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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - OS ANDRADAS - BIBLIOTECAClique na imagem para ir à página principal desta série
Império (4)

A história do Patriarca da Independência e sua família

Esta é a transcrição da obra Os Andradas, publicada em 1922 por Alberto Sousa (Typographia Piratininga, São Paulo/SP) - acervo do historiador Waldir Rueda -, volume II, com ortografia atualizada (páginas 760 a 806): 
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SEGUNDA PARTE - INDEPENDÊNCIA OU MORTE!

Capítulo III - Fundação do império (cont.)

[...]

Instalação da Constituinte

A Assembléia Geral Constituinte e Legislativa, que começara suas sessões preparatórias a 17 de abril, instalou-se, com toda a solenidade, a 3 de maio, por ser a data comemorativa do descobrimento do Brasil. A designação desse dia foi sugerida a José Bonifácio pelo deputado suplente por Minas Gerais, doutor António Gonçalves Gomide, em carta que lhe escreveu a 12 de abril, por ser o da descoberta do Brasil [1].

Na sessão preparatória de 30 de abril, nomeou-se a comissão de deputados, da qual fazia parte José Bonifácio, incumbida de participar ao imperador o dia e a hora da abertura, o que faz supor que o digno paulista, tendo aceitado a sugestão do suplente mineiro, advogou-a perante a Assembléia, que a aprovou unanimemente na mesma sessão.

Esse erro concernente ao fato capital de nossa história no passado foi posteriormente corrigido por diversos investigadores, mas a força da tradição mantém até hoje oficialmente o 3 de maio como o dia do descobrimento do Brasil. Convém, portanto, que nos estendamos um pouco acerca desta importante matéria.

Até alguns anos após a descoberta e divulgação pela imprensa, da carta de Pero Vaz de Caminha, escrivão da Esquadra de Pedro Álvares Cabral, carta que foi publicada em 1817 por Ayres de Casal e traduzida para o francês por Ferdinand Dénis, em 1822 - era crença geral na Lusitânia e no Brasil que o nosso descobrimento se dera realmente a 3 de maio. Aquele documento, porém, desfez inteiramente o velho erro tradicional: o descobrimento foi, sem dúvida nenhuma, na quarta-feira, 22 de abril de 1500 [2].

Todavia, a crença contrária persistiu ainda algum tempo depois de achada nos arquivos a carta de Caminha, porquanto só em 1826 é que a Academia de Ciências de Lisboa lhe aumentou a circulação em Portugal e Brasil, mandando-a estampar integralmente no tomo IV de sua Collecção de Notícias para a História e Geographia das Nações Ultramarinas.

Que teria, entretanto, dado lugar a tamanho equívoco, que, ainda ao iniciar-se a segunda metade do século XIX, era perfilhado por publicistas eminentes e criteriosos? Como, de acordo com as praxes da época, os navegantes costumavam dar, às terras descobertas, nomes de santos, tirados do calendário católico, nos dias em que tais descobertas se verificavam, supôs-se, à falta de um documento positivo e autêntico, que a denominação de Vera Cruz fosse imposta ao Brasil porque no dia da respectiva comemoração religiosa é que o almirante português o descobrira.

A hipótese, por sua engenhosidade lógica, venceu como se fora realidade provada; como tal a admitiram os mais autorizados escritores antigos que nas suas crônicas trataram deste assunto, e o grave erro se perpetuou nas páginas da história, no decorrer contínuo das idades.

Restabelecida a verdade, mas persistindo-se, apesar dela, principalmente em nosso país, em considerar e festejar o dia 3 de maio como a data do descobrimento, tentaram os estudiosos explicar satisfatoriamente tão estranha anomalia, e apelaram irrefletidamente para a reforma gregoriana do calendário ocidental - absurdo que não resiste à mais leve análise, mas que ainda hoje vemos reproduzido e defendido com freqüência por certos jornalistas, quando nas suas gazetas discorrem, com a magistralidade peculiar à profissão, a respeito do dia exato em que os olhos de Cabral, da proa da nau capitânia, avistaram os primeiros contornos de nossas montanhas e os primeiros vistosos cocares de nossos inocentes aborígines.

Essa reforma consistiu, como se sabe, na supressão de 10 dias no ano de 1582, entre 4 e 15 de outubro, para corrigir o erro acumulado até então em virtude do atraso em que se achava o calendário juliano; e na de 3 anos bissextos em cada período de 400 anos, para evitar que o erro se reproduzisse d'ora em diante [3].

Parece que quem primeiro concebeu a inadmissível hipótese foi o general Beaurepaire-Rohan, há mais de cinqüenta anos, num pequeno trabalho que inseriu na Revista do Instituto Histórico Brasileiro [4].

Ora, como irrefutavelmente o demonstrou um eminente escritor patrício, num opúsculo decisivo para o exame e solução do controvertido problema, o cálculo daquele falecido general e dedicado cultor da história pátria não se apóia na exatidão da base matemática, "pois, feita a correção dos 10 dias, o dia 22 de abril corresponderia a 2 de maio e não a 3. o engano proveio, provavelmente, da consideração que, para passar do dia 4 de outubro para o dia 15, é preciso ajuntar 11 a 4; e daí o nosso autor irrefletidamente foi também somando 11 a 22..." [5].

VARNHAGEN, na sua História Geral, perfilhou a errônea hipótese de Beaurepaire-Rohan, mas, procedendo previamente aos cálculos indispensáveis, percebeu que o autor da idéia se equivocara na contagem feita; e, com a desenvoltura que lhe era inata, para pôr a correção gregoriana de acordo com a data do descobrimento, tomou para esta o dia 23 de abril e não o dia 22. É o cúmulo da insensatez, como se vê.

Um documento contemporâneo autêntico, escrito e firmado por um dos indivíduos que estiveram, em razão do ofício, presentes ao acontecimento - o próprio escrivão da Armada de Cabral -, afirma categoricamente que a descoberta se deu na quarta-feira, 22 de abril, e VARNHAGEN, para conciliar a data certa do fato com a inconsistente suposição que adotou, muda arbitrariamente essa data, induzindo a novo erro os confiantes patrícios que no seu saber e critério acreditavam!

E como tudo quanto assevera é inconcusso e irrefutável qual um dogma, na sua História da Independência, repete que de "novo se aprazou o dia 3 de maio como o do aniversário do descobrimento do Brasil, atendida a diferença dos 10 dias causados pela correção gregoriana" [6].

A adoção do dia 3 de maio como o do descobrimento não resultou nenhumamente de qualquer ilógica aplicação da reforma calendárica relativamente a tal dia; mas de uma errônea convicção arraigada no espírito dos mais antigos historiadores portugueses. É assim, por exemplo, que João de Barros, que floresceu e morreu muitos anos antes de ser decretada a correção gregoriana, escrevia na Década 1ª, livro 5º, capít. 2º: "...quando veio a três de maio, que Pedr'Álvares se quis partir, por dar nome àquela terra por ele novamente achada, mandou arvorar uma cruz..."

E também Pedro de Magalhães Gandavo escreveu, seis anos antes da reforma, no capítulo 1º de sua obra sobre o Brasil: "depois ele deu o nome de Santa Cruz a esta província, porque se estava precisamente a 3 de maio" [7].

E além disso - comenta com toda a razão o PADRE GALANTI: "se essa mudança se pudesse fazer, não existe motivo para aplicá-la às datas do mês de abril, mais que às de qualquer outro mês" [8].

E ROCHA POMBO, com sumo critério, pergunta: "E se a correção retroagiu de 82 anos para alterar a data do descobrimento, por que não há de abranger também outras datas: Como é que continua a ser a chegada de Colombo à América em 1492, a 12 de outubro?... E como é que se muda o descobrimento do Brasil, de 22 de abril para 3 de maio e se conserva o 9 de março para a partida da frota de Belém?" [9].

Parece-nos, portanto, incontestável que a data, que se fixou enganadamente, para o descobrimento - 3 de maio - é erro que vem de autores que escreveram poucos anos depois desse fato e antes que o papa Gregório XII tivesse reformado o velho calendário; e que a esse erro foram induzidos tais autores pela dupla circunstância de terem mediado poucos dias entre a data do descobrimento - 22 de abril - e a da Invenção da Santa Cruz - 3 de maio - e ser hábito dos navegantes daqueles tempos darem, como dissemos, aos seus achamentos de novas terras, o nome do santo católico festejado no dia em que os referidos achamentos se realizavam.

Fala imperial

À sessão inaugural da Assembléia, presidida pelo bispo capelão-mor, compareceu o imperador e leu uma extensa Fala, prestando conta de todos os atos de seu governo desde a Regência até aquela data; expondo as razões que o levaram a proclamar a Independência e ratificando o seu juramento solene de defender a Pátria e a Constituição que se ia fazer.

Esperava que esta merecesse a sua imperial aceitação e fosse "tão sábia e tão justa, quanto apropriada à localidade e civilização do povo brasileiro" e igualmente louvada por todas as nações, "que até os nossos inimigos venham imitar a santidade e sabedoria de seus princípios e por fim a executem". E a propósito abundava em comentários sobre as Constituições que, à maneira das de 1791 e 1792 "... são totalmente teoréticas e metafísicas, e por isso inexeqüíveis; assim o prova a França, Espanha e ultimamente Portugal. Elas não têm feito, como deviam, a felicidade geral; mas, sim, depois de uma licenciosa liberdade, vemos que em uns países já aparecem e em outros ainda não tarda a aparecer o despotismo" [10].

Foi José Bonifácio quem redigiu a Fala do Trono [11], apesar de que um ilustre escritor dá-nos a inédita novidade de que "a composição dos discursos da Coroa era exclusivamente de d. Pedro" [12].

Naquele discurso estão consubstanciadas as idéias fundamentais do Patriarca sobre a atualidade política brasileira; e nem d. Pedro tinha a capacidade mental, nem a cultura precisa para pensar tão altas coisas sobre matéria tão transcendental. Os seus versos pífios, a sua habilidade para tocar fagote, violino e flauta e para compor, ao lado do maestro Marcos Portugal [13], solfas, lundus, minuetes e hinos patrióticos que não sobreviveram ao seu autor e à sua época, não são credenciais que o acreditem como homem de gênio e muit o menos o dotem com a envergadura de um verdadeiro estadista.

Não queremos dizer que o imperador estivesse inteiramente alheio ao que seu primeiro-ministro dizia na Fala recitada perante a Assembléia Constituinte. Seria imputar-lhe, em desabono de sua personalidade, uma automática função papagaial, que sua viveza natural repele e contradiz. Dispunha ele da inteligência e da sagacidade bastante para compreender até certo ponto e aceitar as opiniões do Patriarca; mas daí a suporem-no apto para pensar por conta própria, em assuntos que requeriam estudos sérios, sobretudo jurídicos, e manifestar depois seus pensamentos por escrito, em linguagem clara, harmoniosa e correta - vai uma longa distância que a imparcialidade do critério histórico e a crítica ponderada não podem decorosamente ultrapassar.

O que é certo é que a redação da Fala do Trono, na parte que se refere à elaboração do Pacto Fundamental, foi considerada impertinente por grande número de deputados e reavivou as suspeitas que, desde os tempos regenciais, o povo mantinha quanto à sinceridade constitucionalista de d. Pedro.

VARNHAGEN - no propósito mofino de descarregar sobre José Bonifácio as culpas das renascentes prevenções dos patriotas - afirma que, segundo declaração do Patriarca, feita depois perante a Assembléia, os dois períodos relativos à Constituição foram introduzidos por ele próprio na Fala do Imperador [14]. Isto não significa, entretanto, que a mesma Fala, em suas restantes partes, fosse redigida por d. Pedro, nem que este não fosse perfeitamente solidário com as idéias úteis que o seu primeiro-ministro introduziu no documento.

José Bonifácio  não poderia, sem amesquinhar publicamente a figura do soberano, afirmar que era de sua lavra o discurso lido pelo outro; e como não queria expô-lo aos embates da Assembléia em seu início, chamou prontamente a si a responsabilidade integral do que, nos dois períodos a que nos referimos, avançava a respeito da necessidade de se elaborar uma Constituição digna do monarca, apropriada às circunstâncias do Brasil e suscetível de ser admirada e louvada por todas as nações do mundo civilizado.

Na sessão de 5, pois a 4 não funcionou a Assembléia, ao apresentar António Carlos o voto de graças em resposta à Fala Imperial, travou-se renhido debate. Os inexperientes e desconfiados constituintes e legisladores queriam discuti-la, antes de aprovarem o voto proposto, o que António Carlos taxou de absurdo. "A Fala do Trono não se discute senão indiretamente, pelo voto de graças", com o que concordaram afinal os inovadores das praxes usadas nos regimes representativos.

A 6, entrando em discussão o voto, o deputado por Pernambuco, padre Luís Ignácio de Andrade Lima [15], propôs que nele se consignasse que a Assembléia, cônscia de seus deveres, não deixaria de elaborar uma Constituição digna do Brasil e de seu imperante, ao que António Carlos não se opôs, por não julgar inconveniente essa declaração.

Muniz Tavares, ao contrário de seu colega de deputação e sacerdócio, aplaudiu incondicionalmente as palavras do imperador, achando que "o gênero humano poderia considerar-se feliz se todos os monarcas do universo usassem de uma linguagem igual..."

Um representante de Minas, o padre José Custódio Dias, suplente que tomou assento em lugar do efetivo, desembargador Lucas António Monteiro de Barros, empossado somente a 4 de novembro , observou que "só ao Congresso compete julgar se a Constituição é digna do Brasil" [16].

Outro deputado da mesma província, bacharel José António da Silva Maia, visivelmente estomagado com a recomendação imperial, indicou que "para não perder-se tempo", fazendo-se uma lei que poderia não ser aceita, "se convidasse o imperador a dizer quais as condições em que quer entrar no Pacto Social". Entendia mais que se tais condições não fossem justas e razoáveis, a Assembléia por sua vez as não aceitaria, e d. Pedro "não será reconhecido imperador se não quiser concorrer com a Assembléia para o bem do Brasil" [17].

José Bonifácio interveio na extemporânea discussão para admirar-se que "do mel puro do discurso de S. M. I. destilassem veneno...". Reforçando sua argumentação com exemplos tirados da França e da América Espanhola, concluiu com estas palavras textuais: "Mas protesto à face da Assembléia e à face do povo, que não concorrerei para a formação de uma Constituição demagógica, mas sim monárquica e que serei o primeiro a dar ao imperador o que realmente lhe pertence" [18].

Um equívoco de Armitage

ARMITAGE alterou profundamente, na sua História do Brasil, este passo final do discurso do Patriarca, em cuja boca pôs as seguintes insensatas palavras: "Até onde chegar a minha voz, protesto, à face da Assembléia e de todo o povo, que havemos de organizar uma Constituição não democrática, mas monárquica; eu serei o primeiro a conceder ao imperador aquilo que lhe for devido".

Ora, o que José Bonifácio disse foi que não concorreria para a elaboração de uma Constituição demagógica, e sim monárquica. A involuntária substituição do vocábulo usado por ele - demagógica em vez de democrática - cambiou essencialmente o seu pensamento político e tem servido até hoje de tema aos críticos malevolentes para o apodarem de anti-liberal com manifestações patentemente despóticas - equívoco histórico e erro de apreciação que desde 1862 o BARÃO HOMEM DE MELLO tratou de desfazer, mas tem persistido até hoje [19].

Afinal, o voto de graças foi aprovado tal qual o redigira António Carlos, e assim terminava: "A Assembléia não trairá os seus comitentes, oferecendo os direitos da Nação em baixo holocausto ante o trono de V. M. I., que não deseja, e a quem mesmo não convém, tão degradante sacrifício; nem terá o ardimento de invadir as prerrogativas da Coroa, que a razão aponta como complemento do ideal da Monarquia; a Assembléia não ignora que elas, quando se conservam nas raias próprias, são a mais eficaz defesa dos direitos do cidadão e o maior obstáculo à erupção da tirania de qualquer dominação que seja... Guiada pelos ditames da mais circunspecta prudência, a Assembléia marchará na sua espinhosa carreira, esperando que a feitura sua lhe dê honra e seja digna do brioso povo brasiliense, e de V. M. I., seu ilustre chefe".

Primeiras hostilidades

Deste incidente inicial vê-se logo que as relações entre os dois altos poderes começavam numa atmosfera de mútua desconfiança. O Executivo suspeitava que o Legislativo queria enfraquecer-lhe a autoridade e colocá-lo sob sua direta e esmagadora dependência; o Legislativo, por sua vez, receava que o Executivo tivesse a intenção de se lhe sobrepor arbitrária, despótica e inconstitucionalmente.

A Comissão de Constituição, eleita na sessão do dia 5, compunha-se dos seguintes membros: António Carlos, José Ricardo e José Bonifácio (S. Paulo); António Luís Pereira da Cunha (Rio), Pedro de Araújo Lima e monsenhor Muniz Tavares (Pernambuco) e Manuel Ferreira da Câmara Bittencourt e Sá (Minas).

Enquanto ela vai trabalhando serenamente na elaboração do projeto de Constituição, a Assembléia dedica-se com ardor à sua tarefa legislativa. Propostas, indicações, projetos de toda a sorte foram aparecendo sem ordem, sem método e até sem oportunidade, o que justificava até certo ponto as apreensões de José Bonifácio relativamente à conveniência de sua convocação naquele momento.

Todavia, graças à sua prudente mediação, reinou ao princípio completa harmonia entre ela e o governo. É certo que havia opiniões e votos divergentes, mas a maioria estava ao lado do imperador e do Ministério [20].

VARNHAGEN - sempre no maldoso intento de denegrir os serviços incomparáveis que por essa ocasião prestou o Patriarca ao estabelecimento regular das novas instituições - tenta demonstrar que a oposição que, no seio do Legislativo, se desenvolveu pouco depois contra o Governo, foi devida principalmente à impopularidade e desprestígio do Gabinete perante a opinião pública, pelos atos iliberais do primeiro-ministro. Este é que era o alvo dos ataques e não o imperador, tanto assim que os mais influentes oposicionistas da Assembléia não cessavam de ir ao Paço, de comparecer lá nos dias de beija-mão, de patentear a Sua Majestade o seu apreço, consideração e solidariedade [21].

Mas, se as medidas decretadas pela Assembléia, reveladoras de suas tendências bélicas, só foram aprovadas posteriormente à queda do ilustre ministro e seu irmão; e se depois que eles se demitiram é que o antagonismo entre os dois poderes se tornou irremediável, terminando com a violenta dissolução da Soberana Assembléia - não se pode de boa fé acreditar que o procedimento impolítico dos Andradas no Ministério é que acarretou contra o governo o descrédito geral, a antipatia pública.

E a prova eloqüente do que afirmamos está na seqüência dos fatos que se foram sucedendo; o imperador, cada vez mais arrogantes, incompatibilizava-se com a Assembléia e ela, orientada pelos Andradas, e inflamada sobretudo pelo verbo patriótico de António Carlos, respondia com dignidade as constantes provocações que recebia do poder.

É assim que na sessão de 30 de maio, Paula Sousa [22] indicou que se determinasse a maneira por que seriam remetidos ao imperador os decretos aprovados pela Assembléia. Sua indicação foi à Comissão de Constituição para dar parecer, e o respectivo relator Araújo Lima apresentou a 12 de junho um projeto, em cujo artigo 3º se consignava que os decretos da Constituinte seriam "promulgados sem dependência de sanção imperial" [23]. Esse artigo foi calorosamente defendido por António Carlos, desde o primeiro até o último dia da discussão, ao contrário do que informa VARNHAGEN, dizendo que ele, a pedido de José Bonifácio, que se alarmara com a matéria, deixou de defendê-lo em terceiro turno [24].

Entre outros, falaram a favor José Ricardo e Muniz Tavares, e contra, Martim Francisco, o marechal Arouche e o padre Belchior Pinheiro [25]. O artigo de que se trata foi aprovado a 29 de julho, quando os Andradas já não eram ministros, sendo promulgado quase às portas da dissolução da Assembléia, isto é, a 20 de outubro. Ora, se o que indispunha contra o governo a Assembléia Constituinte era a facciosa política ministerial dos Andradas, porque é que, apeados ambos do poder, e substituídos por elementos moderados, aprovou-se o projeto com seu artigo terceiro e mandou-se ao imperador para promulgá-lo?

Lutando embora com sua incompreensão das praxes e preceitos próprios do regime representativo, que a quase totalidade de seus membros não conheciam, a Assembléia trabalhou com afinco e, além da lei acima referida, decretou mais as seguintes: revogando o decreto de 15 de fevereiro de 182, que convocara o Conselho de Procuradores das Províncias (projeto do desembargador João António Rodrigues de Carvalho, do Ceará, apresentado a 7 de maio); proibindo aos deputados o exercício de qualquer outro emprego durante o tempo de seu mandato, exceto os de ministros d'Estado e intendente de Polícia (projeto de Araújo Vianna, em sessão de 21 de junho); abolindo as Juntas Provisórias e substituindo-as por presidentes de nomeação do imperador, assistidos por um conselho eletivo (projeto de António Carlos, em sessão de 9 de maio); designando qual a legislação que ficaria vigorando no Império depois da Independência, enquanto não expressamente revogada (projeto de António Luís Pereira da Cunha).

Além dessas leis, promulgadas todas a 20 de outubro, a Assembléia estava discutindo um projeto regulador da liberdade de imprensa, quando foi dissolvida; mas a 22 de novembro o Poder Executivo mandou pô-lo em execução [26].

Fora esses projetos, convertidos depois em leis, outros que não lograram ser discutidos nem votados, graças à superveniente dissolução da Constituinte, foram submetidos à sua apreciação, entre eles o de Muniz Tavares, autorizando o Executivo a expulsar do Brasil todos os indivíduos suspeitos à causa da Independência. José Bonifácio apresentou sua bem fundamentada Memória sobre a conveniência de ser transferida para a comarca de Paracatu, em Minas, a capital do Império [27].

Enredos de Varnhagen

A propósito dessa Memória, o implacável autor da História da Independência, para tirar ao Patriarca a prioridade da respectiva idéia, procurou, de acordo com seus processos favoritos, estabelecer confusão a tal propósito.

Diz ele o seguinte: "Como vimos, a idéia de se preferir a Província de Minas para sede da Monarquia, indicada primeiro no Correio Brasiliense, fora já adotada pela Junta de S. Paulo, de que era vice-presidente o próprio José Bonifácio, nas Instrucções dadas aos deputados da província..." [28].

O que ele quer dizer, na sua confusa algaravia, é que a idéia de que se trata foi indicada pelo Correio Brasiliense, de Londres, antes que José Bonifácio a apresentasse, em forma de Memória, à Assembléia Constituinte, mas não significa que a sua prioridade coubesse ao magnífico periódico de Hippólyto da Costa, que só a esposou dois anos depois de tê-la o vice-presidente do Governo Provisório de S. Paulo consignado nas aludidas Instrucções, como o próprio VARNHAGEN reconhece numa nota aposta à página seguinte de seu trabalho [29].

Apresentou ainda o mesmo digno paulista à consideração dos constituintes uma Memória da mais transcendental importância para a civilização do Brasil - sobre a catequese e colonização dos índios - e escreveu outra sobre a extinção da escravatura, com projeto de lei, anexo, mas que não chegou a entregar à Assembléia por já ter sido arbitrariamente dissolvida. VARNHAGEN, sempre propenso a amesquinhar o Andrada, informa, com aparente simplicidade e candura, que, no ano anterior, isto é, 1822, João Severiano Maciel da Costa, depois marquês de Queluz, já tinha publicado em Coimbra um "luminoso trabalho a respeito" e RIO BRANCO, retificando o informe, elucida que esse trabalho foi publicado em 1821, e o de José Bonifácio em 1825, em Paris [30].

De fato, a Memória, com seu projeto de lei, que devia ser apresentada à Constituinte, só foi impressa em Paris, durante o exílio do autor, por Vasconcellos de Drummond, seu grande amigo pessoal e político. Mas semelhante circunstância não prova que João Severiano se tivesse antecipado a José Bonifácio no tocante à solução do grave problema.

Em primeiro lugar, salientemos que a Memória de Queluz - segundo se depreende do seu título, pois não a conhecemos - versa apenas "sobre a necessidade de abolir a introdução dos escravos africanos no Brasil, sobre o modo e condições com que esta abolição se deve fazer, e os meios de remediar a falta de braços que ela pode trazer; oferecida aos brasileiros, seus compatriotas" [31].

Se esse longo título resume o conteúdo do opúsculo, o autor visava apenas abolir a introdução dos escravos africanos no Brasil, ao passo que a Memória e Projeto de José Bonifácio propõe não somente mostrar "a necessidade de abolir o tráfico da escravatura mas também de melhorar a sorte dos atuais cativos E DE PROMOVER A SUA PROGRESSIVA EMANCIPAÇÃO" [32].

Vê-se, portanto, que a matéria dos trabalhos de um e de outro não é a mesma: Queluz propugna somente pela abolição do tráfico; Bonifácio, não só por ela, como pela melhoria dos escravos atuais e sua gradativa emancipação. Para equiparar ambas as Memórias, em detrimento do Patriarca, ousa VARNHAGEN asseverar, sempre com um ar despreocupado e bonachão, que a do último era "a respeito da extinção do tráfico" [33], o que é pura invenção de sua parte, como verificará quem quer que a leia integralmente.

Entretanto, ainda mesmo que dissertassem ambos os autores sobre o mesmo tema, nem por isso a primazia de José Bonifácio quanto ao assunto pode ser negada, em face dos dados cronológicos que se conhecem. A Memória de Queluz é de 1821, sem nenhuma dúvida; mas, nesse mesmo ano, em outubro, José Bonifácio, nas Instrucções que elaborou para uso dos deputados em Cortes, recomendava-lhes que trabalhassem por "melhorar a sorte dos escravos, favorecendo a sua emancipação gradual e conversão de homens imorais e brutos em cidadãos ativos e virtuosos".

E na mesma ocasião ofereceu sobre esse assunto "apontamentos e idéias ao Soberano Congresso" [34]. Quer dizer, quando muito, que um, na ex-metrópole, outro na ex-colônia distante, teriam cuidado da matéria ao mesmo tempo. Mas o dr. EMÍLIO JOAQUIM DA SILVA MAIA, na carinhosa biografia do Patriarca, escrita no próprio ano de sua morte, e estampada na Revista do Instituto Histórico, relata-nos que ele, quando ainda estudante em Coimbra, compusera várias dissertações, principalmente umas sobre índios e escravos do Brasil - fato que lhe foi contado por pessoa de todo o crédito e depois confirmado igualmente por José Bonifácio. Nesse caso, ele se antecipou de muitos anos a João Severiano Maciel da Costa.

Uma sova de pau, majestade!

Pela manhã de 30 de junho começaram a circular pela cidade insistentes boatos de que o imperador, ao regressar para São Cristóvão, caíra desastradamente do cavalo, machucando-se muito e correndo sério perigo sua vida. O Paço encheu-se de gente interessada em saber do seu estado e logo os pormenores da verdadeira causa do acidente tornaram-se conhecidos da população, apesar do grande empenho que fez o primeiro-ministro para evitar que tal causa se divulgasse.

Uma versão popular conta-nos que o médico de semana, chamado com urgência, depois de examiná-lo com profunda atenção, resumiu doutoralmente em poucas palavras o diagnóstico: "Uma sova de pau, majestade!", ao que o príncipe, apesar das dores em que se contorcia, anuiu, sorrindo com afável complacência [35]. O certo é que o primeiro boletim que sobre a moléstia e sua marcha se publicou, foi ditado por José Bonifácio, escrito por Vasconcellos de Drummond e apenas assinado pelo médico referido, dr. António Ferreira França, e outros colegas da imperial Câmara, encarregados também do tratamento [36].

Segundo o boletim, d. Pedro, "como corresse o selim tanto para a garupa do cavalo em que vinha, pela razão de estarem as cilhas traseiras mui largas, que estas ficavam nas virilhas do animal, que se corcovava e desabridamente corria... receando resvalar juntamente com o selim e ser, em conseqüência, maltratado pelos muitos e violentos coices, sobretudo faltando-lhe o apoio da crina, por se ter esta arrebentado, e à qual lançou a mão, tomou a resolução de deitar-se abaixo, o que fez para o lado esquerdo. Depois de uma queda tão considerável, batendo com as costas em cheio sobre barro duro, não obstante levar de encontro o braço esquerdo, S. M. I. esforçou-se por se levantar, mas não o conseguiu senão à terceira vez, que foi quando pôde gritar etc. etc."

As lesões encontradas foram as seguintes: "1ª) fratura direita da sétima costela esternal ou derradeira do lado direito, no ponto de reunião de seu terço médio com o posterior; 2ª) fratura indireta, ou por contra-pancada, na terceira costela esternal do lado esquerdo, compreendendo o seu terço anterior; 3º) diástase completa na extremidade do esternal da clavícula esquerda; 4º) enfim, grande contusão no quadril, com forte tensão nos músculos que cercam a articulação femuro-ilíaca e com dor gravativa, principalmente no nervo ciático (schiático, segundo o boletim) que, ao depois, ganhou intensidade notável com complicação de dores agudíssimas e de caráter convulsivo" [37].

A verdade é que o imperador, embora obsedado pela paixão que consagrava a dona Domitila, não deixava de fazer noturnas e perigosas incursões em alheios lares. Vários casos se registram, estando provados documentalmente os seus amores com a francesas Saisset, esposa de um dos sócios de uma casa de modas estabelecida à Rua do Ouvidor, e com dona Maria Benedicta de Castro, baronesa de Sorocaba e irmã mais velha da marquesa de Santos [38], o que demonstra que d. Pedro encontrava um encanto especial nas damas da mesma raça. Conquanto não apoiados em documentos positivos, outros derriços teve ele, de idêntica natureza; e é natural supor-se que a sova de pau de 30 de junho lhe fosse magistralmente aplicada por algum pai ou esposo menos indulgente do que os outros...

Arteirices políticas de dona Domitila

Por essa época a ascendência de dona Domitila sobre o coração e o espírito do monarca já era considerável; e em torno dela, buscando por seu intermédio obter as graças imperiais, agrupava-se a legião dos ambiciosos pretensores aos cargos políticos ou administrativos, quase todos inimigos dos Andradas, que formavam no governo uma dupla barreira intransponível às pretensões indevidas e aos apetites desregrados.

Aqueles paulistas, principalmente, que, por motivo dos acontecimentos referidos para trás, tinham sido processados por José Bonifácio, formavam a Corte da famosa favorita, no intuito de, mediante seus bons ofícios, readquirirem a estima e confiança de d. Pedro, e minarem ao mesmo tempo a influência de seu poderoso ministro.

A prolongada permanência do soberano no leito, durante o seu cuidadoso tratamento, foi a oportunidade que apareceu para a execução dos planos ideados. A audaciosa concubina fora admitida ao quarto do imperador a visitá-lo a miúdo; e nas horas que passava à cabeceira do doente, requintando em ternuras e artifícios, conseguiu dispor o ânimo do enfraquecido monarca no sentido de suas aspirações - um ato em favor de seus amigos paulistanos, que bem lhe pagavam seus dedicados serviços, ato esse que ao mesmo tempo importasse no desprestígio formal de seu ministro.

É assim que, numa certa ocasião, falou a José Bonifácio o imperador, na conveniência de se conceder anistia aos réus políticos de S. Paulo e Rio, ao que se opôs aquele categoricamente, dizendo que já na véspera esperara que S. Majestade lhe tocasse a respeito desse negócio. "Estou informado que é empenho da Domitila - acrescentou - e que essa mulher recebe para isso uma soma de dinheiro",

D. Pedro rebateu a acusação formulada clara e corajosamente pelo ministro, e procurou convencê-lo de que os indiciados eram inocentes, ao que José Bonifácio replicou vantajosamente que, em tal caso, não precisavam eles de anistia, e que o julgamento regular seria a conveniente solução para todos; que o governo se achava em face de uma Assembléia que poderia querer tomar-lhe contas de um ato que ainda se não achava bem definido quanto à competência do poder apto para decretá-lo.

Além disso, era sabido geralmente que se depositara o dinheiro destinado a gratificar a pessoa incumbida de alcançar a anistia e ele, portanto, jamais ligaria o seu nome a tão vergonhoso negócio. A franqueza com que falou o ministro encolerizou sobremodo o imperador, que se ergueu arrebatadamente do leito, quebrando o aparelho que lhe segurava as costelas fraturadas.

Exoneração dos Andradas

Do quarto próximo, a favorita, ansiosa pelo resultado da discussão, ouvia tudo quanto no aposento imperial diziam o soberano e seu ministro [39]. Exultou, por isso, de contentamento, quando este declarou que desde aquela data - estava-se a 15 de julho - não se considerava mais ministro. No dia seguinte, Martim Francisco apresentou igualmente sua demissão, que d. Pedro lhe não quis conceder, pedindo-lhe com brandura que ficasse, porque a saída do irmão não era motivo para que ele também saísse, ao que o demissionário ponderou que a razão era a mesma - a falta de confiança em S. Majestade.

E, recusando-se a indicar quem o substituísse - pedido que lhe fizera o imperador na ocasião, retirou-se de sua presença. Na tarde do mesmo dia, dona Maria Flora deixou o lugar de camareira-mor da imperatriz.

Na narração deste acontecimento capital e seus pormenores, seguimos o que escreveu DRUMMOND que, como amigo confidencial do velho Andrada, achava-se bem informado de tudo quanto sucedera. VARNHAGEN descreve-os de modo totalmente diverso, com o fim preconcebido de negar qualquer diminuta parcela de justificativa para a nobre conduta de José Bonifácio em tão desagradável quão funesta divergência.

Basta, porém, lembrarmo-nos de que o autor da História da Independência não faz no seu trabalho a mínima referência à marquesa de Santos e às suas galantes relações com o imperante, fascinado e subjugado pelos seus feitiços e donaires -  - como se essa dama não tivesse existido, nem tomado parte ativa nos tristes sucessos que fizeram desmoronar, no primeiro reinado, a obra com tanto esforço patriótico levada a efeito por José Bonifácio, apoiado pelo escol da mentalidade política de sua geração -, para se compreender que a VARNHAGEN faltou completamente neste, como noutros episódios, a imparcialidade, que é o apanágio de todo o historiador probo e de todo o crítico honrado, no desempenho de sua dupla função.

Os seus juízos são suspeitíssimos, porque não partem de um julgador equilibrado e sereno, mas de um inimigo rancoroso que não poupava a trindade ilustre e precipuamente ao mais notável de seus membros.

Replicar-nos-ão talvez que o depoimento de DRUMMOND é igualmente suspeito, porque se trata de um amigo incondicional do Patriarca, que lhe era devotado até o sacrifício pessoal e à sua memória guardou permanente culto, que deve servir de edificante exemplo à irreverente mocidade de hoje. Mas, entre a suspeição de um amigo fiel e a de um inimigo desleal - como eram respectivamente DRUMMOND e VARNHAGEN - um espírito reto não pode hesitar, mormente quando quem acusa e vitupera não exibe as peças documentais de sua convicção.

Novo Gabinete

Ganha a partida pela concubina, graças à atuação que sobre ela estava exercendo, em prol de seus interesses e dos de seus amigos, o ex-ouvidor de S. Paulo, dr. José da Costa Carvalho, que a José Bonifácio não tinha perdoado o fracasso final da bernarda paulistana de 23 de maio de 1822 - tratou d. Pedro de reorganizar o Ministério, incumbindo dessa tarefa o deputado pelo Rio, dr. José Joaquim Carneiro de Campos, mais tarde marquês de Caravelas, o qual a não quis aceitar antes de conferenciar com José Bonifácio, o que fez imediatamente, recebendo dele plena aprovação pela escolha que de sua pessoa acertadamente fizera o imperador.

Carneiro de Campos tomou o lugar de José Bonifácio, e Manuel Jacyntho Nogueira da Gama, também deputado pelo Rio e futuro marquês de Baependi, passou a substituir Martim Francisco na Pasta da Fazenda.

Ficou desde então indefeso, e abandonado à influência da cortesã paulistana e seus apaniguados, o jovem soberano do Brasil. As suas anteriores tendências, que o primeiro-ministro com dolorosa apreensão surpreendera - de se conciliar francamente com os elementos portugueses refratários à Independência, e geralmente afastados dos cargos de maior confiança política - não mais tiveram obstáculos que energicamente as sopitassem.

Já por ocasião da guerra da Bahia, manifestara o imperador tais inclinações perigosas, quando tentou restringir as ordens passadas por José Bonifácio a lorde Cochrane, no tocante à amplitude de sua ação naquela província.

Esses e outros gestos foram aumentando suas desconfianças, relativamente às disposições de d. Pedro para com a genuinidade da causa brasileira; e o seu coração de patriota embebia-se lentamente do fel da desconfiança.

Para sondar até que ponto o imperador propendia para os lusitanos insubmetidos, é que Muniz Tavares apresentou o projeto de que atrás falamos, autorizando o Executivo a deportar do País quem quer que não fosse explicitamente adepto de nossa emancipação integral, projeto que, calorosamente defendido, entre outros, pelo seu respeitável signatário e pelo verbo sempre eloqüente de António Carlos, foi reprovado logo depois da primeira discussão, mesmo porque não era destinado a transpor vitorioso os debates e votações da Assembléia, mas a levar ao imperador a lembrança de que a Nação, por seus órgãos legítimos, estava disposta a lutar por sua liberdade e não daria tréguas a seus inimigos naturais.

No mesmo dia em que os Andradas foram demitidos, publicaram-se dois decretos: um - mandando cessar a "segunda devassa aberta contra alguns habitantes da Província de S. Paulo, não incluídos na primeira" [40] e outro - nomeando para intendente geral da Polícia da Corte o desembargador da Casa da Suplicação, Estêvão Ribeiro de Rezende; e quatro portarias: a primeira - mandando que o chanceler da Relação, que servia de regedor, fizesse libertar imediatamente todos os cidadãos presos por denúncias não provadas ou por meras suspeitas contra a causa nacional; a segunda - em forma de circular aos governos de todas as províncias - recomendando-lhes medida para apagarem-se as rivalidades que a intriga fomentara entre brasileiros e portugueses, porquanto o lugar do nascimento não os podia fazer considerados de diversos modos - ato que confirmou os patriotas nas suspeitas que vinham alimentando quanto ao pseudo brasileirismo de d. Pedro; a terceira - providenciando para que pudessem regressar a seus lares os paulistas que José Bonifácio, por justo motivo de ordem pública, mandara afastarem-se da província; e a quarta e última - determinando medidas contra certos membros da Guarda Cívica de S. Paulo, que se tinham constituído arbitrariamente no direito de punir delitos não provados [41].

Não teve no momento grande repercussão no seio da Constituinte a retirada dos dois irmãos [42], e eles mesmos não deram nenhuma demonstração de cólera ou despeito contra o monarca ou contra os adversários que tinham comprado a sua demissão a peso de dinheiro.

No próprio dia em que os decretos exonerativos foram publicados, José Bonifácio compareceu na Assembléia e tomou parte no debate sobre o projeto que regulava provisoriamente as administrações provinciais. Segundo o alvissareiro VARNHAGEN, Martim Francisco, na sessão de 18, declarara que, por não ser mais ministro, nem por isso caíra em desgraça, pois era representante da Nação; que sabia ter perdido "a opinião pública, mas que isso era questão de momento: que ele a reganharia".

E mais adiante insinua VARNHAGEN, no seu costumeiro afã de apoucar os dignos irmãos, que eles tinham pedido sua demissão, pensando que se repetiriam as manifestações populares de 30 de outubro do ano passado, que os reconduziram ao Ministério, mais prestigiados que nunca [43].

Entretanto, a frase atribuída a Martim não se encontra no Diário da Assembléia Constituinte, conforme assevera RIO BRANCO na nota a VARNHAGEN, acreditandoq que este a tivesse respigado nalgum periódico do tempo [44]. Ela destoa completamente do feitio moral do ex-ministro e não é honesto que um historiador, orgulhoso de sua presumida competência, fosse levianamente colhê-la nas páginas infidedignas de alguma gazeta infensa à política e ao predomínio dos Andradas.

O Tamoyo

Foi então que os mais dedicados amigos desses grandes vultos - tendo à frente Vasconcellos de Drummond e o desembargador França Miranda - trataram de fundar uma folha que politicamente os defendesse; e a 12 de julho saiu a lume o primeiro número d'O Tamoyo. Só depois de seu aparecimento é que seus fundadores foram comunicar o projeto que tinham concebido a José Bonifácio, que lhes manifestou francamente sua desaprovação, mas acabou por concordar, tal o entusiasmo com que lhe falaram os dois ilustres redatores.

Apesar do muito que se tem afirmado a este respeito, não é exato que José Bonifácio fizesse parte de sua redação; está averiguado que só acidental e rarissimamente colaborou nele, e assim mesmo de modo indireto, pois Drummond e França apanhavam o que ouviam nas suas palestras sobre política, traçavam artigos orientados pelas suas idéias e o Patriarca limitava-se a corrigir o que lhe não parecia fiel, acertado ou conseqüente.

Breve o Tamoyo desenvolveu cerrada oposição contra o governo; e seus artigos vibrantes de sinceridade e de patriotismo começaram a impressionar profundamente a opinião pública do Rio.

O projeto de Constituição

Entretanto, a Comissão de Constituição, eleita pela Assembléia, escolhera para seu presidente a António Carlos, a quem, depois de algum tempo, apresentaram alguns membros seus projetos. António Carlos rejeitou-os todos, dizendo-lhes "sem cerimônia que não prestavam. Um copiou a Constituição Portuguesa; outro, pedaços da Espanhola" [45].

À vista de sua franqueza, a Comissão incumbiu-o de elaborar novo projeto, encargo que aceitou a 16 de agosto [46], e a 1º de setembro apresentou à assembléia o seu trabalho [47], que entrou em discussão a 15 do mesmo mês [48].

As suas idéias capitais não eram de molde a agradar ao imperador, cuja autoridade limitava severamente. Entre outras disposições, só reconhecia três poderes - o Legislativo, o Executivo e o Judiciário; o imperador não tinha a faculdade de dissolver a Câmara dos Deputados, somente podendo adiá-la ou prorrogá-la, nem conceder perdão total a seus ministros, aos quais só podia comutar a pena de morte; além da Constituição vigente, não dependiam da sanção imperial as suas ulteriores modificações, os decretos da Assembléia, ainda que sobre matérias regulamentares, o resultado do exame sobre o emprego da Força armada pelo Poder Executivo e mais os atos especificados em diferentes artigos do Projeto.

D. Pedro, apesar dessa limitação, que nascia da suspeita geral contra sua sinceridade constitucionalista, acusando, em ofício assinado por Carneiro de Campos, o recebimento de um exemplar impresso do referido projeto, declarou à Assembléia que maior seria sua satisfação se o trabalho que lhe enviara "fosse já a Constituição do Império, por estar intimamente convencido de que dela dependem a sua estabilidade e prosperidade geral" [49].

Preponderância do elemento português. Manifestações absolutistas

Em torno do imperador concentrava-se cada vez mais o elemento português, desafogado enfim de José Bonifácio. No Paço é tal elemento que impera, incumbido do respectivo serviço; na rua é ele que aplaude e vitoria rumorosamente os atos do monarca, suspeitos aos nacionais e na Assembléia apinha-se nas galerias pra bater palmas aos retrógrados, malsinados de lusitanismo, e promover manifestações de desapreço aos deputados que oravam em favor dos interesses brasileiros. Toda essa gente, ou portuguesa de origem ou ligada aos portugueses por diferentes razões, estimulava d. Pedro a prosseguir nos seus atos de hostilidade crescente, embora semi-velada, contra as enérgicas tendências da opinião nacional.

Previa-se que o imperador, tendo conseguido apoderar-se do trono do Brasil, preparava-se para não perder o que lhe pertencia de fato e de direito, do outro lado do Atlântico [50]. Convinha-lhe, portanto, mostrar-se mais cordato para com os seus patrícios e fazer-lhes concessões demonstrativas de suas novas disposições a respeito deles.

Já os portugueses domiciliados no Brasil, e inimigos ostensivos de nossa independência, não eram considerados como tais; e no Paço olhava-se com franca simpatia para Portugal. No Rio Grande do Sul, como que obedecendo a altas vozes de comando, as tropas já não aclamam o imperador constitucional, e sim o imperador com veto absoluto.

A Assembléia, ciente do que se passara, reúne secretamente a 21 de julho e pede informações ao governo, que lhe remeteu os documentos oficiais mandados pela Junta Provisória daquela província, confirmativos do grave fato.

Em sessão pública de 22, o Congresso, indignado, levanta unânimes protestos contra a atitude subversiva e inconstitucional da Guarnição do Rio Grande. Os próprios ministros presentes não puderam deixar de aderir a esses protestos. Resolve a Assembléia, diante do parecer elaborado pela Comissão de Constituição, mandar proceder-se a uma severa devassa, retirar da Guarnição os oficiais superiores envolvidos no delito e suspender de suas funções o presidente da Junta.

O imperador, ante o fracasso da tentativa que se ousara, como experiência, longe da Corte, achou prudente lançar uma Proclamação aos Brasileiros, verberando a conduta das tropas, povo, junta do governo e autoridades civis e eclesiásticas que acabavam de praticar aquele atentado [51].

Não pararam aí as inábeis manobras de d. Pedro, que ia, pouco a pouco, realizando o secreto pensamento de José Clemente Pereira - a separação de Portugal, uma vez que tinha sido inevitável, mas a manutenção permanente da influência portuguesa nos destinos do Brasil. E o elemento nacionalista que, com os dois Andradas, abandonara as responsabilidades governamentais, entregues agora aos seus naturais adversários, era, em atos sucessivos, afastado dos postos principais da política e da administração.

Restauração do absolutismo em Portugal. Impressão no Brasil. Indignação da Assembléia

Nesse ínterim, chegam ao Rio, a 29 de julho, notícias da contra-revolução absolutista levada a efeito no velho Reino pela rainha dona Carlota Joaquina e seu filho, o infante d. Miguel, de mãos dadas com a nobreza e o clero que não tinham querido sujeitar-se ao despotismo coletivo de um Congresso demagógico, preferindo o despotismo antigo, o despotismo tradicional e monocrático, baseado no direito divino e no respeito à autoridade do príncipe e de toda a sua dinastia.

O acontecimento encheu de júbilo a alma de d. Pedro, que mandou publicar a notícia recebida, no Diário do Governo, sob a imprudente rubrica Notícias Nacionaes. Na sessão de 2 de agosto o deputado pela Paraíba do Norte, Joaquim Manuel Carneiro da Cunha, em veemente discurso, protestou contra semelhante afronta governamental à dignidade da Nação. Parece incrível que no órgão oficial se publicasse "debaixo do artigo Notícias Nacionaes uma proclamação do rei de Portugal, como se ele ainda dominasse no Brasil,... como se este país fizesse parte daquele Reino e formássemos com os seus filhos uma só Nação".

D. Pedro foi além nas suas impolíticas demonstrações, pois daí a dias, o mesmo Diário do Governo estampava um entusiástico artigo laudatório da contra-reação absolutista, e chamando heróis aos que tinham derrubado o regime constitucional. Era a resposta ao discurso de Carneiro da Cunha...

Outra medida que produziu grande alarme entre os independencistas puros, foi a que ordenou, por simples portaria do ministro da Guerra, que pudessem passar aos Corpos do Exército Brasileiro as praças de pré das Tropas Portuguesas, remanescentes no Brasil depois da retirada do general Madeira de Mello.

Ia compreendendo a Nação, aos poucos, ia compreendendo com ela a Assembléia Geral que o perigo não estava na permanência dos Andradas no Governo, pois era o próprio monarca quem contrariava a corrente das aspirações nacionalistas. A situação não melhorara, antes se agravara assustadoramente com a demissão daqueles ministros, em cujo tempo, apesar do zelo com que pugnavam por que se desse ao imperador a maior soma razoável de justo prestígio e de autoridade constitucional, ele nunca ousara colocar-se em atitude de franco desafio diante da Nação e de seus augustos deputados.

Também não levou muito tempo para que a Assembléia se colocasse ao lado dos dignos ex-ministros e se deixasse arrastar, na sua repulsa à prepotência do Poder, pelo verbo arrebatador de António Carlos. Por sua vez, o jornalismo, usando de uma linguagem extremamente agressiva, tomava a peito a defesa da causa nacional que nas mãos do imperador periclitava. A excessiva moderação, a timidez mesmo de seus principais ministros, habilitavam o público a julgá-los incapazes de contrapor a sua autoridade moral aos imponderados caprichos de d. Pedro, docilmente impelido, nas suas decisões mais graves, pelas mãos delicadas mas voluntariosas de dona Domitila, a quem Costa Carvalho, maneiroso e hábil, dirigia, por sua vez, a seu talante.

Os ministros, pouco ou quase nada valiam, perante a influência discricionária da favorita. Recresciam com toda a razão, portanto, as fundadas suspeitas da Nação contra seu inconseqüente imperador; e parecia ter-se chegado o momento em que se daria o tremendo choque pelo inevitável atrito das duas forças em luta.

Missão portuguesa. Como foi recebida

Felizmente, porém, para d. Pedro, deu-se na mesma ocasião um acontecimento da maior importância e que o reintegrou, embora passageiramente, na confiança e estima da população. Derribado o regime constitucional no velho Reino, e restaurado o trono do absolutismo, pensou logo d. João VI no seu amado Brasil e no seu filho dileto.

Achou que a nova transformação política operada em Portugal, com a eliminação das Cortes que tanto mal queriam à opulenta ex-colônia, facilitaria um acomodamento agradável e útil a ambos os países; e com esse fim despachou para cá o marechal-de-campo Luís Paulino Pinto da França, no brigue-correio Trese de Maio, com a missão de ordenar a Madeira de Mello que suspendesse incontinente as hostilidades na Bahia, missão que não teve mais objetivo porque seis dias antes da chegada do emissário português, o governador das Armas, vencido pela resistência dos patriotas, tinha-se feito de vela para Lisboa, com o grosso de seu exército.

Em vista desse inesperado malogro embarcou Paulino para o Rio, no dia 22 de agosto, aí chegando a 7 de setembro - primeiro aniversário da proclamação de nossa independência.

Em resposta ao ofício que mandou ao Governo, foi logo notificado de que não poderia desembarcar, se não trouxesse poderes para reconhecer a independência do Brasil, ao que retrucou ele que não tardariam a chegar os comissários especiais mandados para tratarem de semelhante matéria.

Luís Paulino, embora brasileiro de nascimento, por ser natural da Bahia, pela qual tinha sido deputado às Cortes Portuguesas, era suspeito ao nosso país, por ter combatido energicamente naquele Congresso as mais legítimas aspirações de sua pátria natal.

A escolha, pois, não fora acertada; tanto assim que a Assembléia, logo que recebeu a respeito uma comunicação, aliás lacônica, do ministro da Marinha, deliberou pedir ao Governo informações "com a maior urgência" e na sessão de 10, de posse delas, mandou que fossem publicadas, juntamente com os documentos enviados e que eram: 1º) ofício do marechal Paulino ao ministro do Império, Carneiro de Campos; 2º) resposta deste; 3º) segundo ofício daquele; 4º) ofício do governo da Bahia àquele ministro; 5º) carta régia a Madeira de Mello; 6º) aviso régio, dando-lhe instruções; 7º) carta régia ao Governo da Bahia; 8º) carta régia a Félix de Campos; 9º) carta régia a Luís Paulino; 10º) aviso régio ao Governo da Bahia; 11º) proclamação d'El-Rei aos habitantes de Lisboa, a 23 de maio; e 12º) proclamação do mesmo aos portugueses, a 10 de junho.

As comissões reunidas de Constituição e Política Interna, incumbidas de dar parecer, opinaram, e foi aprovado na sessão de 16 de setembro, que a deputação portuguesa, que se esperava, não fosse recebida, nem com ela se admitissem negociações que "não tivessem por base o autêntico e expresso reconhecimento da independência e integridade do Império" [52].

A corveta de guerra Voador [53], do comando do capitão-de-fragata José Gregório Pegado, trazendo os comissários, ancorou na Guanabara, no dia seguinte àquela decisão; e como arvorasse a bandeira portuguesa, o imperador em pessoa foi às fortalezas para obrigá-la a içar a insígnia de parlamentários a bordo. Arrancaram-lhe o leme, consideraram-na inimiga e fizeram-na fundear debaixo das baterias de Santa Cruz.

O conde do Rio Maior, que fora camarista de d. Pedro quando príncipe real, e Francisco José Vieira, que fora seu ministro, além de desembargador da Casa de Suplicação do Rio de Janeiro, tinham sido, em vista de suas relações pessoais com o imperador e de seus conhecimentos especiais dos negócios do Brasil, os nomeados pelo governo português para a difícil missão de conseguir o restabelecimento da desfeita união entre os dois reinos.

Além de cartas para o imperador e a imperatriz, escritas por d. João VI, e que os destinatários não quiseram receber, traziam eles cartas do ministro do Reino, conde de Subserra, para diversas pessoas influentes do Rio, entre outras António Carlos, pedindo-lhes que valessem com seus bons ofícios aos comissários régios no desempenho de sua melindrosa tarefa, para bem de ambos os povos. Respondeu-lhes António Carlos, pedindo-lhe que conseguisse do Rei o reconhecimento da independência do Brasil [54].

Carneiro de Campos, prudente e sisudo, entendeu nessa delicada emergência que não deveria agir antes de consultar a respeito a opinião de José Bonifácio, o qual o aconselhou a não entabular com os emissários outras negociações que não as expressas no parecer votado pela Assembléia, porquanto "o mais pequeno vislumbre de tentativa de união seria o sinal de uma conflagração em todo o Brasil" [55].

De acordo com os seus conselhos, o ministro, surdo aos longos protestos que lhe dirigiu pela missão o chefe respectivo, recusou-se a entrar em quaisquer negociações com ela, visto como o "reconhecimento in limine da independência e integridade do Império do Brasil" se requeria "para servir de condição preliminar a toda e qualquer negociação ou proposta que o Governo Português tivesse de iniciar", conforme os sentimentos do imperador, da Assembléia e da opinião pública [56]; apreendeu, como presa de guerra, a corveta em que vieram os comissários, incorporando-a à Marinha do Império com o nome de Itaparica [57], e obrigou-os a regressar para Lisboa no brigue mercante que trouxera a seu bordo o marechal Paulino.

Em ofícios de 23 de setembro, dirigidos ao cônsul geral de Sua Majestade Britânica, sir Chamberlain, e ao de Sua Majestade Cristianíssima, J. B. Malet, pedia-lhes o conde do Rio Maior que se servissem de intervir pública ou particularmente em favor dos interesses dos súditos portugueses, visto como, por ser Portugal considerado como país inimigo, não tinha pessoa autorizada para protegê-los [58].

Ao que assevera DRUMMOND [59], as notas de Carneiro eram redigidas pelo oficial de gabinete, Luis Moutinho Álvares de Lima, por insinuação e conselho de José Bonifácio, que as corrigia secretamente, mas sofriam novas emendas por parte do ministro, que não queria sujeitar-se ao papel de simples signatário do que escrevia seu inteligente auxiliar.

A chegada da missão e as peripécias a que deu lugar serviram para amortecer, por algum tempo, os sentimentos de hostilidade da população contra o imperador; mas não tardou muito que as lutas se reacendessem de novo e mais vivamente, agravando dia a dia a situação política do País, enfraquecendo o Ministério, impopularizando o monarca e fazendo que a autoridade da Assembléia aumentasse com exorbitância imprevista e usurpadora, pois era para ela, para a independência de sua conduta, para a sinceridade de seus sentimentos nacionalistas que a opinião pública se voltava confiante, no próprio momento em que nos Conselhos da Coroa, nos salões do Paço e nos quartéis da Tropa recomeçava a exercer-se a afrontosa dominação do elemento lusitano que José Bonifácio afastara, com seu pulso forte e sua vontade firme, das esferas governamentais.

O Ministério, composto de homens de pouco valor político, segundo VARNHAGEN, acovardou-se de tal modo perante o Poder Legislativo, que até chegou um dos ministros à deplorável subserviência de lhe pedir autorização para alterar o uniforme do Corpo do Estado-Maior do Exército [60].

Chegara-se - mercê da imperícia do Governo e da arrogância de d. Pedro, à perigosa situação que José Bonifácio quisera sabiamente evitar e que evitaria, por certo, se continuasse à testa do Governo, gozando da plena e inteligente confiança do imperador - à usurpação das funções executivas pelo ramo legislativo, compenetrado de que de fato residia nele a soberania da Nação. E em tal sentido se foram encaminhando lentamente as discussões do Pacto Constitucional em debate.

O caso David Pamplona. Exaltação da Assembléia

O periodismo político prosseguia na sua tarefa incansável e incessante de apreciar e criticar livremente os atos do Gabinete e do imperador. Sobre-excedia a todos, na virulência da linguagem e na violência desabrida dos ataques, A Sentinella da Liberdade.

Nesta, costumava escrever um Brasileiro resoluto artigos de apaixonada crítica ao predomínio dos portugueses nos altos conselhos da Governação. No número de 5 de novembro verberava ele a permanência de oficiais lusitanos no Exército Brasileiro; e o fazia com a veemência habitual.

Atribuiu-se - parece hoje averiguado que sem razão alguma - a autoria desses artigos a um boticário chamado David Pamplona e estabelecido no Largo da Carioca. Na tarde do mesmo dia em que foi publicado seu aranzel contra os oficiais portugueses, o major de Artilharia José Joaquim Januário Lapa e o capitão Zeferino Pimentel Moreira Freire, à paisana e a cavalo, apearam-se à porta do laboratório de Pamplona, e o agrediram, apesar de inerme, a bofetadas, a espadagadas, deixando-o assaz maltratado.

A covarde agressão produziu insólito rumor no meio carioca. Idéias e planos de desafronta surgiram a lume nas palestras das praças e dos clubes e o ofendido foi aconselhado, por vários exaltadíssimos patriotas, a que requeresse providências enérgicas à Assembléia.

Esta, que já avocara a si grande número de atribuições privativas do Poder Executivo, arrogava-se agora o direito de conhecer de um delito criminal sujeito à alçada do Poder Judiciário. É exato que, para a maioria dos constituintes, e para a quase totalidade da população brasileira do Rio, o fato perdera o seu simples e natural aspecto de crime comum para assumir as vastas proporções de um grave atentado à liberdade política e à soberania da Nação. Achou-se, por isso, que era à Assembléia que competia tomar conhecimento do caso.

O requerimento de Pamplona foi lido na sessão de 6, e na de 8 foi apresentado o parecer a respeito, "opinando que a vítima recorresse, para seu desagravo, aos meios prescritos na legislação em vigor". Este parecer desagradou sumamente a opinião pública e a cidade se manteve agitada durante todo o dia 9, mormente à noite, pois ocorreram conflitos, em vários pontos, entre nacionais e lusitanos.

Caetano Montenegro, ministro da Justiça, e João Vieira de Carvalho, ministro da Guerra, alegando a circunstância de serem filhos de Portugal, solicitaram demissão de suas Pastas, que lhes foi concedida no mesmo dia 9. No dia imediato, prevendo graves acontecimentos, o imperador transportou-se para o Paço da Cidade, já pensando talvez em dar violenta solução à crise.

A população afluíra para o edifício da Assembléia, apinhando-se nas galerias e no próprio recinto, por expresso consentimento da Mesa. Tratou-se da questão Pamplona, falando em primeiro lugar, num discurso rápido e vibrante, António Carlos, que discordou das conclusões do parecer; e propôs que se recomendasse ao Governo para abrir inquérito, visto como, parecendo tratar-se de simples interesse individual, estava realmente em jogo a dignidade brasileira; e que, verificados quais os verdadeiros autores do atentado, ficasse o Poder Executivo autorizado a expulsá-los do território nacional.

Discurso de António Carlos. Uma peroração que passou à História

"É no Brasil - indaga o ardoroso parlamentar -, é no seio da Assembléia Geral Constituinte do Brasil que eu ergo a minha voz? Como, sr. presidente? Lê-se um ultraje feito ao nome brasileiro na pessoa do cidadão David Pamplona, e nem um sinal de marcada desaprovação aparece no seio do ajuntamento dos representantes nacionais? Morno silêncio de morte, filho da coação, peia as línguas; ou o sorriso, ainda mais criminoso, da indiferença, salpica os semblantes? Justo Céu! e somos nós representantes? De quem? Da Nação Brasileira não pode ser. Quando se perde a dignidade, desaparece também a nacionalidade".

E prossegue: "Como disse a comissão que o caso devia remeter-se ao Poder Judiciário, e que não era da nossa competência? Foi ele simples violação de um direito individual, ou antes um ataque feito a toda a Nação? Foi o cidadão ultrajado e espancado por ter ofendido os indivíduos agressores, ou foi por ser Brasileiro e ter aferro e afinco à independência de seu País?... Os cabelos se me eriçam, o sangue ferve-me em borbotões, à vista do infando atentado e quase maquinalmente grito: Vingança!"

E, num crescendo que impressiona cada vez mais a Assembléia atônita e o povo comovido, invectiva os covardes que se humilham perante o imperador e exclama: "Poderei ser assassinado: não é novo que os defensores do povo sejam vítimas de seu patriotismo; mas meu sangue gritará vingança e eu passarei à Posteridade como o vingador da dignidade do Brasil!"

Apesar das repetidas advertências do presidente da Assembléia, João Severiano Maciel da Costa, aplausos estrondosos, das galerias e da sala, cobriram suas últimas palavras. Seguiu-se-lhe na tribuna Martim Francisco, que proferiu um veemente discurso, "Manifestamente estudado" - afirma-o VARNHAGEN [61] - e entre outras coisas desamáveis dizia dos portugueses e do imperador o seguinte: "Infames! Assim agradecem o ar que respiram, o alimento que os nutre, a casa que os abriga, e o honorífico encargo de nossos defensores, a que indiscretamente os elevamos!... Ainda vivem, ainda suportamos em nosso seio semelhantes feras!"

Interrompido por aplausos gerais, não pôde continuar sua oração, porque o presidente, em vez de fazer evacuar as galerias, como determinava o regimento, suspendeu a sessão e, acompanhado da Mesa, abandonou o recinto. À saída dos dois irmãos, o povo delirante os vitoriou, carregando-os nos braços até onde residiam, e aclamando-os durante o trajeto [62].

O imperador, de uma das janelas do Paço, fora testemunha ocular do triunfo que os Andradas acabavam de obter; e ao ter conhecimento das referências de Martim à sua pessoa, estomagou-se mui naturalmente.

Mudança ministerial

Em presença dos acontecimentos desse dia, Carneiro de Campos, ministro do Império e Estrangeiros, e Nogueira da Gama, da Fazenda, solicitaram demissão de seus cargos, a qual lhes foi concedida imediatamente.

Chamou o imperador para organizar novo gabinete a Francisco Villela Barbosa (depois marquês de Paranaguá), que ficou em lugar de Carneiro de Campos, e confiou a Pasta da Fazenda a Sebastião Luís Tinoco da Silva [63], a da Guerra ao general José de Oliveira Barbosa (depois visconde do Rio Comprido) e a da Justiça a Clemente Ferreira França, ficando na da Marinha Luís da Cunha Moreira (mais tarde visconde de Cabo Frio).

A escolha de Villela Barbosa serviu para tomarem maior vulto as suspeitas que se nutriam contra os desígnios anti-nacionalistas do imperador. Embora natural do Brasil, fora em Lisboa, nas Cortes e fora delas, um irredutível adversário da independência de sua Pátria, e só esse motivo bastava para torná-lo antipático aos olhos dos patriotas. Mas, a respeito de sua recente chegada ao Brasil - pouco depois da dos malogrados comissários de d. João VI - circularam com insistência boatos desagradáveis. Dizia-se que ele era portador de instruções especiais dos restauradores portugueses perante d. Pedro e alguns conhecidos absolutistas residentes no Rio, para o fim de religar de novo os dois reinos já definitivamente separados.

Conhecidas as suas convicções anteriores e a sua impatriótica atitude nas Cortes Portuguesas - onde chegou a declarar que tinha vergonha de ser brasileiro e para castigar os patrícios que desejavam a separação era capaz de atravessar a nado o oceano, com a espada na boca [64], em vista de tais antecedentes, as suspeitas que recaíam sobre ele revestiam-se de todos os característicos da mais absoluta veridicidade.

E havia todo o fundamento para essa geral desconfiança pública, porquanto DRUMMOND [65], muitos anos depois de todos esses fatos, leu em Lisboa, em poder de Manuel José Maria da Costa e Sá, todas as cartas de Villela, relatando o resultado das entrevistas que sobre a matéria tivera com o imperador, com o barão de Santo Amaro, com Luís José de Carvalho e Mello, com vários outros indivíduos de alta posição na Corte. O certo é que sua nomeação foi mal recebida e todos ficaram à espera de novos atentados à liberdade do nascente Império; e nisso não se enganaram.

Concentração de tropas

Na mesma tarde de 10, por ordem verbal de d. Pedro, concentraram-se em S. Cristóvão as Tropas da Guarnição, e aí acamparam aguardando novas determinações. O coração dos patriotas pressentia tristes sucessos para o dia seguinte, funestos à causa da Independência. Vagos, mas insistentes boatos corriam, de que se preparava um golpe d'Estado, com a dissolução da Constituinte.

Na manhã de 11, as imediações da Assembléia estavam repletas de povo, ansioso por inteirar-se do que se passava, pois as sessões abriam-se ordinariamente às 10 horas.

A Constituinte declara-se em sessão permanente

Iniciados os trabalhos, ergueu-se com imponente dignidade António Carlos, e, após breves e incisivas palavras, apresenta uma indicação para que a Assembléia: 1º) se declare em sessão permanente, enquanto houver inquietação pública; 2º) mande uma deputação ao imperador, rogando-lhe que faça o Governo comunicar aos representantes da Nação qual o motivo dos estranhos movimentos militares que tamanha perturbação estão causando à ordem; 3º) nomeie uma comissão para vigilar sobre a segurança da Corte e comunicar-se com o Governo, a fim de se deliberar a respeito das medidas excepcionais que as circunstâncias reclamam.

Depois de um caloroso debate entre o presidente, o autor e o deputado cearense, padre José Martiniano de Alencar, a propósito da ilegal suspensão da sessão anterior, foi dada à discussão, com urgência, a proposta de António Carlos, a favor da qual falou o representante  da Bahia, doutor Francisco Gê Acayaba de Montezuma. O padre Alencar falou contra, respondendo-lhe o autor, mas sua resposta aparece truncada, falha e omissa no Diário da Assembléia, talvez de propósito, embora uma nota entre parêntesis lance a culpa dessas irregularidades sobre o taquígrafo Possidónio.

Estava falando Martim Francisco em apoio da indicação, quando os trabalhos foram interrompidos para se receber um ofício do ministro do Império, endereçado ao secretário da Assembléia, dr. Miguel Calmon du Pin e Almeida, deputado pela Bahia.

Era uma comunicação, por ordem do imperador, à Assembléia, levando ao seu conhecimento que os oficiais da Guarnição da Corte lhe haviam representado no dia anterior sobre os insultos que "têm sofrido em sua honra particular por parte de alguns periódicos, que aliás tratam com suma e indecorosa irreverência a augusta pessoa de Sua Majestade Imperial". Fora-lhes respondido que a Tropa, por sua natureza, é inteiramente passiva e não deve ter influência alguma nos negócios políticos. Contudo, para evitar qualquer possível perturbação da ordem, mandara-as Sua Majestade aquartelarem-se no Campo de S. Cristóvão. E terminava, solicitando da Assembléia as providências necessárias.

Nomeou-se, ato contínuo, uma comissão para emitir parecer  respeito, a qual, por votação da Assembléia, ficou assim constituída: Araújo Lima (Pernambuco), 32 votos; Nicolau Vergueiro (S. Paulo), 30; Felisberto Caldeira Brant Pontes (Bahia), 28; Barão de Santo Amaro (Rio), 25; e José Bonifácio (S. Paulo), 23. Enquanto ela se dedicava à sua tarefa, discutiram-se os artigos 22, 23 e 24 da Constituição, o primeiro dos quais, sobre propriedade literária e industrial e privilégios de invenções, e o segundo, sobre liberdade de imprensa, foram aprovados. A discussão do terceiro ficou adiada por ter dado a hora regimental.

Entrou em seguida em discussão o parecer sobre o requerimento de David Pamplona, que fora adiada na sessão antecedente. Tomou a palavra Martim Francisco, mas o Diário, parece que cumprindo ordens superiores, não inseriu o seu discurso, limitando-se a declarar que os taquígrafos o não tomaram.

Falaram depois, a favor, o deputado pelo Ceará, dr. João António Rodrigues de Carvalho, e contra, Joaquim Manuel Carneiro da Cunha, representante da Paraíba do Norte, de cujo discurso o Diário apenas publicou uma insignificante súmula em meia dúzia de linhas.

Às 3 horas da tarde adiou-se a discussão, para se proceder à leitura do parecer da comissão especial sobre o ofício do ministro do Império. O relator, Nicolau Vergueiro, depois de historiar brevemente os fatos, concluiu por pedir, em vista da manifesta insuficiência da comunicação, que o Governo declare se foram todos os oficiais da Guarnição que representaram ao imperador; quais os redatores dos periódicos a que se referem; quais os insultos de que se queixam e qual o partido incendiário a que aludem, o seu objetivo e a sua força.

Aprovado este parecer, entrou seguidamente em discussão, relatado também por Vergueiro, o parecer elaborado sobre a indicação de António Carlos, opinando por que seja declarada em sessão permanente a Assembléia nos termos do art. 1º da dita indicação; anulado o 2º, à vista do ofício enviado pelo ministro do Império e quanto ao 3º, que se aguardassem as novas informações pedidas ao Governo.

O parecer foi aprovado e o secretário Miguel Calmon imediatamente oficiou a Villela Barbosa, solicitando-lhe, não só informes completos que habilitassem a Assembléia a formar opinião conscienciosa sobre os acontecimentos, como também a indicação das medidas legislativas que julgasse necessárias para a pronta solução da crise.

À 1 hora da madrugada de 12 chegava a resposta, particularizando as queixas da oficialidade. Os periódicos agressores eram O Tamoyo e A Sentinella da Liberdade, e os queixosos atribuíam a redação do primeiro aos três Andradas que tinham igualmente influência na redação do segundo, e as suas doutrinas produziam a organização de partidos incendiários. Vê-se bem quanto é lata e vaga a última acusação, na qual se não precisam, como pediu a Assembléia, quais os partidos que a representação nomeara.

Quanto aos periódicos, a imputação era caluniosa: noutro lugar já dissemos qual a parte que os Andradas tomaram na redação d'O Tamoyo, cuja fundação José Bonifácio combatera, acabando por submeter-se às rogativas de Vasconcellos de Drummond, mormente que só tivera conhecimento de sua existência após o aparecimento do número inicial. É inegável, porém, que nos artigos de responsabilidade propriamente redatorial esse periódico refletia o pensamento dos Andradas ou, mais acertadamente, o de José Bonifácio.

Mas com A Sentinella da Liberdade não tinha nenhum dos irmãos ligação alguma e até repulsaram as suas doutrinas pelo número 4 d'O Tamoyo, onde se declara que "Não são, nem podem ser dos Andradas, nem por eles propagadas, as doutrinas" daquele jornal, travando-se, a propósito, uma polêmica entre ambos.

VARNHAGEN [66] divulga que os Andradas foram os fundadores d'A Sentinella, errando sempre por vício ingênito do coração; mas RIO BRANCO vitoriosamente o contesta. Montezuma requereu que o ofício fosse à Comissão, ao que retrucou António Carlos achando inútil a providência, porque não sabia que parecer pudesse ela emitir sobre tal resposta. Carneiro da Cunha atacou o Governo, ameaçando de resignar o seu mandato, se não fossem decretadas as medidas impostas pela anormalidade da situação; José Bonifácio pediu que se lhe desse substituto, caso o ofício do ministro fosse à comissão.

Prolongou-se o debate, no qual intervieram ainda Martim Francisco, António Carlos, Rodrigues de Carvalho e o padre Alencar. Este propôs que se levantasse a sessão permanente, fundamentando sua proposição em termos duramente prosaicos, em contraste flagrante com a solenidade daquele grave momento.

"Parece-me que pode dar-se sessão permanente - argumentava ele - sem estarmos arqui pregados. Nós necessariamente havemos de dormir; fique, pois, embora a sessão permanente, mas retiremo-nos, porque o exige a natureza". Aquele santo apóstolo, na ocasião mesma em que a liberdade da Pátria, a sua dignidade e a sua independência estavam prestes a sucumbir, estranguladas pelo despotismo - pensava apenas em dormir e nas outras exigências da fraca natureza, como se os sentimentos de dedicação a outrem, à Nação ameaçada e em perigo não pudessem dominar tais grosseiras exigências; e como se não fosse preferível morrer a desertar de seu posto.

Respondeu-lhe Montezuma em frases ajustadas à gravidade da crise: "A Assembléia há de conservar-se em sessão - dizia o futuro visconde de Jequitinhonha, em palavras simples, serenas e dignas -, não demos um exemplo tão pouco digno dos representantes da Nação. Continuemos; se morrermos, acabamos desempenhando nossos deveres".

Exigências ilegais das Tropas. Resistência da Assembléia

Seguiu-se-lhe na tribuna, àquela hora da madrugada, o velho José Bonifácio que, apesar de sexagenário e atribulado pelos desgostos e emoções da sua jornada formidável pelo ministério que fizera a Independência - ali permanecia para dignificar a atitude da Assembléia com a sua presença e orientá-la nas suas decisões supremas.

Começou estranhando que o Governo, ao tratar de periódicos e partidos incendiários, só se referisse a O Tamoyo e a A Sentinella, e nada dissesse em relação ao Correio e ao Diário do Governo, que atacavam os adversários políticos a seu bel-prazer. Argúi de falsa a alegação de que representaram ao imperador os oficiais da Guarnição, quando é certo que apenas 60 oficiais é que tiveram tal procedimento.

E, depois de afirmar que o Governo não respondeu a nada do que se lhe perguntou, concluiu que "quanto à permanência da sessão, não há que discutir; devemos aqui estar até que este negócio se termine... se não obrarmos assim, seremos fracos, incapazes de ser deputados da generosa Nação Brasileira".

Aprovada que foi a permanência da sessão e a ida do ofício à comissão, ficou esta reconstituída, pela retirada de José Bonifácio e pela ausência do barão de Santo Amaro, com a entrada dos imediatos em votos, Manuel Ferreira da Câmara e Carneiro de Campos.

Às 3 horas e três quartos, Vergueiro lia o novo parecer; reconhecendo o abuso de liberdade, cometido pelos periódicos apontados e por outros, o que era fruto da falta de uma legislação adequada, que se tornava necessária, alvitra que se interrompa a discussão do projeto de Constituição para se tratar da lei de imprensa; e como é o Governo o primeiro a afirmar a subordinação da Tropa, nada ocorre à comissão para propor à Assembléia a respeito de segurança pública.

Tomou a palavra António Carlos. Ao contrário de José Bonifácio que, no seu lacônico discurso, confessou francamente a pequena parte que lhe coube na redação d'O Tamoyo, onde só disse o que lhe ditou a consciência, o fogoso tribuno capitulou energicamente de falsidade a acusação que lhe imputavam, visto não ter tido nunca influência alguma naquele jornal nem noutro qualquer. "Por conseqüência - afirma -, o ministro mentiu quando tomou semelhante pretexto para fazer acusação tão falsa e tão indigna". E continua, depois de ter analisado rapidamente os termos do ofício: "...como deputado da Assembléia digo francamente que não temos segurança, que a Assembléia está coata e que não podemos deliberar assim, porque nunca se delibera debaixo de punhais de assassinos".

Discordou do parecer quanto à restrição da liberdade de imprensa, achando que a legislação vigente dá ao Governo meios para chamar à justiça os infratores; e terminou mandando à Mesa uma emenda ao parecer no sentido de se dizer ao ministro do Império que a Assembléia não tinha conhecimento de inquietação alguma na Capital, a não ser a que decorria naturalmente do susto causado pela inopinada e inexplicável concentração de forças no Campo de S. Cristóvão; que se reprimissem com as leis ordinárias os delitos por abusos da liberdade de imprensa, que a Assembléia se não achava em liberdade para poder deliberar, uma vez que a Tropa reunida se manifesta hostil a alguns dos deputados e que fosse essa removida para maior distância.

Vergueiro combateu a emenda, principalmente quanto à remoção da Força Pública para mais longe, porque, se ela se encontra subordinada à necessária disciplina, como afirma o imperador, acha inconveniente essa medida. A Tropa é que sustenta o vigor do Governo e afastá-la mais é facilitar o desenvolvimento dos partidos em luta.

Sucedeu-lhe na tribuna Carneiro da Cunha para censurar o Governo que, depois de ter dito que a Tropa está subordinada à lei e às autoridades, não trata de restabelecer a tranqüilidade pública. "Se a ordem está perturbada, e se a Força é fiel, porque, servindo-se desta, não restabelece aquela? O que vejo nisto é o Governo a querer dar-nos a lei, e então vale mais largarmos a nossa tarefa, uma vez que se pretende abater a dignidade da Assembléia e a de um povo generosos que tantos sacrifícios tem feito para proclamar a sua independência. E de que servirá continuar? Quanto a mim, vejo-me coato, nem já posso falar como deputado".

E conclui, declarando que a resposta do ministro não é sincera e que a concentração das Forças, inclusive as milícias, desperta a desconfiança dos cidadãos, porque indica alguma oculta pretensão. Propõe que se diga ao Governo que se quer que a Assembléia continue a funcionar, tranqüilize o espírito público, porque é falta de prudência atacar assim o Congresso na pessoa de alguns de seus membros.

Os taquígrafos declararam em nota que do resto do discurso só tomaram estas palavras finais: "Portanto, para salvação do Estado é necessário que se remova, não a Tropa, mas a Assembléia, para fora do Rio de Janeiro; e por isso voto que assim se proponha ao Governo". E enviou à Mesa uma emenda em tal sentido.

Levantou-se depois Martim Francisco que, em discurso não tomado pelos indiligentes taquígrafos, fundamentou uma emenda que enviou à Mesa, e versava sobre a necessidade de se retirar a Tropa para fora da capital seis léguas, já para se restabelecer o sossego no Rio, já para se evitar possível reação nas províncias, suspendendo a Assembléia suas sessões ou removendo-se para outra província, até se obter a tranqüilidade pública.

Montezuma, cujo discurso também não foi taquigrafado, apresentou uma sub-emenda à emenda anterior, para que as Tropas fossem postas longe da capital dez léguas, e que só voltassem depois de reintegradas na confiança da população e que, no caso de ser aprovada a mudança da Assembléia para outro ponto do país, se marcasse o termo em que deviam dar-se por suspensas as sessões na capital.

Vergueiro teve então a idéia de requerer que fosse chamado o ministro do Império "para informar circunstanciadamente sobre o objeto dos seus ofícios de ontem", o que foi unanimemente aprovado. Foi logo expedido o ofício a Villela Barbosa, comunicando-lhe que a Assembléia deliberou que ele comparecesse nesse mesmo dia à sua presença pelas 10 horas da manhã e que a sessão continuaria permanente até a sua chegada.

A noite da agonia

Amanhecia. Todos estavam fatigados pela vigília, pelo trabalho constante, pelos sobressaltos, pela comoção, pelas angústias daquela tremenda hora de incerteza e inquietações patrióticas. "Mártires da Pátria - escreve com profundo sentimento um venerando historiador patrício -, esses cidadãos ilustres esperavam plácidos e serenos a hora suprema do sacrifício. Na longa noite da agonia, em sessão permanente no Paço da Assembléia, haviam-se confessado para comparecerem perante Deus" [67].

Às 11 horas da manhã, anunciada a presença do ministro no edifício, foram ao seu encontro para recebê-lo os secretários substitutos Fernandes Pinheiro e Costa Carvalho, por não estarem presentes os efetivos. Villela Barbosa apresentou-se fardado, e por isso lhe observaram que deveria deixar a espada fora do recinto, ao que respondeu: "Esta espada é para defender a minha Pátria e não para ofender os membros desta Augusta Assembléia; portanto, posso entrar com ela". E entrou desembaraçadamente, levando à cinta o emblema da força bruta, como para escarnecer do Congresso.

Entre ele, o presidente e vários deputados, estabeleceu-se um verdadeiro interrogatório, a que o ministro respondia com evasivas, alegando nada saber quanto aos fatos mais importantes, porque entrara para o governo apenas na antevéspera e não estava perfeitamente a par de tudo quanto havia ocorrido anteriormente; e só positivou, quando interrogado, o que é que a oficialidade da Guarnição exigia em sua representação de 1º de novembro: que os Andradas fossem expulsos da Assembléia e que se coibisse imediatamente a liberdade de imprensa.

Quanto à primeira exigência, entendeu S. Majestade que era inadmissível por inconstitucional - o que não o impedia de, no próprio dia em que assim falara seu ministro, dissolver a Assembléia e mandar prender e deportar os mesmos deputados cuja expulsão a oficialidade indisciplinada reclamava. É que d. Pedro julgou mais constitucional a coletiva cassação dos mandatos do que a excomunhão parcial de três díscolos.

A certa altura da interpelação, declarou Villela recear que acontecesse no Brasil o "mesmo que houve em Portugal, visto que os acontecimentos atuais, e as causas que os prepararam, se parecem muito com os daquele reino". Instado por Montezuma para clarear bem o seu pensamento esboçado nessa frase, explicou que não sabia adivinhar o futuro, acrescentando: "Vejo a Assembléia amotinada levantar extemporaneamente a sessão; os militares queixarem-se a S. Majestade; as Tropas marcharem para S. Cristóvão; a Assembléia todo o dia e noite em sessão permanente; ora, coisas semelhantes a estas vi eu em Portugal; contudo, não posso afirmar qual será o final resultado".

Retirou-se pouco depois o ministro, mas suas palavras sobre a identidade da crise em Portugal e no Brasil valeram como um aviso que orientou a Assembléia em relação ao seu destino. Todavia, continuou-se a discutir. José Ricardo lembrou o alvitre de se chamar o ministro da Guerra, uma vez que o do Império quase tudo ignorava no tocante à atitude e às imposições da Tropa, alvitre que Montezuma aceitou e consubstanciou numa indicação.

José Bonifácio opôs-se à idéia por sua manifesta inutilidade. O ministro da Guerra, entrado para o Governo na véspera, responderia com o do Império, que não estava bem informado do que sucedera antes de empossar-se do cargo. "Os fatos estão claros por sua natureza - acrescentou gravemente - e em nada nos são ocultas as vistas do Governo".

Silva Lisboa, em longo discurso, defendeu a Tropa, que usara apenas do direito constitucional de petição, e defendeu o imperador por se ter feito intérprete desse direito perante a Assembléia. De maneira que, para o velho publicista, historiador e parlamentar baiense, reunir-se a Tropa, de armas na mão, e exigir do chefe do Estado que se coate a liberdade imprensa e se expulsem da Assembléia três deputados eleitos pelo povo - é simples e puro exercício do direito de peticionar, segundo seu extravagante neologismo.

O padre Alencar deu-lhe o troco e entre outras coisa ponderadas sustentou que a Assembléia não podia dignamente deliberar enquanto a Força não recolhesse a quartéis; e opinou que se transferisse para outro ponto do Império seu regular funcionamento. Carneiro da Cunha declarou-se de acordo com seu colega: "Conservando-se a tropa na atitude em que se acha, nada podemos fazer". Alencar, voltando à tribuna, para manter seus pontos de vista, concluiu que, no caso de não voltarem as Tropas a seus quartéis, suspendesse a Assembléia suas sessões ou se dissolvesse. O povo, das galerias, gritou-lhe numa só voz: "Dissolver, nunca!"

Depois de estafante debate, foi à comissão o ofício último de Villela Barbosa, para a respeito emitir parecer. Nisto soube-se que um contingente militar marchava em direção à Assembléia. António Carlos exclamou: "Daqui iremos para onde a Força nos mandar". Montezuma propôs que se mandasse uma deputação indagar que é que da Assembléia queria a Força armada; Alencar achou que seria melhor esperar o que Sua Majestade ordenasse. Martim Francisco declarou: "Sr. presidente: o nosso lugar é este. Se Sua Majestade quer alguma coisa de nós, mande aqui e a a Assembléia deliberará". António Carlos ajuntou que, apesar da aproximação da Tropa, devia-se continuar nos trabalhos parlamentares.

Dissolução da Constituinte. Prisão de José Bonifácio, António Carlos, Martim Francisco e outros

Anunciou-se então que o brigadeiro José Manuel de Moraes, comandante da Guarda de Honra, achava-se no edifício, da parte de Sua Majestade, indo recebê-lo os secretários, dr. Caetano Lopes Gama, representante das Alagoas, e dr. Manuel António Galvão, juiz de fora de Goiás e deputado pela Bahia.

Apresentando à Mesa o papel que lhe entregara o general, esclareceu Galvão que o portador trazia recomendação de S. Majestade para ser lido o dito papel e voltar outra vez à sua mão. "Pergunto se pode ler-se?" Decidiu a Assembléia que sim.

Era o decreto dissolvendo-a, por ter ela "perjurado ao tão solene juramento que prestou à Nação de defender a integridade do Império, sua independência e a dinastia de d. Pedro", e convocando outra para discutir o Projeto de Constituição que lhe apresentaria o imperador, "duplicadamente mais liberal que o que se estava discutindo".

Achava-se referendado apenas por Clemente Ferreira França, ministro da Justiça - "a vergonha da toga, o magistrado mais corrompido do Brasil" [68] e pelo ministro da Guerra, o octogenário general Oliveira Barbosa, por se terem nobremente recusado a assiná-lo o da Marinha e o da Fazenda.

Martim Francisco propôs imediatamente que se tirasse uma cópia do decreto, o que foi executado pelo secretário Miguel Calmon. Depois de alguns alvitres lembrados por vários deputados, António Carlos disse finalmente: "Nós já não temos que fazer aqui. O que resta é cumprir o que Sua Majestade ordena no decreto que se acabou de ler".

Saíram do recinto todos os representantes do povo depostos de suas funções pela força militar do despotismo. Era precisamente uma hora da tarde de 12 de novembro de 1823 [69]. À porta do edifício, que estava cercada por uma brigada sob o comando do brigadeiro Lázaro José Gonçalves, deu o general Moraes voz de prisão, à ordem do imperador, a António Carlos, Martim Francisco, Belchior Pinheiro, Montezuma e alguns outros.

Conduzidos para o Largo do Paço, de lá foram transportados num escaler para o Arsenal de Marinha e à noite para a Fortaleza da Laje. A essas horas já se lhes tinha reunido José Bonifácio, que fora preso em sua residência, por volta das onze horas da manhã, quando jantava [70].

Ao ser apresentado ao general Moraes, disse-lhe José Bonifácio as seguintes palavras que muito realçam o seu formidável poder de previsão política: "Diga ao imperador que eu estou com o coração magoado de dor, não por mim, que estou velho, e morrer hoje fuzilado ou amanhã de qualquer moléstia, é coisa para mim bem indiferente; que é por seus filhos inocentes que eu choro hoje; que trate de salvar a coroa para eles, porque para si está perdida desde hoje; a sentença ele mesmo a lavrou, e já não pode subtrair-se a seus efeitos; porque se o castigo da Divindade é tardio, esse castigo nunca falta" [71].

O Patriarca da Independência, o fundador da Pátria Brasileira, foi atirado a uma prisão subterrânea, úmida e suja, sem ter uma cama onde por alguns momentos pudesse repousar sua fatigada e gloriosa velhice. Um pedaço de tapete antigo, arrancado à Capela do Forte, serviu-lhe de leito naquela noite de angústias.

Atentados. Uma passeata orgíaca

O imperador, à hora da dissolução da Constituinte, achava-se no Palacete do Campo de Sant'Anna, cercado de Forças, e ao lado de seus ministros, validos e comensais do Paço. Para o golpe que desfechara contra a Assembléia conseguira a adesão e apoio da Tropa, enganando-a, isto é, declarando-lhe que aquele Poder o tinha deposto do seu cargo imperial e ia também deportá-lo para os pontos mais longínquos do Brasil. Se os soldados queriam defender sua própria dignidade e os direitos do trono, ele se poria à sua frente para dissolver a Assembléia...

Os oficiais, que na sua maioria ignoravam as tramóias concertadas entre alguns deles e d. Pedro, deram-lhe prontamente o seu apoio e assim o inqualificável atentado se consumou [72].

Enquanto a tipografia d'O Tamoyo era ocupada militarmente, e os cárceres recebiam os Andradas e seus amigos, o imperador, à testa da Força Pública, saía do Campo de Sant'Anna em direção ao centro da cidade, para receber os consagradores aplausos de seus criminosos cortesãos e fâmulos indignos, transformados irrisoriamente em ecos falsos de uma opinião pública que se não manifestava, esmagada pela prepotência do despotismo triunfante.

D. Pedro, endoidado de prazer infrene, percorreu a cavalo, estrepitosamente, as ruas principais, acompanhado de seu Estado-Maior, levando todos nos chapéus ou barretinas ramos emblemáticos de folhas de café. Nesse dia fatal, solenizando-se a incruenta vitória dos canhões da artilharia imperial contra uma corporação política desarmada, distribuíram-se pelos vinolentos soldados da Tropa ramos da mesma planta; e os próprios ministros, misturando-se com os criados do Paço e nivelando-se impúdicos com a favorita impudente, ornaram também os respectivos chapéus com tais adornos.

Dona Domitila ostentava escandalosamente entre as curvas do seio desnudado um ramo colossal da famosa rubiácea. Os partidários de d. Pedro e de sua política nefasta levantavam, à sua passagem, vivas ao constitucionalismo e ao imperador, e morras aos Andradas e a O Tamoyo. Mas, pelas ruas por onde o cortejo tumultuário passava entre os alaridos das exclamações entusiásticas dos portugueses triunfantes, fechavam-se as janelas das casas brasileiras.

À noite, houve iluminação dos edifícios portugueses e apenas um ou outro nacional, amedrontado ou coagido, acompanhou essa manifestação dos vencedores contra a liberdade da Pátria. A maioria das casas, porém, conservou-se às escuras e a cidade retombou na mais profunda tristeza - o que impressionou vivamente o espírito de d. Pedro, sobretudo quando soube que a qualificação de perjura com que malsinara a Assembléia tinha produzido desagradável efeito no espírito público.

O dia seguinte. Reorganização do Ministério

Toca, pois, a remendar o decreto de dissolução, que continha aquela frase injuriosa e injusta, e novo decreto é publicado no seguinte dia restringindo o sentido da increpação aos "deputados facciosos que clamavam vingança" [73].

Ainda teve o imperador de reorganizar o Ministério, nomeando substitutos, a 13, para Tinoco e Cunha Moreira, que não tinham querido assinar o decreto de dissolução, e a 14 para Oliveira Barbosa, ministro da Guerra, que, por seus avançados anos, não se achava em condições de desempenhar o pesado encargo. Para o lugar dele, foi transferido Villela Barbosa; para a Fazenda foi nomeado Mariano da Fonseca; e para os Estrangeiros, Luís José de Carvalho e Mello, permanecendo na Justiça Clemente Ferreira França.

No mesmo dia 14 nomeou Araújo Lima para substituir Villela Barbosa na Pasta do Império e Pedro José da Costa Barros para a da Marinha. Como estes, no dia 17, se recusassem, por motivos fundamentados, a continuar nos seus postos, Villela passou-se para a Marinha, cedendo a Pasta da Guerra ao brigadeiro José Gomes da Silveira Mendonça, ex-deputado por Minas (depois Marquês do Fanado), e entregando a do Império a João Severiano Maciel da Costa [74].

E para dar-se uma aparência de constitucionalidade à ditadura que se inaugurava apoiada nas baionetas da Força, foi instituído, por decreto de 13, um Conselho d'Estado, com a incumbência de elaborar o Projeto de Constituição prometido. Para esse Conselho foram nomeados, habilmente, apenas brasileiros natos, a saber: os seis ministros e mais o desembargador do Paço, António Luís Pereira da Cunha, Carneiro de Campos, o barão de Santo Amaro e Nogueira da Gama [75].

Deportação dos Andradas

Em virtude de resolução tomada pelo Conselho, em sua sessão do dia 15, foram deportados para a França José Bonifácio e seus irmãos, José Joaquim da Rocha, Montezuma e o padre Belchior Pinheiro, saindo eles do Rio de Janeiro a bordo da charrua Lucónia, a 20. No mesmo dia foi posto em liberdade Nicolau Vergueiro. Os Andradas partiram para o exílio na maior pobreza - assevera DRUMMOND. Fora-lhes, como aos demais deportados, assinada a módica pensão anual de 1.200$000 (aos casados, pois que a dos solteiros era a metade, e com ela tiveram de sustentar-se em prolongado exílio).

O comandante da Lucónia, um português chamado Barbosa, propôs ao imperador, mas foi energicamente repelido, conduzir os presos não ao Havre, como se resolvera no Conselho, mas a Lisboa, entregando-os assim ao arbítrio do governo respectivo, que certamente os puniria. Não obstante essa peremptória repulsa, Barbosa tentou fundear no Tejo, no que foi obstado pelo imediato, que se opôs a essa deliberação contrária às instruções recebidas.

Seguiu, pois, a charrua para Vigo, onde correu sérios perigos, porque o governador da Corunha mandou-lhe arriar a bandeira brasileira e tirar-lhe o leme, avisando de sua presença as autoridades portuguesas. Esperava-se a toda a hora um vaso de guerra luso para apreendê-la e levar para Lisboa os passageiros. Efetivamente, a corveta Lealdade surdiu no porto de Vigo para dar cumprimento à tarefa de que fora encarregada - de levar para Portugal os deportados brasileiros. Os passageiros da Lucónia, apoderando-se da Praça d'Armas de bordo, resistiram.

Graças, porém, à pronta intervenção do governo inglês, para o qual José Bonifácio recorrera por escrito, foi-lhes permitido o desembarque e o prosseguimento de sua viagem por terra até a França. Se assim não fosse, e a Lucónia saísse para conduzi-los ao porto do Havre, cairiam em poder da Lealdade, cujo comandante, obedecendo a ordens terminantes do conde de Subserra, simulara voltar para Lisboa, mas ficara de fato velejando em alto mar, de modo a ter sempre a seu alcance a charrua quando, cessadas as desconfianças despertadas, levantasse ferro.

O perverso comandante da Lucónia, escolhido para executor do sinistro plano de entregar ao Governo Português (em cujo seio predominava, então, como influência máxima, o infante d. Miguel) os fundadores da Pátria Brasileira, foi anos depois condenado à morte por um Conselho de Guerra como ladrão, falecendo, em conseqüência de abusos alcoólicos, dois dias depois de sua condenação à pena capital [76].

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NOTAS:

[1] Revista do Inst. Hist. Bras., volume 48º, pág. 594.

[2] FAUSTINO DA FONSECA - Descoberta do Brasil, págs. 187 a 222.

[3] ROCHA POMBO - Obr. cit., vol. 1º, págs. 185 a 188.

[4] Vol. XXXII, ano de 1869.

[5] MIGUEL LEMOS - A questão do dia 3 de Maio como data do descobrimento do Brasil, págs. 4 a 6.

[6] Obr. cit., pág. 244.

[7] JOSÉ FELICIANO - O Descobrimento do Brasil, págs. 60 a 61.

[8] Obr. cit., vol. 1º, págs. 41 a 42.

[9] Idem, ibidem, págs. 185 a 188.

[10] Discurso que S. M. o Imperador recitou na abertura da Assembléia Geral Constituinte e Legislativa, a 3 de Maio de 1823 (Colleção de Leis do Império do Brasil, 1º vol., págs. 288 a 300).

[11] ROCHA POMBO - Obr. cit., pág. 824.

[12] ALBERTO RANGEL - Obr. cit., pág. 23.

[13] "Havia na Sala dos Pássaros (em S. Cristóvão) um alçapão que se comunicava com a guarda-roupa, e sobre este alçapão permanecia uma mesa coberta com um pano escarlate... Era sobre essa mesa que o príncipe escrevia músicas com Marcos António Portugal" (MELLO MORAES - Obr. cit., vol. 1º, pág. 53, col. 2ª).

[14] Obr. cit., pág. 249.

[15] VARNHAGEN (obr. cit., pág. 249) diz que o autor desta proposta foi o doutor em Cânones, Pedro de Araújo Lima, também deputado por Pernambuco.

[16] HOMEM DE MELLO - A Constituinte perante a História, pág. 126.

[17] ROCHA POMBO - Obr. cit., vol.7º, pág. 825.

[18] Diário da Assembléia, tomo 1º, pág. 30.

[19] Esboços Biográphicos - vol. 1º, pág. 34. Na 2ª edição brasileira da obra de ARMITAGE, feita sob os auspícios do sr. EUGÉNIO EGAS, não há nota alguma retificativa desse erro substancial do autor, mantido à pág. 59.

[20] VARNHAGEN - Obra cit., pág.s 250 a 257.

[21] VARNHAGEN - Obra cit., págs. 257 a 258.

[22] E não Muniz Tavares, como, por engano, diz VARNHAGEN (pág. 256).

[23] Collecção de Leis do Império do Brasil, 1º vol., págs. 170 a 172.

[24] Nota nº 9 de RIO BRANCO a VARNHAGEN (pág. 256).

[25] Nota nº 9 de RIO BRANCO a VARNHAGEN (pág. 256).

[26] HOMEM DE MELLO - A Constituinte perante a História, págs. 8 a 10. Collecção de Leis do Império do Brasil, vol. 1º, págs. 238 a 246.

[27] O sr. REMÍGIO DE BELLIDO não registra este trabalho na sua Bibliographia Andradina.

[28] Obr. cit., pág. 252.

[29] Idem, pág. 253.

[30] Obr. cit., pág. 253 e nota 7 do BARÃO DO RIO BRANCO.

[31] SACRAMENTO BLAKE - Diccionário Bibliográphico, vol. 4º, pág. 47.

[32] No terceiro e último volume d'Os Andradas, págs. 449 a 470.

[33] Obr. cit., pág. 253.

[34] N'Os Andradas, 3º e último vol., pág. 439.

[35] ALBERTO RANGEL - Obr. cit., pág. 74.

[36] VASCONCELLOS DE DRUMMOND - Obra cit., pág. 60.

[37] ROCHA POMBO - Obr. cit., vol. 7º, pág. 844, nota 5.

[38] ALBERTO RANGEL - Obr. cit., pág. 72.

[39] VASCONCELLOS DE DRUMMOND - Obra cit., págs. 60 a 61.

[40] Esta segunda devassa é a que José Bonifácio mandou proceder, por portaria de 22 de setembro de 1822, em virtude da afixação do boletim revolucionário no Pátio da Matriz de Santos, e ao qual no lugar competente nos referimos. A autoria desse escrito foi imputada a Francisco Ignácio e Oliveira Pinto, então exilados naquela vila.

[41] VARNHAGEN - Obr. cit., págs. 258 a 259.

[42] No decreto concedendo demissão a José Bonifácio, lê-se: "Terei sempre em lembrança o seu zelo pela Causa do Brasil, e os distintos serviços que tem feito a este Império" (Manuscrito existente no Inst. Hist. e Geográfico do Rio); e no referente a Martim Francisco: "Terei sempre em lembrança o seu zelo pela Causa do Brasil, e a exatidão com que administrou a Fazenda Pública" (No Arquivo Público Nacional). Daí a meses cumpria o imperador sua palavra, prendendo-os, lançando-os ao calabouço e por fim deportando-os!.

[43] Obr. cit., págs. 260 a 261.

[44] Pág. 260 da Hist. da Indep., nota 13.

[45] Discurso de A. Carlos na Câmara dos Deputados Gerais, a 24 de abril de 1840.

[46] Diário da Constituinte, tomo 1º, pág. 395.

[47] Idem, ibidem, pág. 688.

[48] Idem, tomo 2º, pág. 3.

[49] Diário da Assembléia, 2º vol., pág. 42.

[50] ROCHA POMBO - Obr. cit., vol. 7º, pág. 842.

[51] Collecção de Leis do Império do Brasil, vol. 1º, pág. 152.

[52] ROCHA POMBO - Obr. cit., vol. 7º, pág. 862 e nota 3.

[53] VARNHAGEN ora lhe chama Voadora, ora Voador (obr. cit., págs. 271 e 274) e ROCHA POMBO (obr. e vol. cits., pág. 863) dá-lhe o primeiro desses nomes. Chamava-se de fato Voador, como se vê do Relatório dos Commissários, publicado oficialmente pela Impressão Régia, de Lisboa.

[54] VARNHAGEN - Obr. cit., pág. 277; VASCONCELLOS DE DRUMMOND - Obr. cit., pág. 67.

[55] VASCONCELLOS DE DRUMMOND - Obr. cit., pág. 68.

[56] Relatório dos Commissários enviados por S. M. Fidelíssima ao Rio de Janeiro, com os documentos de sua correspondência official, pág. 10.

[57] Nota de RIO BRANCO à Hist. da Indep., pág. 272.

[58] Relatório dos Commissários, pág. 29.

[59] Obr. cit., págs. 68 a 69.

[60] Obr. cit., pág. 280.

[61] Martim Francisco efetivamente escrevia e decorava seus discursos parlamentares (vide nosso volume 1º, pág. 443).

[62] VARNHAGEN - Obr. cit., pág. 288; DRUMMOND - Obr. cit., págs. 74 a 75.

[63] Este Gabinete, organizado a 10, sofreu várias modificações, entre elas a passagem de Luís Tinoco, da Pasta da Justiça para a da Fazenda, por não ter querido referendar o decreto que dissolvia a Constituinte. "Senhor, a mão treme, não posso assinar este decreto" - disse ele, e arrojou a pena sobre a mesa. Só a 19 é que o gabinete ficou definitivamente constituído, com os nomes que damos no texto.

[64] VASCONCELLOS DE DRUMMOND - Obr. cit., pág. 71.

[65] Ibidem, pág. cit.

[66] Obr. cit., pág. 263. Nota 20 de RIO BRANCO à pág. 264 da mesma obra.

[67] HOMEM DE MELLO - A Constituinte perante a História, pág. 15.

[68] VASCONCELLOS DE DRUMMOND - Obr. cit., pág. 76.

[69] Diário da Assembléia, vol. 2º, págs. 395 a 413.

[70] VASCONCELLOS DE DRUMMOND - Obr. cit., págs. 78 a 79.

[71] VASCONCELLOS DE DRUMMOND - Obr. cit., pág. 84.

[72] ROCHA POMBO - Obr. cit., 7º vol., pág. 877.

[73] Collecção de Leis do Império do Brasil, 1º vol., pág. 226.

[74] MELLO MORAES - Hist. das Consts., 1º vol., pág. 426; RIO BRANCO - Nota 68 à Hist. da Indep., pág. 310.

[75] Collecção de Leis do Império do Brasil, 1º vol., pág. 227.

[76] VASCONCELLOS DE DRUMMOND - Obr. cit., pág. 109.

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