideráveis do Rio de Janeiro, apesar de proibido. E é inextirpável.

O brasileiro é católico; teme a Deus, vai à igreja, respeita os padres, admira as freiras, estima as irmãs de caridade. Depois que se separou a Igreja do Estado, belo ato de tolerância do governo provisório de 1889, a Igreja cresceu, as festas dos santos tiveram maior pompa. O catolicismo só lucrou com isso.

Em geral, o povo conhece mal as rezas do catecismo, mas ajoelha-se nas horas de ajoelhar, na igreja tem confiança no céu. Rara é a casa de família em que as mulheres não tenham, num lugar de honra, no quarto da mais velha, um oratório com imagens variadas, vigiadas sempre, dia e noite, por uma lamparina de azeite. No Interior, de Norte a Sul, o costume é, por assim dizer, absoluto.

Graças a esse sentimento religioso, o brasileiro é naturalmente filantropo: funda asilos que sustenta com o dinheiro dos ricos e dá esmolas aos mendigos de profissão. Estes últimos, no ano de 1911, abalaram um pouco a opinião, porque se descobriram mendigos que possuíam contos de réis, entre eles um cego espanhol, que se fazia acompanhar de um cachorro sujo: possuía um pé-de-meia com 11:000$. Dois ou três mendigos foram falados como proprietários de prédios! A opinião ficou abalada ligeiramente. As esmolas continuaram: eram antigamente de 20 Rs., são agora de 100 Rs. Dê-se-lhes menos, que eles torcem o nariz.

E entretanto, há asilos para mendigos, para órfãos, para meninos transviados, para a velhice desamparada. Por causa desse espírito de caridade, não se morre de fome no Brasil, onde se encontra trabalho e, quando a preguiça é grande, não falta quem sustente malandros com esmolas de tostão.

A mandriice infelizmente vive na roça e nas cidades. Naquela, enquanto não chegam braços fortes de imigrantes ambiciosos, as lavouras grandes, trabalhadas com maquinismos modernos e aperfeiçoados, e as pequenas, onde é ainda a enxada primitiva que revolve a terra, ficam ao sol e ao tempo. Os agricultores querem pagar ao operário o mesmo que o estrangeiro vai receber, mas o trabalho, de manhã à noite, assusta-o. talvez a reminiscência do braço escravo, que cultivava o chão com o seu suor e as suas lágrimas, seja também um empecilho para a luta. Esses vadios são seus vencidos. Outros abandonam o interior pela vida agitada das cidades, onde prosperam as indústrias, onde o operário tem companheiros e espíritos de classe formada. Por isso, e porque a gente da cidade raramente a abandona pela vida do campo, as populações se adensam e tão grande interesse apresenta a luta pela vida, onde a concorrência do operário diminui um pouco o preço do trabalho. Este, entretanto, tem fatalmente a sua remuneração: seja carpinteiro, pintor, ourives, carregador, músico ambulante, o homem nas cidades ganha para viver. No comércio, na indústria, na lavoura e nas artes, sempre há remuneração.

A expressão músico ambulante sugere a lembrança de uma indústria musical popular, que se implantou no Rio de Janeiro: a banda alemã. São alguns maus discípulos de Wagner que, depois de andarem como nômades pelo mundo, aportaram à capital do Brasil, com seus instrumentos sujos, suas leves estantes de ferro, suas partituras maculadas e um velho repertório exausto. Tocaram e quem os ouviu os achou desafinados e sem originalidade. Um deles saiu com um pires a recolher espórtulas... No fim do dia, tendo tocado o Trovador e a Viuva Alegre uma centena de vezes, recolheram-se com o bolso cheio. Repetiram o passeio e o repertório no dia seguinte. E assim o fazem todos os dias, debaixo da luz incendiária do sol ou desabrigados da chuva, que os não perturba, nem constrange, nem abate. Na ocasião em que se escrevem estas linhas, não há uma banda alemã no Rio de Janeiro: há três. O povo é generoso e paga para que não o aborreçam. Por isso é que as bandas alemãs têm vivido e prosperado.

Há ainda um aspecto popular que não encaramos: as relações dos brasileiros entre si e a confiança admirável que qualquer indivíduo inspira a outro na primeira ocasião. Nunca se imagina que a pessoa com quem se trata esteja de má fé, que seja um larápio, um passador de moeda falsa, um criminoso de morte. Basta o malvado abrandar a voz e falar como qualquer pessoa urbana e delicada, para que se lhe dê crédito. Os próprios argentários, que têm encontrado em sua vida elementos para se considerar formados numa escola de experiência, são arrastados algumas vezes.

O logro mais freqüente é o que consiste em subscrições para fazer um presente rico a um homem da situação: uma espada de ouro, uma estátua de bronze, um álbum. O larápio, sujeito fino, que diz representar uma comissão qualquer, apresenta à sua vítima uma lista em que há assinados nomes de pessoas altamente colocadas. O solicitado ignora que são falsas aquelas assinaturas e, por vaidade, para não se deixar ficar aquém dos outros, assina com a sua letra o seu grande nome e cai com o dinheiro. Quando se descobrem essas falsas homenagens, já o rapinante empolgou centenas de mil réis ou contos de réis...

Outra modalidade de furto, em que se atrapalham as pessoas ingênuas, escolhidamente as que chegam do interior à cidade, consiste no conto do vigário. Diz o larápio, a quem pretende furtar, que o vigário de tal parte encarregou de entregar um conto de réis a uma instituição de caridade. O larápio tem cara tímida e boçal. Espera que o cavalheiro recém-chegado lhe faça a fineza de dar destino a dádiva. Está ali o conto de réis... Nem é preciso contar... E dá-lhe um embrulho amarrado, onde só há papel imprestável. Não admite que conte o dinheiro, visto que o cavalheiro inspira confiança. Pede apenas que misture com o seu... E tal jeito dá com o lenço em que pretende reunir o dinheiro do viajante com o seu conto do vigário, que em poucos minutos o otário se vê roubado. O gatuno está longe.

Mas a polícia conhece os contistas do vigário, como os arrombadores de portas, os emissores de subscrições, os criminosos de morte, os estelionatários, os batedores de carteiras, os moedeiros falsos. Quando é necessário, prende-os, mas é forçada a passar por eles sem lhes tocar, no meio das ruas, quando conquistam a sua liberdade por meio de habeas-corpus, impronúncias, fiança, absolvição.

Nas cidades, em particular no Rio, o criminoso apanhado em flagrante é levado para a delegacia de polícia, autuado, faz declarações e as assina, assim como às das testemunhas. Metem-no no xadrez, uma sala separada da liberdade por uma grade de ferro ou de madeira grossa. Daí vai para a Casa de Detenção, onde espera o sumário de culpa, presidido por um juiz, numa pretoria. Vai meses depois ao júri, tendo esperado essa oportunidade na Casa de de Detenção, onde passa vida disciplinada, só ou em companhia de outros, num cubículo asseadíssimo, lavado de claridade, sempre sob a fiscalização de guardas que passeiam sem cessar nas longas galerias, a cujos lados se acham as prisões. É um regime que não abate o acusado, que não o degrada.

Condenado pelo júri, espera ainda, na Detenção, vaga na Casa de Correção, onde entra no regime penitenciário, do sofrimento, do trabalho e do silêncio, sendo que a pena máxima que pode cumprir, segundo o Código, é de 30 anos. Ainda assim, não é a Casa de Correção o lugar mais sinistro: há as masmorras da ilha das Cobras, os subterrâneos de Santa Cruz, há Fernando de Noronha, há as prisões antigas inspiradas nos rigores dos tempos anteriores à Independência.

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Vistas da Avenida Beira-Mar, Rio de Janeiro
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A vida social no Rio de Janeiro - Antes de esboçarmos pormenorizadamente as diversas feições da vida de sociedade no RIo de Janeiro, convirá acenar a duas considerações de ordem mais geral, que não são sem influência sobre ela. De um lado, a imensa extensão territorial do Brasil, que de certa forma isola a sua capital, não lhe permitindo um contato direto contínuo com o resto do país; de outro, a completa remodelação de hábitos e costumes trazidos à vida social da cidade pela sua transformação material.

Enquanto a República Argentina, por exemplo, concentra toda a sua vida social num ponto - Buenos Aires - aonde se vão divertir, além da população originária da cidade, todos os forasteiros das províncias e todos os estrangeiros aportados ao pais, aglomerando ali a quinta parte da população total da República, o Rio de Janeiro quase não pode contar senão com a sua própria população estável, permanente, acrescida por uma pequena contribuição de forasteiros dos vizinhos estados do Rio de Janeiro e de Minas Gerais e pelo contingente, ainda bem reduzido, de estrangeiros que visitam o Brasil em caráter de recreio. Os estados do Norte estão em comunicação mais rápida e mais fácil com a Europa, e os do Sul com Buenos Aires e Montevidéu, do que com o Rio de Janeiro.

Por outro lado, o rico e adiantado estado de São Paulo, próximo da capital federal, dispõe de uma esplêndida capital, S. Paulo, que já conta mais de trezentos mil habitantes e progride sempre numa proporção rapidíssima, dotada com todos os melhoramentos e todos os centros de diversões de uma grande cidade.

Destarte, o Rio de Janeiro é como um grande rio sem afluentes para a sua vida social: o que representa ao mesmo tempo uma vantagem e uma inferioridade. A inferioridade está em que - na ausência desse público cosmopolita instável, que é a fortuna de Paris, e não sofrendo do congestionamento demográfico que permite a Buenos Aires gozar de uma vida intensamente européia num país que, fora da sua capital, conta pouco mais de cinco milhões de habitantes - o Rio de Janeiro não dispõe ainda de uma vida social tão intensa como se poderia esperar de uma população que, bem recenseada, não pode ser inferior a um milhão de habitantes.

Mas a compensação desta desvantagem está em que, não trabalhada por influências estranhas ou passageiras, a cidade do Rio de Janeiro pode manter uma feição de vida caracteristicamente própria; e assim como a sua topografia, universalmente afamada, apresenta uma beleza que é toda sua, assim também a sua vida social, quando se penetra bem no íntimo dela, oferece um encanto que é todo seu.

Outra consideração que é preciso ter em vista, tratando-se da vida social do Rio de Janeiro, é a da sua completa remodelação operada com as grandes transformações materiais por que vem passando a cidade, desde a presidência do dr. Rodrigues Alves, com o dr. Pereira Passos à frente da Prefeitura Municipal.

Noutra parte deste livro, ocupamo-nos largamente desses melhoramentos materiais, que transformaram a velha cidade colonial na grande metrópole saneada, iluminada fartamente, de ruas largas e construções arejadas, com um vastíssimo lençol de asfalto a calçá-la e um desenvolvido serviço de tráfego elétrico em todas as direções.

As avenidas largas e arejadas, co os novos estabelecimentos comerciais abertos por toda a parte, trouxeram para as ruas uma grande multidão que outrora se deixava enfurnar em suas casas ou, quando muito, se encafuava exclusivamente pela estreita e sombria Rua do Ouvidor; as ruas asfaltadas e as avenidas macadamizadas e alcatroadas provocaram o tráfego dos automóveis de passeio, hoje em número superior a mil; os novos teatros e casas de diversões atraíram o público para seus espetáculos; a preocupação de acabar nas casas tudo que era velho e sujo, substituindo-o pelo novo e limpo, estendeu-se aos habitantes, que passaram a ter uma preocupação maior de toilette; o saneamento da cidade permitiu o desembarque dos passageiros em trânsito, os quais outrora se deixavam escondidos cuidadosamente nas cabines dos transatlânticos, a pensar nos horrores da febre amarela, e hoje saltam para a Avenida, enchem as joalherias de lapidações de pedras preciosas, ou tomam automóveis a percorrer os pontos mais pitorescos da cidade, de onde voltam sobraçando flores e folhagens, e dando às ruas novas um aspecto de turismo perfeitamente civilizado.

A tudo isso, que se operou em menos de dez anos, com uma ânsia de renovamento tão grande como a apatia em que viveu a cidade durante séculos, correspondeu naturalmente uma transformação nos hábitos e processos de vida social, que se ressente todavia da pressa com que foi operada, dando ao estrangeiro do Velho Mundo uma acentuada impressão de civilização apressada, que é alias, em maior ou menor dose, a civilização de toda a América.

Pelas suas ruas e avenidas circulam indivíduos que se diriam agitados por uma febre de atividade, e que correspondem à nova cidade transformada, acotovelando-se com outra multidão de desocupados, que passeiam lentamente o seu ócio pelas vitrinas das lojas ou estacionam em plena rua, diante do mais insignificante incidente que lhes serve de espetáculo.

É que a rua não é, no Rio de Janeiro, como no geral das grandes capitais, apenas um lugar de passagem para quem precisa de fazer compras ou tratar negócios, mas também um mostruário público, cujo espetáculo o carioca (o natural da cidade) goza particularmente. Por isso é que as senhoras cariocas aparecem pelas ruas, freqüentemente, com um luxo de trajar que surpreende geralmente as estrangeiras acostumadas a ir à rua sobriamente vestidas, como convém a quem só o faz por uma necessidade imediata, reservando as suas toilettes para as recepções em sua casa ou para os divertimentos públicos.

Ao lado desse apuro excessivo de toilette das senhoras e dos flaneurs elegantes, o estrangeiro encontra ainda no Rio - apesar de algumas tentativas de legislação municipal, não cumpridas devidamente - o espetáculo desagradável de gente descalça, em grande parte negros, em mangas de camisa, sujos e mal vestidos.

Ao contrário de Londres, abandonada aos sábados por uma boa parte da população que vai descansar no campo do labor da semana, o sábado é o dia por excelência de movimento nas ruas cariocas. Enquanto a parte comercial da cidade se afadiga em encerrar os balancetes e transações da semana, prolongando por vezes o trabalho até mais tarde do que nos outros dias, a Avenida Central e a velha Rua do Ouvidor, com as ruas que nelas desembocam, regurgitam de gente vinda de todas as partes - da aristocracia de Botafogo, da burguesia abastada de Tijuca e S. Cristóvão, a até a gente pobre da Cidade Nova e dos subúrbios mais distantes - que vem "fazer a Avenida", descansando nos cafés e confeitarias, nos cinematógrafos e casas de chá, onde se faz igualmente vida social.

E o movimento do dia se prolonga pela noite, nos teatros e cinematógrafos, nos cafés cantantes e clubes noturnos, cuja vida começa depois de meia noite e se prolonga até uma madrugada que, pelo verão, já é dia claro. O repouso dos domingos (porque no Rio ainda não existe propriamente uma classe social que viva só para divertir-se, dispensada do trabalho) garante a todos essa folga farta das noites do sábado.

A vida de clube durante o dia é ainda muito restrita na capital brasileira, e a não ser nos salões aristocráticos do Clube dos Diários, onde se jogam cartas, lêem-se jornais e revistas, e se toma chá ou café, pode-se dizer que ela não existe. Em compensação, os clubes noturnos, freqüentados pelas cocottes e onde se fazem os jogos permitidos e quase sempre os não permitidos também, oferecem por vezes um espetáculo brilhante de luxo e civilização.

Também não existe no Rio - como o Bois de Boulogne em Paris, ou Palermo em Buenos Aires - um passeio cotidiano, em que se possa ter o espetáculo coletivo da elegância da cidade. Um corso de carruagens e automóveis que se fazia semanalmente na encantadora Avenida Beira-Mar, e que era muito prestigiado pelas seções mundanas dos jornais, foi pouco a pouco declinando de animação até desaparecer por completo - flor artificial que era.

A multiplicidade de passeios pitorescos a poucos minutos do centro da cidade - a Avenida Beira-Mar, particularmente no trecho de Botafogo, as praias de Leme e Ipanema, a Quinta da Boa Vista, sem falar da Tijuca, Silvestre, Gávea e o Corcovado, um pouco mais distantes - faz com que a população que passeia em carros e automóveis se distribua e se disperse pela cidade, sem concentrar-se particularmente num ponto.

Para se ter, portanto, uma impressão de conjunto da elegância carioca, é preciso penetrar nalgumas das recepções particulares de famílias, geralmente à tarde, nas quais se faz palestra e música ao mesmo tempo que o flirt (N.E.: flerte); nos bailes oficiais do Itamarati (palácio do Ministério do Exterior) e do Catete (palácio da Presidência da República), ou nos do Clube dos Diários, reservados aos seus sócios; ou ainda nos espetáculos de inverno das companhias dramáticas francesas, das companhias de ópera italianas ou dos grandes virtuosi de reputação mundial, os quais, outrora um pouco abandonados pela música fácil da ópera italiana, despertam atualmente os maiores entusiasmos e têm teatros repletos, a preços não raramente exorbitantes, quase sempre agravados ainda pela especulação de cambistas.

É verdadeiramente encantador o espetáculo de uma dessas platéias, no velho e mal guarnecido casarão do Teatro Lírico, ou no Teatro Municipal, recentemente construído com todos os aperfeiçoamentos mais modernos de instalação, mas com um luxo e uma riqueza de mármores e ouro demasiado ostensivos. Dir-se-ia que os pais de famílias ricas, que freqüentam esse espetáculos, destinam às toilettes de suas esposas e filhas, durante a estação teatral, a mais importante verba do seu orçamento anual; e se, isoladamente, se pode acusar essas toilettes de não muita sobriedade, um excesso de jóias nos colos e nos dedos e de cores nos tecidos, a impressão do conjunto é quase sempre deslumbrante.

Passada a estação teatral, constituída pelas grandes companhias estrangeiras que se instalam no Lírico e no Municipal, de julho a outubro, mais ou menos - e que são geralmente as mesmas contratadas para Buenos Aires, em sua ida ou em sua volta da grande capital argentina - fica a cidade apenas com os seus cinematógrafos, alguns dos quais luxuosíssimos, por disporem duma seleta freqüência, com as companhias portuguesas de operetas e revistas, uma ou outra companhia popular de ópera ou opereta italiana, e alguma rara companhia nacional que, por enquanto, não começando senão agora a gozar da proteção oficial, arrasta uma existência miserável, entre o sucesso de alguma revista de ano e o agrado certo de algum dramalhão sentimental.

Também, por esse tempo, já vem chegando o verão carioca, cujos primeiros calores se fazem sentir desde novembro e dezembro e vão até março e abril; e a população elegante abandona a cidade para veranear na serra. Com o presidente da República, as famílias mais ricas sobem para Petrópolis, a Brighton brasileira, uma cidadezinha encantadora, com todos os requintes da civilização e todo o bem-estar do campo, residência habitual do corpo diplomático, verdadeira Embaixatriz da Civilização em meio da Natureza.

Outra parte sobe para Teresópolis e Friburgo, também no estado do Rio de Janeiro, como Petrópolis, mas onde não se faz a mesma vida de luxo e de elegância, e em compensação se goza dum clima admirável e um bem-estar perfeitamente campestre.

E, finalmente, os que não podem abandonar os seus negócios no Rio, deixam as suas residências no centro da cidade e sobem para a Tijuca, Silvestre ou Paineiras, dentro ainda do perímetro da cidade, a uma hora do centro, e onde, em pleno verão carioca, não são raras as noites em que os friorentos dormem sob cobertores.

Em Petrópolis, a vilegiatura é geralmente preenchida com passeios matinais, piqueniques, afternoon teas e vários bailes, que tornam o repouso estival tão fatigante de vida social como a temporada teatral do Rio de Janeiro; mas nos outros sítios de verão, goza-se geralmente de um efetivo repouso e ócio, que não raro chega à monotonia. A descida das serras começa a se fazer em março e abril, aos anúncios das companhias de teatro que vão fazer a temporada. Apenas algumas famílias mais entusiásticas das festas carnavalescas, que caem em pleno verão, descem nos três dias oficiais do carnaval, de que voltam a repousar na sua vilegiatura da serra.

O Carnaval é a festa mais popular do Rio de Janeiro, e os estrangeiros de toda a parte do mundo que o tenham passado ali algum ano são quase unânimes em declarar que, em nenhuma outra cidade, ele é tão animado, tão estonteante, como na capital brasileira. Desde muitas semanas antes começam os ensaios do Carnaval, um pretexto para rufos de tambores e bailes orgiáticos pelos clubes carnavalescos, e para passeatas em carros, à meia fantasia, todos os sábados à noite, pela Avenida Central e outros pontos mais concorridos da cidade.

No sábado que precede os três dias oficiais, designados pela Igreja, começa de fato, à noite, o Carnaval carioca. De todos os pontos da cidade, inclusive os mais remotos subúrbios, chega gente para a Avenida Central, que se congestiona de povo, paralisando quase completamente o tráfego, ao ponto que um carro ou automóvel, para fazer o trajeto de ponta a ponta, uma distância de menos de três quilômetros, leva por vezes duas horas. Os carros e os bondes regurgitam de máscaras, e as ruas se apinham de simples curiosos, armados de lança-perfumes, serpentinas e confetti (que começam a cair em desuso).

A grande animação do Carnaval carioca procede de que ele não é uma festa exclusiva do povo, mas a festa coletiva da cidade, em que participa quase toda a gente, não sendo raro que se cruzem no mesmo ponto de diversão os patrões da família mais aristocrática com o mais humilde dos seus criados. O Carnaval da rua termina com a passagem dos últimos carros de alegoria e crítica, carros em cuja confecção se despendem muitos meses e muitos contos de réis.

Três clubes principais - os Democráticos, os Fenianos e os Tenentes do Diabo - disputam as simpatias da população, e, a bem dizer, no dia seguinte a um Carnaval terminado, cada qual deles só se preocupa em organizar o Carnaval do ano seguinte.

À passagem de cada carro desses préstitos, o povo ergue vivas e morras entusiásticos, não raro contestados por um grupo contrário, resultando daí, por vezes, conflitos sanguinolentos.

Outro aspecto curioso fornecido pelo Carnaval das ruas ao estrangeiro é o dos denominados cordões, grupos pobres de mascarados com o seu estandarte e sua cantiga especial, que fazem longas distâncias a pé para chegarem ao centro da cidade, onde exibem danças de caráter africano e indígena, sendo geralmente constituídos por negros, alguns dos quais fantasiados de índios.

Por volta de meia noite, a Avenida começa a esvaziar-se, sendo os bondes e os carros tomados de assalto pelas famílias, que na sua maioria têm de fazer a viagem de pé ou penduradas aos balaústres. Terminado o Carnaval das ruas, começa o Carnaval dos clubes e teatros, transformados em salas de baile à fantasia, onde se dança e bebe desbragadamente, até à hora da manhã em que os que têm serviço a fazer vão à casa mudar a fantasia carnavalesca pela roupa do trabalho. Não têm conta os empregados do comércio e criados de servir que passam assim quatro noites e quatro dias seguidos sem dormir mais do que algum cochilo furtivo, tirado durante o dia de trabalho.

A quarta-feira de cinzas raia sobre uma população de caras lívidas e chupadas pelas vigílias e excessos; e a noite desse dia é o momento mais triste da vida social no Rio de Janeiro: tresnoitados pelo Carnaval, os foliões aproveitam a quarta-feira para recuperar o sono em atraso e, uma vez acabado o jantar, metem-se a dormir, deixando a cidade silenciosa e deserta, como um cemitério que fora antes um pandemônio.

Do entusiasmo popular que reina pelo Carnaval são triste testemunhas as estatísticas demógrafo-sanitárias publicadas logo depois, as quais registram sempre um aumento sensível dos óbitos por pneumonia e tuberculose. Pode-se dizer que o Carnaval resume toda a alegria popular da cidade, que o considera sua festa única.

As datas nacionais - do Descobrimento, da Independência, da Libertação dos Escravos, da Proclamação da República, e outras - passam entre simples atos oficiais, com alguma parada ou passeata militar, bandas de música pelas ruas e fogos de artifício queimados à noite, mas sem que o povo tome parte propriamente nelas. E para isso há uma razão de ordem histórica, já assinalada noutra parte deste livro: no Brasil, mesmo as transformações sociais mais bruscas se têm operado sem violência, por simples propaganda jornalística e tribunícia, sem participação das massas populares, que portanto não têm a sua alma ligada à vida nacional.

Ao contrário de Londres, onde os domingos são religiosamente guardados, uma grande parte da população do RIo de Janeiro só se diverte aos domingos: toda a numerosa classe média, constituída pelo que se poderia chamar a burguesia comercial e burocrática. A parte aristocrática da população, a bem dizer, só aproveita dos domingos a missa, pela manhã, em determinadas igrejas, consideradas mais elegantes.

Pode-se afirmar que a maioria da população carioca é católica, mas dum catolicismo sem extremos de religiosidade, porque a liberdade de cultos - que, no Brasil, não é uma simples garantia constitucional, mas uma realidade absoluta, pelo menos nos grandes centros - não deixa margem a essa espécie de partidarismo religioso que, noutras partes, extrema os fiéis dos diferentes credos.

Nessas condições, boa parte da população assiste sua missa aos domingos, uns pela missa em si, e não poucos pelo pretexto de encontros de toda a natureza, dentro do templo ou à saída do ofício religioso, que nas igrejas do Largo do Machado, de Botafogo, da Candelária, e outras, é um belo espetáculo de vida social carioca.

Esta parte da população geralmente termina aí o seu domingo de fora de casa, a menos que se decida a ir às corridas de cavalos, no Jóquei ou no Derby Club, que são muito freqüentadas, ou a algum match de futebol, esporte que começa a ter grande incremento no Rio de Janeiro e em S. Paulo, em detrimento das regatas, que ainda hoje animam por vezes a formosa enseada de Botafogo, e eram, há alguns anos atrás, o esporte favorito da população carioca.

A classe média, porém, tira os domingos para ir aos teatros, que dão sempre, nesses dias, além do espetáculo da noite, uma matinê, geralmente a preços populares nas companhias estrangeiras. Os estrangeiros em geral, os ingleses particularmente, dedicam os seus domingos aos campos de esportes ou a passeios pela baía e pelas florestas e praias que circundam a cidade, inclusive o Jardim Botânico, cujas aléias de palmeiras e de bambus são universalmente afamadas.

Vamos encerrar este capítulo sobre a vida social no Rio de Janeiro, transcrevendo uma observação curiosa feita pelo sr. Pierre Dénis, na introdução do seu livro sobre o Brasil: "Os brasileiros gostam de chamar o seu país um país novo. Eles estão, de fato, animados de esperanças em relação ao seu futuro, e conscientes de que o seu presente é cheio de promessas. Mas o Brasil não é um país novo no sentido de não ter um passado nem tradições. Embora o passado não esteja tão completamente apagado como  noutras partes, e embora a tradição e a história tenham aí maior vitalidade, o europeu que chega diretamente da Europa dificilmente dará por isso: mas ele será vivamente impressionado se vem a conhecer o Brasil depois de viajar noutros países americanos, como a Argentina e os Estados Unidos. Ele sentir-se-á menos estrangeiro, menos expatriado: não experimentará a sensação de surpresa ou estupefação que experimenta na Argentina ou nos Estados Unidos, países com uma imperfeita organização social, falhos de fundamentos radicais e de uma hierarquia social... O Brasil é, pois, num sentido, um velho país. Por isto, ele oferece maior interesse do que qualquer outra parte da América. Ele foi povoado pelas raças brancas há mais de trezentos anos... O Brasil possui o que os Estados Unidos e a Argentina não possuem: uma verdadeira aristocracia, o privilégio de uma velha sociedade".

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Vista de Botafogo (Rio de Janeiro)
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Festas e tradições populares - Os seringueiros, na Amazônia, povo rude e heróico que ali chega, impelido de outros pontos pela pobreza e pela ambição, mereceram de um grande escritor brasileiro, cedo e tragicamente roubado ao seu fecundo e inimitável trabalho intelectual, algumas páginas altamente interessantes. São homens que vão para as margens dos grandes rios do Norte do Brasil atrás da miragem da fortuna, mas em tais condições de contrato - que aceitam sem relutar, visando o grande lucro - que se escravizam aos empreiteiros, os verdadeiros nababos da indústria de borracha, aventureiros felizes que, em geral, tomaram de assalto as posições em épocas de conquista mais fácil.

São trabalhadores que só conhecem a luta pelo pão de cada dia e pela ampla remuneração do futuro. Referindo-se ao dia feliz dessa gente, no Alto Purus - o sábado de Aleluia - diz o escritor: "Só lhe é lícito punir-se da ambição maldita que o conduziu àqueles lugares, para entregá-lo, manietado e escravo, aos traficantes impunes que o iludem - e este pecado é o seu próprio castigo, transmutando-lhe a vida numa interminável penitência. O que lhe resta fazer é desvendá-la e arrancá-la da penumbra das matas, mostrando-a nuamente, na sua forma apavorante, à humanidade longínqua...

"Ora, para isso, a igreja dá-lhe um emissário sinistro: Judas; e um único dia feliz: o sábado prefixo aos mais santos atentados, às balbúrdias confessáveis, à turbulência mística dos eleitos e à divinização da vingança. Mas o monstrengo de palha, trivialíssimo, de todos os lugares e de todos os tempos, não lhe basta à missão complexa e grave. Vem batido demais pelos séculos afora, tão pisado, tão decaído e tão apedrejado, que se tornou vulgar na sua infinita miséria, monopolizando o ódio universal e apequenando-se, mais e mais, diante de todos que o malquerem.

"Faz-se-lhe mister, ao menos, acentuar-lhe as linhas mais vivas e cruéis, e mascarar-lhe no rosto de pano, a laivos de carvão, uma tortura tão trágica e em tanta maneira próxima da realidade, que o eterno condenado pareça ressuscitar ao mesmo tempo que a sua divina vítima, de modo a desafiar uma repulsa mais espontânea e um mais compreensível revide, satisfazendo à saciedade as almas ressentidas dos crentes, com a imagem tanto possível perfeita da sua miséria e das suas agonias terríveis.

"E o seringueiro abalança-se a esse prodígio de estatuária, auxiliado pelos filhos pequeninos, que deliram, ruidosos, em risadas, a correr por toda a banda, em busca das palhas esparsas e da forragem repulsiva de velhas roupas imprestáveis, encantados com a tarefa funambulesca, que lhes quebra tão de golpe a monotonia tristonha de uma existência invariável e inquieta.

"O Judas faz-se como se faz, sempre: um par de calças e uma camisa velha, grosseiramente cosidos, cheios de palhicas e molambos; braços horizontais, abertos, e pernas em ângulo, sem juntas, sem relevos, sem dobras, aprumando-se espantadamente, empalado no centro do terreiro. Por cima, uma bola desgraciosa representando a cabeça. É o manequim vulgar, que surge em toda a parte e satisfaz à maioria das gentes.

"Não basta ao seringueiro. É-lhe apenas o bloco de onde vai tirar a estátua, que é a sua obra-prima, a criação espantosa do seu gênio rude, longamente trabalhado de revezes, onde outros talvez distinguem traços admiráveis de uma ironia sutilíssima, mas é para ele apenas a expressão concreta de uma realidade dolorosa.

"E principia, às voltas com a figura disforme: salienta-lhe e afeiçoa-lhe o nariz; reprofunda-lhe as órbitas; esbate-lhe a fronte; acentua-lhe os zigomas; e aguça-lhe o queixo, numa massagem cuidadosa e lenta; pinta-lhe as sobrancelhas e abre-lhe com dois riscos demorados, pacientemente, os olhos, em geral tristes e cheios de um olhar misterioso; desenha-lhe a boca, sombreada de um bigode ralo, de guias descabidas aos cantos. Veste-lhe, depois, umas calças e uma camisa de algodão ainda servíveis; calça-lhe umas botas velhas, cambadas... Recua meia dúzia de passos. Contempla durante alguns minutos. Estuda-a. Em torno, a filharada, silenciosa agora, queda-se expectante, assistindo ao desdobrar da concepção que a maravilha. Volteia o seu homúnculo: retoca-lhe uma pálpebra; aviva-lhe um rictus expressivo na arqueadura do lábio, sombreia-lhe um pouco mais o rosto, cavando-o; ajeita-lhe melhor a cabeça; arqueia-lhe os braços; repuxa e retifica-lhe as vestes...

"Novo recuo, compassado, lento, remirando-o, para apanhar de um lance, numa vista de conjunto, a impressão exata, a síntese de todas aquelas linhas; e renova a faina com uma pertinácia e uma tortura de artista incontentável. Novos retoques, mais delicados, mais cuidadosos, mais sérios; um tenuíssimo esbatido de sombra, um traço quase imperceptível na boca refegada, uma torção insignificante no pescoço engravatado de trapos... E o monstro, lento e lento, num transfigurar insensível, vai-se tornando em homem. Pelo menos a ilusão é empolgante...

"Repentinamente, o bronco estatuário tem um gesto mais comovedor do que o parla! ansiosíssimo, de Miguel Angelo; arranca o seu próprio sombreiro; atira-o à cabeça do Judas; e os filhinhos todos recuam, num grito, vendo retratar-se na figura desengonçada e sinistra o vulto de seu próprio pai. É um doloroso triunfo. O sertanejo esculpiu o maldito à sua imagem. Vinga-se de si mesmo: pune-se, afinal, da ambição maldita que o levou àquela terra; e desafronta-se da fraqueza moral que lhe parte os íntimos de rebeldia, recalcando-o cada vez mais ao plano inferior da vida decaída, onde a credulidade infantil o jungiu, escravo à gleba empantanada dos traficantes, que o iludiram.

"Isto, porém, não satisfaz. A imagem material da sua desdita não deve permanecer inútil num exíguo terreiro de barraca, apagada na espessura impenetrável, que furta o quadro de suas mágoas, perpetuamente anônimas, aos próprios olhos de Deus. O rio que lhe passa à porta é uma estrada para toda a terra. Que a terra toda contemple o seu infortúnio, o seu exaspero cruciante, a sua desvalia, o seu aniquilamento iníquo, exteriorizados, golpeantemente, e propalados por um estranho e mudo pregoeiro...

"Em baixo, adrede construída, desde a véspera, vê-se uma jangada de quatro paus boiantes, rijamente travejados. Aguarda o viajante macabro. Conduz-lo prestes, para lá, arrastando-o em descida, pelo viés dos barrancos avergoados de enxurros. A breve trecho, a figura demoníaca se apruma, espetada, à popa da embarcação ligeira. Faz-lhe os últimos reparos: arranja-lhe ainda uma vez as vestes; arruma-lhe às costas um saco cheio de ciscalhos e pedras; mete-lhe à cintura alguma inútil pistola enferrujada, sem fechos, ou um caxerenguengue gasto; e fazendo-lhe curiosas recomendações, ou dando-lhe os mais singulares conselhos, impele, do cabo, a jangada fantástica para o fio da corrente.

"E Judas feito Ashverus (N.E.: judeu errante, personagem mítico que seria contemporâneo de Jesus, um coureiro que por importunar Cristo no caminho do calvário, foi por ele amaldiçoado e condenado a vagar pelo mundo até o fim dos tempos) vai avançando vagarosamente para o meio do rio. Então, os vizinhos mais próximos, que se adensam curiosos, no alto dos barrancos, intervêm ruidosamente, saudando com repetidas descargas de rifles aquele bota-fora. As balas chofram a superfície líquida, eriçando-a, cravam-se na embarcação, lascando-a; atingem o tripulante espantoso; trespassam-no. Ele vacila um momento no seu pedestal flutuante, fustigado a tiros, indeciso, como a esmar um rumo, durante alguns minutos, até se reaviar no sentido geral da correnteza.

"E a figura desgraciosa, trágica, arrepiadamente burlesca, com os seus gestos desmanchados, de demônio e truão, desafiando maldições e risadas, lá se vai, na lúgubre viagem, sem destino e sem fim, a descer sempre, desequilibradamente, aos rodopios, tonteando em todas as voltas, à mercê das correntezas, de bubia sobre as águas. Não para mais.

"À medida que avança, o espantalho errante vai espalhando em roda a desolação e o terror; as aves, retransidas de medo, acolhem-se, mudas, ao recesso, das frondes; os pesados anfíbios mergulham, cautos, nas profunduras, espavoridos por aquela sombra que ao cair das tardes e ao subir das manhãs se desata estirando-se lutuosamente, pela superfície do rio; os homens correm as armas e numa fúria recortada de espantos, fazendo o pelo sinal e preparando os gatilhos, alvejam-no desapiedadamente. Não defronta a mais pobre barraca sem receber uma descarga rolante e um apedrejamento. As balas esfuziam-lhe em torno; varam-no; as águas zimbradas pelas pedras encrespam-se em círculos ondeantes; a jangada balança; e, acompanhando-lhe os movimentos, agitam-se os traços e ele parece agradecer, em canhestras mesuras, as manifestações rancorosas em que tempesteiam tiros e gritos, sarcasmos pungentes e esconjuros e sobretudo maldições que revivem,na palavra descansada dos matutos, este eco de um anátema vibrado há vinte séculos: 'Caminha desgraçado'.

"Caminha. Não para. Afasta-se no volver das águas. Livra-se dos perseguidores. Desliza em silêncio por um estirão retilíneo e longo; contorneia a arqueadura suavíssima de uma praia deserta.

"De súbito, no vencer a volta, outra habitação: mulheres e crianças que ele surpreende à beira do rio, a subirem desabaladamente pelo barranco acima, desandando em prantos e clamores. E logo depois, do alto, o espingardeamento, as pedradas, os convícios, os remoques. Dois ou três minutos de alaridos e tumultos, até que o judeu errante se forre ao alcance máximo da trajetória dos rifles, descendo... E vai descendo, descendo... Por fim não segue mais isolado. Aliam-se-lhe na estrada dolorosa outros sócios de infortúnio; outros aleijões apavorantes sobre as mesmas jangadas diminutas, entregues ao acaso das correntes, surgindo de todos os lados, vários no aspecto e nos gestos, ora muito rijos, amarrados aos postes que os sustentam; ora em desengonços, desequilibrando-se aos menores balanços, atrapalhadamente, como ébrios; ora fatídicos, braços alçados, ameaçadores, amaldiçoando; outros humílimos, acurvados num acabrunhamento; e por vezes, mais deploráveis, os que se divisam à ponta de uma corda amarrada no extremo do mastro esguio e recurvo, a balouçarem enforcados...

"Passam todos aos pares, ou em filas, descendo, descendo vagarosamente... Às vezes, o rio alarga-se num imenso círculo; remansa-se; a sua corrente torce-se e vai em giros muito lentos perlongando as margens, traçando espiral amplíssima de um redemoinho imperceptível e traiçoeiro. Os fantasmas vagabundos penetram nestes amplos recintos de águas mortas rebalsadas; e estacam por momentos. Ajuntam-se. Rodeiam-se em lentas e silenciosas revistas, misturam-se, cruzam então pela primeira vez olhares imóveis e falsos de seus olhos fingidos; e baralham-se-lhes numa agitação revolta os gestos paralisados e as estaturas rígidas. Há ilusão de um estupendo tumulto sem ruídos e de um estranho conciliábulo, agitadíssimo, travando-se em segredos, num abafamento de vozes inaudíveis. Depois, a pouco e pouco, debandam. Afastam-se; dispersam-se. E acompanhando a correnteza, que se retifica na última espira dos remansos, lá se vão em filas, um a um, vagarosamente, processionalmente, rio abaixo descendo".

Esse divertimento do Judas boneco, em sábado de Aleluia, é comum em todo o Brasil. Não tem nos estados a mesma peculiar solenidade do Judas-Ashverus, que Euclides da Cunha descreveu em tão bela página, mas o povo do interior, e mesmo nas cidades, não esquece, naquele dia de desafogo religioso, o traidor de Jesus.

Em todo o Norte, é ainda hoje costume fazerem desengonçado homem de palha, sem os cuidados que merece o Judas do Purus, mas com todo o aspecto humano possível. Não lhe põem pistola à cinta, mas calafetam a palha do enchimento de bichas chineses, de bombas chilenas, amarram-lhe pistolas de S. João nas mãos e nos pés e reúnem tudo isso num só sistema pirotécnico, ligado por um tubo de papel recheado de pólvora.

Em geral, esses Judas são sacrificados à noite, no meio da alegria triste dos garotos, que, finda a queima, apedrejam o triste herói fumegante. Conforme o fervor católico ou os meios de fortuna de quem os fabrica, esses Judas são mais ou menos enfoguetados.

Algum se faz para ser queimado em praça pública, sobre uma grande roda de fogo que, enquanto gira, jorra centelhas de ouro, esmeralda e turquesa. São, quando assim, festejos que assumem o caráter de festejo intensamente popular.

No Sul do Brasil não se usa isso. Povo mais prático, no Rio de Janeiro, os que fazem Judas não têm a intenção de deprimir o discípulo que vendeu o Mestre, mas tão somente a de acanalhar o seu semelhante, em cuja porta encostam, pela madrugada, o boneco destinado a surpreender o dono da casa, ao amanhecer. Esses Judas produzem ridículo e não é raro o pugilato, o desforço pessoal, entre a vítima da brincadeira da Aleluia e o seu presumido autor.

Há uma variante disso: é a publicação de um número único de um panfleto, jornaleco, pasquim, intitulado Judas, o qual circula só no sábado e se ocupa, exclusivamente, da vida particular dos que não o redigiram. É uma publicação imoral que, na capital da República, foi terminantemente proibida e tem sido eficientemente perseguida pela polícia. Esse jornal é sempre mais desprezível do que o Judas de palha e roupa escura, que, apenas produzido o efeito da troça e da malquerença, é apupado e arrastado pelos caminhos, até desaparecerem esfacelados os seus últimos trapos.

Há grande quantidade de festas típicas no Brasil, sendo predominante em todas elas o motivo religioso. Destacaremos: a de Nazaré, no Pará; das Neves, na Paraíba do Norte; de S. José de Ribamar, no Maranhão; do Monte e Saúde, em Pernambuco; de Bonfim, na Bahia; da Penha no Rio de Janeiro e em S. Paulo.

Todas elas, com exceção da última, que é quase só um pretexto para a exploração do jogo ao ar livre, desde a roleta com banca franca de centenas de contos até o búzio, pequeno jogo em que se depenam os jogadores mais pobres, são festas em que o elemento popular toma parte com particular devoção, que se revela em romarias de dias e dias, em ofertas de objetos de cera, representando partes mutiladas do corpo humano. Chamam-se promessas esses membros desirmanados e servem para as velas que alumiarão o altar dos santos afamados como milagrosos.

Nas épocas dessas festas, a respectiva igreja e as cerimônias enchem-se de um movimento insólito e é tal a quantidade de devotas, que ali vão deixar uma esmola para os cofres da irmandade, que o comércio, sempre necessário em tudo, levanta barracas improvisadas, onde se ostentam garrafeiras copiosas e grandes peças de carne assada, aves passadas no forno e o maior número de iguarias pesadas e suculentas.

Na vizinhança dessas barracas, e nas casas do arrabalde, nos quintais, nas varandas, nas praças cheias de sombra, festeiros e festeiras, gente do trabalho e da gandaia, dança, batuca, atroa o espaço com o rumor das melopéias e das rezadas e, em algumas delas, com exceção da do Rio de Janeiro, onde há perigo para a ordem pública, esses sambas duram dias e noites. São festas em que o elemento capital é a gente de cor - os mestiços - que é a que mais guarda e que fielmente vai levando para o futuro as tradições alegres do Brasil popular.

Há ainda as festas do Natal, Ano Bom, Reis, Santo Antonio, São João, nas quais avultam os sambas, os chibas, os reisados, cheganças etc. - danças e cantigas populares introduzidas pelos africanos e hoje conservadas apenas entre as classes mais rústicas do interior, particularmente nos estados do Norte, onde os negros são mais numerosos.

As festas de Natal, Ano Bom e Reis, que se chamam janeiras em Portugal como ainda ali se apelidam joaninas as festas de Santo Antonio, S. João e S. Pedro, são das mais alegres e queridas dos brasileiros. Em alguns estados, no Norte com especialidade, os dias de folgança são quinze, seguidos. Não é raro verem-se mascaradas, como na Cachoeira, na Bahia. Os foliões vestem-se como no Carnaval e fazem sua troça trocando pernas nas ruas, ou visitando conhecidos, que intrigam com ditos e facécias. Tirante isso, que não é o costume principal, os brinquedos mais comuns, como em Sergipe, são o Bumba meu boi, os Marujos, os Mouros, o Cego...

Um escritor especialista descreve assim o Bumba meu boi: "É um magote de indivíduos, sempre acompanhados de grande multidão, que vão dançar nas casas, trazendo consigo a figura de um boi, por baixo da qual se oculta um rapaz dançador. Pedem, com cânticos, licença ao dono da casa para entrar. Obtida a licença, apresenta-se o boi e rompe-se o coro:

"Olha o boi,

Olha o boi que te dá,

Ora entra prá dentro,

Meu boi marruá.

Olha o boi,

Olha o boi que te dá,

Ora dá no vaqueiro,

Meu boi marruá... etc.

"O vaqueiro representa sempre a figura de um negro ou de caboclo, vestido burlescamente, e que é o alvo das chufas e pilhérias populares".

Em relação aos Marujos, diz o mesmo escritor: "A folgança dos Marujos representa-se com um batalhão de rapazes vestidos à maruja, que conduzem um naviozinho. Cantam versos variados e fazem evoluções múltiplas. Depois de fingirem uma luta, vão coser o pano, no fim do quê há um episódio do gajeiro, cantando-se os versos da Nau Catarineta, de origem portuguesa. Ainda hoje, quem tem o sentimento da poesia popular e compreende o espírito do povo português, como um povo de navegantes, não pode ouvir aquela canção do gajeiro, com sua melopéia sentida, sem experimentar alguma coisa de saudoso e de profundo. É a velha alma lusitana transplantada para este país, que nos agita as fibras do coração. No mesmo espírito é a folgança dos Mouros, onde há uma luta entre cristãos e turcos, reminiscência histórica das lutas contra os mouros na península hispânica. O brinquedo, ou auto popular do Cego, é menos característico".

No livro de onde extraímos estes subsídios, encontram-se outras informações sobre as festas de Natal, Ano Bom e Reis. Em Pernambuco, canta-se o auto popular, muito apreciado, o Cavalo Marinho, que "transpira certa dureza de costumes, própria dos pernambucanos rústicos que, com o gosto de liberdade, é uma das heranças que lhes ficaram de seu contato e lutas com os holandeses".

Em Sergipe, no dia de Reis, celebra-se a festa de S. Benedito com dois folguedos especiais: o dos Congos, próprio dos negros, e o das Taieiras, feito pelas mulatas. Aqueles são vestidos de reis e príncipes, munidos de espadas, fazendo guarda de honra a três rainhas pretas. Estas vão no centro, acompanhando a procissão de S. Benedito e Nossa Senhora do Rosário, e são protegidas pela guarda de honra contra dois ou três do grupo, que forcejam por lhes tirar as coroas. A Taieiras são mulatas vestidas de branco e enfeitadas de fitas, que vão na procissão dançando e cantando. Os versos, que revelam o burlesco da raça negra, são:

"Virgem do Rosário,

Senhora do mundo,

Dai-me um copo d'água,

Senão vou ao fundo...

Inderé, ré, ré, ré...

Ai! Jesus de Nazaré!

Meu São Benedito

Não tem mais coroas;

Tem uma toalha

Vinda de Lisboa...

Inderé, ré, ré, ré...

Ai! Jesus de Nazaré!"

Em Pernambuco e na Bahia, no  Rio Grande do Norte, no Maranhão, no Ceará, no Piauí, costumam armar Lapinhas, nichos representando o  presepe onde nasceu Jesus. Seu tipo médio é uma grota abobadada, onde, entre montanhas de tabatinga, incrustadas de cascas de mariscos e uma densa flora de ramos de pitangueira, se esconde a imagem, minúscula, de Jesus recém-nascido. O quadro é de relevo ocidental, com casas, homens e bichos, quase do mesmo tamanho, pintados com cores vivas. São objetos de pasta, iguais, na altura, a árvores frondosas, distribuídas pelas estradas, por onde caminham, guiados por uma estrela de papel prateado, os três reis magos, em camelos, com os presentes para o Menino Deus. Dá-se aí a bênção das pastorinhas, mulatas e negras (este costume está atualmente em declínio), todas muito jovens, enfeitadas de capelas, cantando e dançando acompanhadas de um negro, vestido de odo burlesco, ornado de pandeiro. E a primeira trova é

"Vinde pastorinhas

Vinde a Belém,

A ver se é nascido

Jesus nosso bem".

Outro escritor, referindo-se às festas de Natal, Ano Bom e Reis, diz que "no Maranhão e na Bahia a cantiga dos Reis já se intrometeu pela sociedade abastada e é uma diversão da alta burguesia. Não é raro verem-se, em véspera de Reis, bandos de moços e raparigas que se reúnem com uma orquestra mais ou menos completa, na cintilação das jóias e das ricas toilettes, no gorjeio das risadas cristalinas, no tiroteio dos bons ditos, no cruzar dos olhares, na familiaridade franca e honesta do parentesco, da amizade, da convivência, não é raro ver essa sociedade parar a uma porta fechada, erguer as vozes cansadas, entoar numa toada, monótona às vezes, mas doce, saudosa, popular, os versos em que se festejam o nascimento do Cristo e os amores maternos de Maria. A porta abre-se então de par em par, e os cantores entram em uma onda colorida e perfumosa, no meio de risos e felicitações. Uma mesa acha-se sempre profusamente servida. Os donos da casa buscam por todos os meios agradar as visitas e estas saem finalmente, para irem a outra casa, e assim correm três ou quatro numa noite. Na última casa visitada, acaba-se a festa com a dança".

Há outras festas, de cunho ingenuamente popular. A do Espírito Santo, que já se vai perdendo na tradição, na Bahia, no Espírito Santo, em Mato Grosso, em S. Paulo e no Maranhão, tem um imperador, que é o festeiro, que faz as despesas gerais da folia. No dia da festividade, conduzem-no de sua casa para a igreja, entre duas varas enfeitadas. Na igreja há um trono para o Imperador, cuja mão todos beijam, finda a cerimônia religiosa. Em geral esse Imperador é uma criança, filha do verdadeiro pagador das despesas. Havia, na classe inferior, que acompanha essas manifestações, interessantes e absurdas, a crendice de que quem tivesse sido imperador do Espírito Santo não seria preso no xadrez, nunca. Com aquela posição, dispendiosa e efêmera, conquistara a imunidade, que no Brasil só têm os oficiais do Exército ou de outra qualquer milícia...

Festa popular de grande interesse, em que toda uma província tomava parte, era a de 2 de julho, na Bahia, data histórica em que se celebrava a entrada, na cidade, do exército libertador, diante do qual haviam deposto armas, ou batido em retirada, forças invasoras portuguesas, em 1823. O povo da capital e o que acorria do interior festejavam o acontecimento com júbilo e entusiasmo, como nenhuma outra festa brasileira de caráter cívico já logrou ser realizada.

Um caboclo e uma cabocla, duas bem feitas estátuas, que representavam o espírito nativista baiano, ficavam, o ano inteiro, num recanto da Piedade, do qual iam retirá-los, no dia 2 de julho, numerosos batalhões patrióticos, entre os quais avultavam o batalhão Acadêmico e o Caixeiral. O grande comércio da cidade, apesar de estar em mãos de negociantes portugueses, fornecia os seus caixeiros, uma bonita mocidade alegre e jacobina, que se combinava previamente sobre a roupa do dia, quase sempre terno branco com fita verde nos chapéus de palha.

A Academia de Medicina e os colégios secundários proporcionavam o contingente dos estudantes, que também se uniformizavam e, como aqueles, recebiam, à sua passagem, aclamações do povo. Mais do que em outra qualquer festa, vibrava o espírito popular, com o qual comungava, irmanado e integrado nele, o sentimento das classes abastadas.

Os dois caboclos de madeira, sempre pintados de novo, eram puxados à mão, em dois grandes carros alegóricos, pintados de ouro e verde. Numerosa cavalgada, em que tomavam parte centenas de cavaleiros, puxava os batalhões de infantaria cívica e, num percurso que durava duas ou três horas, as aclamações que choviam sobre os heróis eram incessantes. No Largo do Terreiro ficavam os dois índios representantes da origem remota do Brasil, por espaço de três dias, nos quais havia festa e alegria, barracas, jogos, prazeres de mesa maiores, iluminação extraordinária e música de banda desde a manhã até a meia noite.

Para fecho da festa, os mesmos batalhões e a mesma luzida cavalgada e o povo, que a haviam efetuado, iam buscar os caboclos para a sua morada. Era a Volta do carro. Fazia-se à noite, partindo entre as dez e onze horas. Ninguém nessa noite dormia. A Bahia confraternizava. Não havia distâncias entre os homens, nem entre os partidos, nem entre as nacionalidades. Era tão comunicativo o entusiasmo, que até os portugueses se mostravam, sem constrangimento, alegres. Verdade é que, naqueles dias, o comércio baiano fazia a sua maior féria do ano.

Acabava-se a festa, mas, nem por isso, o entusiasmo provinciano arrefecia. De julho a janeiro, em lugares distantes, faziam-se festas comemorativas. O Dois de Julho de Itaparica era em janeiro! Faziam a mesma festa da capital, em ponto pequeno, desde o número de patriotas que nela tomavam parte, até as imagens dos caboclos nos seus carros triunfais, que eram de tamanho reduzido.

Em Itapagipe, o Dois de Julho era em setembro. No Rio Vermelho, em agosto. Nesses pequenos Dois de Julho, havia, às vezes, como no outro, grande, que os inspirava, iluminação especial, tocatas, danças e sambas. Eram, entretanto, festas mais restritas, em que quase só tomavam parte direta famílias que as promoviam. Havia tanto interesse por essa comemoração patriótica que era comum encontrar nas lojas de brinquedos minúsculos carros com caboclos alegóricos, para se dar de presente às crianças, que, mal as recebiam, faziam também o seu Dois de Julho!

Recentemente, essa festa popular, graças à feição civilizadora dos tempos, caiu em desuso. A grande festa acabou. Ficaram só as pequenas. A data heróica da Bahia é comemorada friamente, diante de um monumento de pedra, levantado no Campo Grande em honra dos patriotas de 1823.

Surgiu no começo deste século (N.E.: século XX) uma comemoração que terá ainda uma forma concreta, que há de dar na vista. É o dia da Bandeira, a da República, que uma lei especial do Congresso Brasileiro faz considerar feriado. Sente-se que a bandeira desperta nobres sentimentos ao povo. Ainda no fim do século XIX, era indiferente à generalidade dos brasileiros o pavilhão nacional, à passagem de um batalhão do seu Exército. Paravam um instante, olhavam para os soldados cuja maneira de marchar achavam boa ou má, faziam uma crítica de dois minutos e remetiam-se na sua faina ou prosseguiam o seu passeio.

Houve, porém, um cronista que lançou a lembrança de que era irreverente deixar passar a bandeira do Brasil, sem que se lhe fizesse um sinal qualquer, demonstrativo de respeito e da estima que ela deve inspirar aos patriotas. E, daí em diante, crescendo todos os dias, com a propaganda derivada do exemplo dos que o fizeram em primeiro lugar, toda a gente se descobre quando passa o emblema auriverde.

A comemoração tem sido, em começo, apenas oficial. Fazem-na nos quartéis e repartições públicas, em cujos mastros se iça a bandeira, ao meio dia em ponto, ao som do Hino da Bandeira. As casas particulares acompanham, agora, a manifestação oficial e a cidade do Rio de Janeiro, de onde esse tributo patriótico irradiará para o resto do Brasil, hoje modernizada com suas grandes e novas avenidas e seus prédios novos, fica, no dia 19 de novembro, de um momento para outro, como por efeito de um passe de mágica, embelezada e garrida.

Tem a legislação brasileira dias de festa nacional: o 1 de janeiro - confraternização universal; 21 de abril; 24 de fevereiro - promulgação da Constituição; 3 de maio - descobrimento do Brasil; 13 de maio - abolição dos escravos; 14 de julho - liberdade dos povos; 7 de setembro - independência do Brasil; 12 de outubro - descobrimento da América; 2 de novembro - comemoração dos mortos; 15 de novembro - proclamação da República.

Nenhuma dessas festas nacionais faz vibrar o espírito popular. São dias excelentes para o funcionalismo público, que toma parte nas festas não saindo de casa para a respectiva repartição, mas ficando nela a gozar a doçura e as alegrias da família (maneira crônica de se divertir, que, felizmente, no Rio de Janeiro, está caindo em desuso, graças ao progresso e à civilização, aos bonitos passeios e à influência dos estrangeiros e do martelar da imprensa, que censurava o carioca por não sair de casa e deixar as avenidas desertas nos domingos).

De todas aquelas datas, a mais alegre é a primeira, pela tradição do povo e porque as palavras com que a explicam são do caráter sentimental brasileiro, que sempre considerou esse dia como o mais próprio para reunirem-se as famílias, na casa dos patriarcas, ou dos membros mais velhos. Esse costume teve em todas as cidades uma dilatação: aqueles que são sós, por se acharem longe dos seus, mas têm relações de amizade e afeto, procuram essas famílias amigas e participam de sua satisfação e de seu jantar. É um dia grande, em que todos os divertimentos, na capital da República, têm concorrência máxima.

Não se reflete a data festiva exclusivamente nessas manifestações, nas visitas dos parentes e dos passeios das famílias, enchendo os bondes, os automóveis e os carros. Verifica-se que se toma a sério a expressão confraternidade universal, no serviço dos correios da República, que aumenta no começo de cada ano, de modo a provocar espanto e reclamações.

Toda a gente culta se sente na obrigação de, no dia primeiro de janeiro, ou com essa data, enviar aos amigos e conhecidos um cartão de cumprimentos. São em regra cartões com o nome do remetente e os dizeres: Boas festas, tudo impresso finamente. Esses cumprimentos têm resposta, que se expedem até o dia de Reis, 6 de janeiro, o que é uma atenção à tradição nacional, referida acima. As outras datas não despertam entusiasmo.

Verdadeiramente a festa brasileira por excelência, como se disse no capítulo anterior, é o Carnaval, que, no Rio de Janeiro, tem mais fulgor do que o carnaval romano, e é mais rico que o de Paris, mais interessante que o de Nice, mais soberbo e suntuoso do que o de todo o mundo. Os brasileiros perdem sua linha de recato e de educação nos dias consagrados a Momo.

Antigamente, há pouco mais de 15 anos (N.E.: cerca de 1898, portanto), depois de grandes e sensacionais carnavais muito opulentos, o povo da capital do Brasil ainda assistia ao entrudo, que era uma maneira concomitante de mostrar a desordem do espírito. O entrudo interessava gregos e troianos, ricos e pobres, porque a água da torneira é niveladora, nessas ocasiões de apuro... carnavalesco. Passada a época dos limões de cheiro ou de borracha, aqueles frutos de cera contendo água perfumada, houve um momento em que se adotaram as seringas de borracha e as de zinco, que se enchiam de água da bica, mais barata e mais fácil de conseguir.

Entrudava-se indistintamente. Chegou-se até ao ponto de sair à rua com barril d'água, dentro de carruagens abertas, no qual se metiam consecutivamente as seringas, para molhar o povo expectante e desarmado. Nessa ocasião, a um chefe de polícia que teve a veleidade de proibir o entrudo, deram-lhe na Rua do Ouvidor um banho...

Depois, por bem da ordem e por não ser povo inteiramente desobediente, morreu o entrudo, e o Carnaval ressurgiu com a maior pompa. Ao lado do luxo perdulário dos clubes carnavalescos, e para matar o tempo, enquanto os grandes préstitos não começam a passar, os homens, as mulheres e as crianças divertem-se em perfumar o próximo com o conteúdo de uns tubos da fábrica francesa Rodo, os famosos lança-perfumes, que tiveram em 1911 largo consumo, tão grande, que causou pasmo ao fabricante.

Daí a vinda dele ao Rio de Janeiro, para conhecer esse povo extraordinário, que despende em um só Carnaval, com um só gênero de divertimento, que não é o mais oneroso, centenas de contos de réis. O povo das capitais brasileiras, naquele Carnaval, gastou mais lança-perfumes do que todos os outros países do mundo reunidos.

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