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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - HOSPITAIS - BIBLIOTECA
Hospital Anchieta (4-f29)

 

Clique na imagem para voltar ao índice do livroEste hospital santista foi o centro de um importante debate psiquiátrico, entre os que defendem a internação dos doentes mentais e os favoráveis à ressocialização dos mesmos, que travaram a chamada luta antimanicomial. Desse debate resultou uma intervenção pioneira no setor, acompanhada por especialistas de todo o mundo.

Um livro de 175 páginas contando essa história (com arte-final de Nicholas Vannuchi, e impresso na Cegraf Gráfica e Editora Ltda.-ME) foi lançado em 2004 pelo jornalista e historiador Paulo Matos, que em 13 de outubro de 2009 autorizou Novo Milênio a transcrevê-lo integralmente, a partir de seus originais digitados:

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Na Santos de Telma, a vitória dos mentaleiros

ANCHIETA, 15 ANOS (1989-2004)

A quarta revolução mundial da Psiquiatria

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DEPOIMENTOS DE "MENTALEIROS"

 

A conjuntura legal: Geraldo Peixoto, militante antimanicomial

 

São 18 anos de caminhada na luta antimanicomial brasileira, que incorporou como causa após senti-la na pele, na família. Casado com Dulce Edie, também militante e convivente com o problema, Geraldo fala dos pojetos de lei federal do deputado do PT Marcos Rolim, que não foi reeleito - regulamentando os eletrochoques e que está parado -, e do deputado estadual do PT Arselino Tato, proibindo as psicocirurgias, ambos objeto de atenção dos lobies empresariais do setor. Ele fez 12 anos de lobie pela aprovação da lei do deputado federal Paulo Delgado, conta este militante integral.

 

As cenas de Arthur Chioro

 

Sanitarista formado em 1986, mestre em Saúde Coletiva pela Unicamp e em Saúde Pública, professor nas faculdades de Medicina da Lusíadas e Unisanta, Arthur Chioro tinha apenas 25 anos à época da intervenção no Anchieta, em que participou da elaboração. E conta ter feito o primeiro plantão junto com o psicólogo institucional e também articulador Antonio Lancetti - no que divide a primazia com Zanetta.

 

Conta que a experiência santista "foi referencial para diversas cidades". Diretor do Departamento de Atenção Especializada do Ministério da Saúde, na época ocupando o mesmo cargo na Secretaria de Saúde em Santos, diz que "uma das coisas mais marcantes deste episódio foi os olhares dos pacientes diante de nós na entrada em 3 de maio de 1989".

 

Descreve Chioro, que é irmão de Sandra Lia, que foi diretora clínica durante todo o período de intervenção, "aquela rede de olhares desesperados mas com esperança, ambíguos, varrendo a todos com pedidos de socorro – sem contar a mistura de odores e medo. Da tensão de que participava o médico de plantão, dr. Emmanuel, negro vestido de branco, suado. Era um momento tenso e ao mesmo tempo épico", retrata Arthur, que pede perdão pelo exagero literário, "pois estávamos defendendo a vida", conta. A outra cena que o impressionou foi semanas depois, passada próximo a casa de sua mãe no Orquidário, quando alguns terapeutas levavam as internas para passear e ver a luz do sol, algumas após anos sem  tal experiência.

 

"Elas desceram do ônibus ‘margarida’, aberto, meio que em andrajos, pele macilenta, maltratadas que foram por tanto tempo, dez ou doze mulheres cronificadas, feias. Ao verem outras mulheres com suas crianças, tomadas de paixão quiseram pegá-los – e a primeira reação das mães foi a de afastarem-se, protegendo-os daqueles seres que surgiam estranhos. Mas logo o susto das mães se transforma em afeto e a relação se torna harmoniosa, o amor de uns para outros se torna possível".

 

Arthur está contente: "Hoje mesmo, ao sair de Brasília, soube que o ministro Humberto Costa, que é psiquiatra, interveio em dez hospitais psiquiátricos". Santos se propaga em seus exemplos. Chioro esteve presente à reunião da noite anterior na secretaria, a que também conta Zanetta, sem dizer os nomes dos que foram contra a intervenção.

 

Fala das tentativas fracassadas de outras cidades, algumas feitas por estas pessoas, insinua, de "humanizar" manicômios - "como alguns destes dez que intervimos hoje", exemplifica. Para ele, não adianta melhorar ou humanizar manicômios, "que exigem sim ser fechados, extintos, apagados" – instrumentos de opressão que são. "Foram muitas as tentativas de humanizar manicômios que não deram certo", concluiu.

 

Flávio Saraiva, libertando a loucura

 

No início era a surpresa, o susto, o medo, o cuidado, a precaução com os diferentes. Depois, o aconchego, o costume, a proximidade, a integração. Era tudo uma questão de tempo a substituição da crueldade da internação dos que não tinham cometido crimes mas eram isolados como se o tivessem, em condições muitas vezes piores a que dos presidiários.

 

Flávio, um assistente social, era um "acompanhante terapêutico" que atuou na intervenção e que levou os pacientes às primeiras visitas externas, passeios, mostrando o mundo para quem estava trancado há anos no manicômio. Para ele, membro da Equipe 1 que deu origem ao NAPS 1, que participou da construção da rede dos NAPS, "a intervenção foi uma obra coletiva e democrática em que todas as ações eram debatidas no conjunto", disse – uma experiência que trouxe para ele "níveis de evolução pessoal e de análise social".

 

Berta, por dentes saudáveis

 

Na base da cura nunca alcançada dos pacientes de Saúde Mental, que afinal tinham sua condição agravada e muitas vezes criada pela precariedade de suas condições de vida, estava o retorno às condições dignas de alimentação, vestuário, acomodação, higiene, saúde – no mínimo, que foram garantidas. E a saúde bucal era elemento essencial para o desenho de um quadro razoável para análise de cada caso, trabalho que logo em junho foi designado a odontologista Berta Esteves, que ocupava o cargo de coordenadora de Saúde Bucal da orla.

 

Destacada para verificar as condições do consultório dentário instalado no hospital, pôde constatar "sua completa incapacidade de atendimento" - motivo pelo qual os pacientes que tinham problemas dentários e que eram atendidos só em último caso só podiam arrancar seus dentes, isto quando o dentista viesse atendê-los. Berta lembra que David Capistrano levava cigarro nos bolsos para oferecê-los aos pacientes, "apesar de ser um anti-tabagista convicto", disse.

 

Formada desde 1983 e atuando na Prefeitura desde 1985, depois de relatar a sucata existente pôde ser iniciado o atendimento de todos os pacientes, tendo sido enviados dois dentistas para o Anchieta, Mônica e José Roberto, segundo declarou Berta – quem destaca o "heroísmo" daquele gesto da intervenção "restaurando a humanidade arrancada daqueles seres".

 

Luiz Antonio Cancello, humanizando

 

Psicólogo e escritor, Cancello participou da ação e foi um dos que assinou a intervenção, para ele importante elemento humanizador no sistema. Ele acredita que as três correntes da Psiquiatria, a institucional, a antipsiquiatria e a psico-farmacológica ou biologista se integram e interpenetram, não se excluem e nem são absolutas, complementando-se como os sistemas econômicos em que o socialismo humaniza o capitalismo embora não seja implantado.

 

Segundo ele, há hoje provas científicas de mudanças químicas no cérebro dos doentes mentais, exigindo ação dos psico-fármacos e isso demonstra o fato de que a doença mental tem bases biológicas, o que não invalida em absoluto as importantes conquistas que a Psiquiatria obteve na humanização e na política de tratamento do doente mental. A unidade de ações na meta da superação do manicômio, efetuadas pela equipe que atuou no Anchieta, utilizou não apenas técnicas variadas, como explicou Cancello, mas também agiu em diferentes momentos e estágios, desde uma humanização necessária e essencial à descentralização do atendimento.

 

A deputada Maria Lúcia Prandi, educando excluídos

 

A atualmente deputada estadual, Maria Lúcia Prandi era secretária de Educação à época da intervenção no Anchieta e pôde se integrar nas "estratégias de libertação", como chama a atitude de entrar no manicômio e interromper o processo cruel e lá se desenrolava. "Pude participar criando cursos e escolas de alfabetização dentro do Anchieta", conta, "em processos que evoluíram". Maria Lúcia disse que quando as portas do Anchieta se abriram, "o que vi era dantesco e chocou-me profundamente".

 

"Não se pode admitir que o diverso seja discriminado, brutalizado e humilhado. Sabíamos que era um imperativo ético a humanização da assistência à Saúde Mental e foi isso o que se fez", declarou. "Na qualidade de secretária da Educação - acrescentou -, somei esforços e, atuando com a Secretaria de Cultura, trabalhamos no resgate da dignidade dos pacientes – montando cursos de alfabetização e oficinas culturais". A deputada estadual do PT lembra que "os resultados alcançados foram impressionantes. Ver a vida sendo devolvida a aquelas pessoas foi o mais gratificante e marcante", concluiu.

 

Fábio Mesquita, médico social

 

Atual ocupante do cargo de coordenador dos Programas de Saúde da Prefeitura de São Paulo, o médico Fábio Mesquita é uma expressão nacional da luta contra a AIDS. Sem demérito, Tykanori é seu subordinado na Capital. Em nível federal, atuou no programa nacional de AIDS em 1993 e em 2000 foi coordenador de Direitos Humanos e Articulação com a sociedade civil do programa.

 

À época da intervenção, era coordenador de DST/AIDS da Prefeitura de Santos, quando tomou iniciativas inéditas no País, como a distribuição de seringas no programa de redução de danos, que baixou os índices de contaminação pela doença. "Atuávamos como um time", lembra, "éramos a equipe da Telma, todos fazendo tudo".

 

Fábio se recorda da reunião na noite anterior e do dia da intervenção, em que estava lá. Vereador do PC do B (assumiu na gestão 92–96), médico engajado, considera que a intervenção no Anchieta "foi uma ação que mudou a história da Saúde Mental no Brasil". "Até então – lembra – a desospitalização era apenas uma tese, um ideal debatido e planejado, mas foi aqui que pela primeira vez se concretizou, graças a um governo corajoso e combativo que aceitou a briga e ‘foi pro pau’". Para Mesquita, isso teve um efeito demonstrativo "extraordinário".

 

Celso Manço, psicólogo antológico

 

Personagem exemplar do processo, Celso Manço, então jovem militante de esquerda, já tem 60 anos – e participou da fundação do Centro de Ciências do Comportamento de Santos, em 1972. Formado na USP de Ribeirão Preto em 1970, professor mais antigo da Faculdade de Psicologia da Universidade de Santos, começou a trabalhar na cidade como psicólogo e professor em março de 1971, há 33 anos, tendo ministrado aulas para todas as turmas do curso desde seu surgimento. É fundador da primeira entidade de psicologia da região – a Sociedade de Psicologia da Baixada Santista – e seu primeiro presidente, neste mesmo ano, que apoiava a luta antimanicomial que nascia. Segundo Lane Valiengo, o jornalista, "foi ele que deu visão política ao tema, que até então inexistia".

 

Integrante do Conselho Regional de Psicologia em 1980, abrangendo os Estados de São Paulo, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, em 1982 foi membro do Conselho Federal de Psicologia até 1985, quando teve intensa atuação na direção institucional da causa antimanicomial, relator de diversos processos encaminhados ao Congresso e Câmara dos Deputados. "O Conselho produziu várias discussões e fez diversos encaminhamentos já a este tempo", relembra Celso, que foi membro do PCB desde 64 e preso político em 1969, anistiado. Ele fala das diversas manifestações que existiam na categoria contrárias às ocorrências que existiam no Anchieta, antes da intervenção.

 

"Os próprios currículos das faculdades" - esclarece o antigo mestre – "foram se transformando para se adaptarem à situação brasileira de miséria e isso não foi espontâneo, foi uma luta dos profissionais, pois os programas não tinham vínculos com a realidade local", explica. "A luta antimanicomial é outra vertente dessa adaptação", conclui, ele que atua como professor de Psicologia e Organização do Trabalho, na área de Saúde Mental do Trabalhador, "uma área recente que tem ampliado o número de problemas em face da técnica imposta a produção". diz.

 

Zezé Muglia Rodrigues, assistente social sim senhor!

 

Assistente Social sincera desde 1979, vocacionada para seu exercício, Maria José Muglia Rodrigues executou um dos trabalhos mais difíceis e inéditos daqueles aplicados no Anchieta, que foi o de reaproximar famílias e pacientes e dissolver o estigma instalado. Coordenadora de duas equipes de enfermarias, de setembro de 1990 a julho de 1992, parte integrante da turma que transformou a Saúde Mental em Santos e no Brasil, Zezé disse que esta "foi uma experiência importante para minha vida profissional e pessoal, pois a troca de experiências com as famílias dos chamados ‘loucos’ é gratificante", afirma.

 

Não apenas os pacientes mudaram seu comportamento com as novas condições estabelecidas, o fim da medicação massiva e dos eletrochoques, alimentação adequada, camas e diálogo entre eles mesmos e com a comunidade visitante e que encontravam nos passeios. As famílias também mudaram sua relação com seus parentes que haviam sido despejados e o restabelecimento dessa ligação se fazia através do afeto.

 

"Nós fizemos este resgate", explica Zezé. "Eles tinham direitos, como pessoas humanas. Na verdade – diz -, eram depositários das loucuras da família, das suas dificuldades do dia a dia, que agora estava sendo preparada para recebê-los de volta. Vinham primeiro uma a uma, depois em grupo em assembléias expandidas. Foi fantástico", lembra.

 

Ela explica que o grupo era referencial do próprio grupo, uns dos outros, nós apenas os aproximávamos, eles definiam o tratamento, tornando-os produtivos e reintegrados. Iam para os NAPS e, saindo das crises, de volta para casa. O NAPS estava próximo para atendê-los nos momentos difíceis. Nós mostrávamos os direitos e deveres, par cada direito um dever e assim foi feito o resgate da cidadania destes seres", concluiu Zezé.