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O judas do Rio Purus, no Amazonas

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Talvez a página mais memorável sobre as tradições amazônicas seja a de Euclides da Cunha, escritor que em seu livro Judas-Ashverus descreve a forma como os segingueiros no Rio Purus, na Amazônia, comemoram o sábado de Aleluia. O texto foi transcrito também no livro Impressões do Brazil no Seculo Vinte, editado em 1913 e impresso na Inglaterra por Lloyd's Greater Britain Publishing Company, Ltd., com 1.080 páginas, sendo um exemplar mantido no Arquivo Histórico de Cubatão/SP. A obra teve como diretor principal Reginald Lloyd, participando os editores ingleses W. Feldwick (Londres) e L. T. Delaney (Rio de Janeiro); o editor brasileiro Joaquim Eulalio e o historiador londrino Arnold Wright. Nas páginas 141 e 142, assim descreve a tradição de Aleluia (ortografia atualizada nesta transcrição):

A história foi dramatizada em documentário dirigido por Rodrigo Neves com trilha de Berna Ceppas, fotografia de Celso Kava e  narração por Carlos Vereza, disponível em vídeo no YouTube

Os seringueiros, na Amazônia, povo rude e heróico que ali chega, impelido de outros pontos pela pobreza e pela ambição, mereceram de um grande escritor brasileiro, cedo e tragicamente roubado ao seu fecundo e inimitável trabalho intelectual, algumas páginas altamente interessantes. São homens que vão para as margens dos grandes rios do Norte do Brasil atrás da miragem da fortuna, mas em tais condições de contrato - que aceitam sem relutar, visando o grande lucro - que se escravizam aos empreiteiros, os verdadeiros nababos da indústria de borracha, aventureiros felizes que, em geral, tomaram de assalto as posições em épocas de conquista mais fácil.

São trabalhadores que só conhecem a luta pelo pão de cada dia e pela ampla remuneração do futuro. Referindo-se ao dia feliz dessa gente, no Alto Purus - o sábado de Aleluia - diz o escritor: "Só lhe é lícito punir-se da ambição maldita que o conduziu àqueles lugares, para entregá-lo, manietado e escravo, aos traficantes impunes que o iludem - e este pecado é o seu próprio castigo, transmutando-lhe a vida numa interminável penitência. O que lhe resta fazer é desvendá-la e arrancá-la da penumbra das matas, mostrando-a nuamente, na sua forma apavorante, à humanidade longínqua...

"Ora, para isso, a igreja dá-lhe um emissário sinistro: Judas; e um único dia feliz: o sábado prefixo aos mais santos atentados, às balbúrdias confessáveis, à turbulência mística dos eleitos e à divinização da vingança. Mas o monstrengo de palha, trivialíssimo, de todos os lugares e de todos os tempos, não lhe basta à missão complexa e grave. Vem batido demais pelos séculos afora, tão pisado, tão decaído e tão apedrejado, que se tornou vulgar na sua infinita miséria, monopolizando o ódio universal e apequenando-se, mais e mais, diante de todos que o malquerem.

"Faz-se-lhe mister, ao menos, acentuar-lhe as linhas mais vivas e cruéis, e mascarar-lhe no rosto de pano, a laivos de carvão, uma tortura tão trágica e em tanta maneira próxima da realidade, que o eterno condenado pareça ressuscitar ao mesmo tempo que a sua divina vítima, de modo a desafiar uma repulsa mais espontânea e um mais compreensível revide, satisfazendo à saciedade as almas ressentidas dos crentes, com a imagem tanto possível perfeita da sua miséria e das suas agonias terríveis.

"E o seringueiro abalança-se a esse prodígio de estatuária, auxiliado pelos filhos pequeninos, que deliram, ruidosos, em risadas, a correr por toda a banda, em busca das palhas esparsas e da forragem repulsiva de velhas roupas imprestáveis, encantados com a tarefa funambulesca, que lhes quebra tão de golpe a monotonia tristonha de uma existência invariável e inquieta.

"O Judas faz-se como se faz, sempre: um par de calças e uma camisa velha, grosseiramente cosidos, cheios de palhicas e molambos; braços horizontais, abertos, e pernas em ângulo, sem juntas, sem relevos, sem dobras, aprumando-se espantadamente, empalado no centro do terreiro. Por cima, uma bola desgraciosa representando a cabeça. É o manequim vulgar, que surge em toda a parte e satisfaz à maioria das gentes.

"Não basta ao seringueiro. É-lhe apenas o bloco de onde vai tirar a estátua, que é a sua obra-prima, a criação espantosa do seu gênio rude, longamente trabalhado de revezes, onde outros talvez distinguem traços admiráveis de uma ironia sutilíssima, mas é para ele apenas a expressão concreta de uma realidade dolorosa.

"E principia, às voltas com a figura disforme: salienta-lhe e afeiçoa-lhe o nariz; reprofunda-lhe as órbitas; esbate-lhe a fronte; acentua-lhe os zigomas; e aguça-lhe o queixo, numa massagem cuidadosa e lenta; pinta-lhe as sobrancelhas e abre-lhe com dois riscos demorados, pacientemente, os olhos, em geral tristes e cheios de um olhar misterioso; desenha-lhe a boca, sombreada de um bigode ralo, de guias descabidas aos cantos. Veste-lhe, depois, umas calças e uma camisa de algodão ainda servíveis; calça-lhe umas botas velhas, cambadas... Recua meia dúzia de passos. Contempla durante alguns minutos. Estuda-a. Em torno, a filharada, silenciosa agora, queda-se expectante, assistindo ao desdobrar da concepção que a maravilha. Volteia o seu homúnculo: retoca-lhe uma pálpebra; aviva-lhe um rictus expressivo na arqueadura do lábio, sombreia-lhe um pouco mais o rosto, cavando-o; ajeita-lhe melhor a cabeça; arqueia-lhe os braços; repuxa e retifica-lhe as vestes...

"Novo recuo, compassado, lento, remirando-o, para apanhar de um lance, numa vista de conjunto, a impressão exata, a síntese de todas aquelas linhas; e renova a faina com uma pertinácia e uma tortura de artista incontentável. Novos retoques, mais delicados, mais cuidadosos, mais sérios; um tenuíssimo esbatido de sombra, um traço quase imperceptível na boca refegada, uma torção insignificante no pescoço engravatado de trapos... E o monstro, lento e lento, num transfigurar insensível, vai-se tornando em homem. Pelo menos a ilusão é empolgante...

"Repentinamente, o bronco estatuário tem um gesto mais comovedor do que o parla! ansiosíssimo, de Miguel Angelo; arranca o seu próprio sombreiro; atira-o à cabeça do Judas; e os filhinhos todos recuam, num grito, vendo retratar-se na figura desengonçada e sinistra o vulto de seu próprio pai. É um doloroso triunfo. O sertanejo esculpiu o maldito à sua imagem. Vinga-se de si mesmo: pune-se, afinal, da ambição maldita que o levou àquela terra; e desafronta-se da fraqueza moral que lhe parte os íntimos de rebeldia, recalcando-o cada vez mais ao plano inferior da vida decaída, onde a credulidade infantil o jungiu, escravo à gleba empantanada dos traficantes, que o iludiram.

"Isto, porém, não satisfaz. A imagem material da sua desdita não deve permanecer inútil num exíguo terreiro de barraca, apagada na espessura impenetrável, que furta o quadro de suas mágoas, perpetuamente anônimas, aos próprios olhos de Deus. O rio que lhe passa à porta é uma estrada para toda a terra. Que a terra toda contemple o seu infortúnio, o seu exaspero cruciante, a sua desvalia, o seu aniquilamento iníquo, exteriorizados, golpeantemente, e propalados por um estranho e mudo pregoeiro...

"Em baixo, adrede construída, desde a véspera, vê-se uma jangada de quatro paus boiantes, rijamente travejados. Aguarda o viajante macabro. Conduz-lo prestes, para lá, arrastando-o em descida, pelo viés dos barrancos avergoados de enxurros. A breve trecho, a figura demoníaca se apruma, espetada, à popa da embarcação ligeira. Faz-lhe os últimos reparos: arranja-lhe ainda uma vez as vestes; arruma-lhe às costas um saco cheio de ciscalhos e pedras; mete-lhe à cintura alguma inútil pistola enferrujada, sem fechos, ou um caxerenguengue gasto; e fazendo-lhe curiosas recomendações, ou dando-lhe os mais singulares conselhos, impele, do cabo, a jangada fantástica para o fio da corrente.

"E Judas feito Ashverus (N.E.: judeu errante, personagem mítico que seria contemporâneo de Jesus, um coureiro que por importunar Cristo no caminho do calvário, foi por ele amaldiçoado e condenado a vagar pelo mundo até o fim dos tempos) vai avançando vagarosamente para o meio do rio. Então, os vizinhos mais próximos, que se adensam curiosos, no alto dos barrancos, intervêm ruidosamente, saudando com repetidas descargas de rifles aquele bota-fora. As balas chofram a superfície líquida, eriçando-a, cravam-se na embarcação, lascando-a; atingem o tripulante espantoso; trespassam-no. Ele vacila um momento no seu pedestal flutuante, fustigado a tiros, indeciso, como a esmar um rumo, durante alguns minutos, até se reaviar no sentido geral da correnteza.

"E a figura desgraciosa, trágica, arrepiadamente burlesca, com os seus gestos desmanchados, de demônio e truão, desafiando maldições e risadas, lá se vai, na lúgubre viagem, sem destino e sem fim, a descer sempre, desequilibradamente, aos rodopios, tonteando em todas as voltas, à mercê das correntezas, de bubia sobre as águas. Não para mais.

"À medida que avança, o espantalho errante vai espalhando em roda a desolação e o terror; as aves, retransidas de medo, acolhem-se, mudas, ao recesso, das frondes; os pesados anfíbios mergulham, cautos, nas profunduras, espavoridos por aquela sombra que ao cair das tardes e ao subir das manhãs se desata estirando-se lutuosamente, pela superfície do rio; os homens correm as armas e numa fúria recortada de espantos, fazendo o pelo sinal e preparando os gatilhos, alvejam-no desapiedadamente. Não defronta a mais pobre barraca sem receber uma descarga rolante e um apedrejamento. As balas esfuziam-lhe em torno; varam-no; as águas zimbradas pelas pedras encrespam-se em círculos ondeantes; a jangada balança; e, acompanhando-lhe os movimentos, agitam-se os traços e ele parece agradecer, em canhestras mesuras, as manifestações rancorosas em que tempesteiam tiros e gritos, sarcasmos pungentes e esconjuros e sobretudo maldições que revivem,na palavra descansada dos matutos, este eco de um anátema vibrado há vinte séculos: 'Caminha desgraçado'.

"Caminha. Não para. Afasta-se no volver das águas. Livra-se dos perseguidores. Desliza em silêncio por um estirão retilíneo e longo; contorneia a arqueadura suavíssima de uma praia deserta.

"De súbito, no vencer a volta, outra habitação: mulheres e crianças que ele surpreende à beira do rio, a subirem desabaladamente pelo barranco acima, desandando em prantos e clamores. E logo depois, do alto, o espingardeamento, as pedradas, os convícios, os remoques. Dois ou três minutos de alaridos e tumultos, até que o judeu errante se forre ao alcance máximo da trajetória dos rifles, descendo... E vai descendo, descendo... Por fim não segue mais isolado. Aliam-se-lhe na estrada dolorosa outros sócios de infortúnio; outros aleijões apavorantes sobre as mesmas jangadas diminutas, entregues ao acaso das correntes, surgindo de todos os lados, vários no aspecto e nos gestos, ora muito rijos, amarrados aos postes que os sustentam; ora em desengonços, desequilibrando-se aos menores balanços, atrapalhadamente, como ébrios; ora fatídicos, braços alçados, ameaçadores, amaldiçoando; outros humílimos, acurvados num acabrunhamento; e por vezes, mais deploráveis, os que se divisam à ponta de uma corda amarrada no extremo do mastro esguio e recurvo, a balouçarem enforcados...

"Passam todos aos pares, ou em filas, descendo, descendo vagarosamente... Às vezes, o rio alarga-se num imenso círculo; remansa-se; a sua corrente torce-se e vai em giros muito lentos perlongando as margens, traçando espiral amplíssima de um redemoinho imperceptível e traiçoeiro. Os fantasmas vagabundos penetram nestes amplos recintos de águas mortas rebalsadas; e estacam por momentos. Ajuntam-se. Rodeiam-se em lentas e silenciosas revistas, misturam-se, cruzam então pela primeira vez olhares imóveis e falsos de seus olhos fingidos; e baralham-se-lhes numa agitação revolta os gestos paralisados e as estaturas rígidas. Há ilusão de um estupendo tumulto sem ruídos e de um estranho conciliábulo, agitadíssimo, travando-se em segredos, num abafamento de vozes inaudíveis. Depois, a pouco e pouco, debandam. Afastam-se; dispersam-se. E acompanhando a correnteza, que se retifica na última espira dos remansos, lá se vão em filas, um a um, vagarosamente, processionalmente, rio abaixo descendo".

Esse divertimento do Judas boneco, em sábado de Aleluia, é comum em todo o Brasil. Não tem nos estados a mesma peculiar solenidade do Judas-Ashverus, que Euclides da Cunha descreveu em tão bela página, mas o povo do interior, e mesmo nas cidades, não esquece, naquele dia de desafogo religioso, o traidor de Jesus.

Em todo o Norte, é ainda hoje costume fazerem desengonçado homem de palha, sem os cuidados que merece o Judas do Purus, mas com todo o aspecto humano possível. Não lhe põem pistola à cinta, mas calafetam a palha do enchimento de bichas chineses, de bombas chilenas, amarram-lhe pistolas de S. João nas mãos e nos pés e reúnem tudo isso num só sistema pirotécnico, ligado por um tubo de papel recheado de pólvora.

Em geral, esses Judas são sacrificados à noite, no meio da alegria triste dos garotos, que, finda a queima, apedrejam o triste herói fumegante. Conforme o fervor católico ou os meios de fortuna de quem os fabrica, esses Judas são mais ou menos enfoguetados.

Algum se faz para ser queimado em praça pública, sobre uma grande roda de fogo que, enquanto gira, jorra centelhas de ouro, esmeralda e turquesa. São, quando assim, festejos que assumem o caráter de festejo intensamente popular.

No Sul do Brasil não se usa isso. Povo mais prático, no Rio de Janeiro, os que fazem Judas não têm a intenção de deprimir o discípulo que vendeu o Mestre, mas tão somente a de acanalhar o seu semelhante, em cuja porta encostam, pela madrugada, o boneco destinado a surpreender o dono da casa, ao amanhecer. Esses Judas produzem ridículo e não é raro o pugilato, o desforço pessoal, entre a vítima da brincadeira da Aleluia e o seu presumido autor.

Há uma variante disso: é a publicação de um número único de um panfleto, jornaleco, pasquim, intitulado Judas, o qual circula só no sábado e se ocupa, exclusivamente, da vida particular dos que não o redigiram. É uma publicação imoral que, na capital da República, foi terminantemente proibida e tem sido eficientemente perseguida pela polícia. Esse jornal é sempre mais desprezível do que o Judas de palha e roupa escura, que, apenas produzido o efeito da troça e da malquerença, é apupado e arrastado pelos caminhos, até desaparecerem esfacelados os seus últimos trapos.

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