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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - OS ANDRADAS - BIBLIOTECAClique na imagem para ir à página principal desta série
Jornada do Ipiranga (4)

A história do Patriarca da Independência e sua família

Esta é a transcrição da obra Os Andradas, publicada em 1922 por Alberto Sousa (Typographia Piratininga, São Paulo/SP) - acervo do historiador Waldir Rueda -, volume II, com ortografia atualizada (páginas 627 a 643):
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SEGUNDA PARTE - INDEPENDÊNCIA OU MORTE!

Capítulo II - A jornada do Ipiranga (cont.)

[...]

Lugar onde o príncipe desembarcou. Recepção. Hospedagem

No porto do Cubatão, era D. Pedro aguardado pelo capitão-mor da Vila, João Baptista da Silva Passos, o governador da Praça, Aranha Barreto e várias pessoas de qualificação social no meio santista por sua nobreza, pergaminhos, cargos oficiais ou riquezas.

Tomando as lanchas postas à sua disposição, foram desembarcar, pelas 4 horas da tarde, mais ou menos, no Largo da Alfândega Velha, perto do antigo barracão do Consulado, em frente à atual Rua de Frei Gaspar. Construíra-se propositadamente um cais de madeira nesse local, por ordem da Municipalidade, para que o desembarque se operasse com a maior facilidade possível, "visto que os cais que há não são suficientes" [1].

Aí esperavam-no a Câmara Municipal, com seu estandarte alçado pelo procurador Domingos José Rodrigues, o vigário da paróquia, padre José António da Silva Barbosa, acompanhado do clero em peso, os comandantes das milícias locais e distintos cidadãos. Pegaram nas seis varas do pálio, sob o qual Sua Alteza foi recebido, alternativamente, o presidente da Câmara, juiz de fora pela Lei, João Baptista Vieira Barbosa; os vereadores António José Vianna e Francisco Xavier da Costa Aguiar Filho e mais seis republicanos, previamente convidados pela Edilidade, mas cujos nomes não constam das atas que compulsamos, nem de outros documentos do tempo.

Um parque de artilharia, postado a um ângulo do Largo, deu as salvas do estilo, a que se seguiram os vivas levantados pelo capitão-mor e pelo presidente da Câmara, vivas esses a que a multidão estacionada no cais e nas ruas próximas correspondeu delirantemente.

Formado o séqüito, subiu pela Travessa da Alfândega Velha (hoje Rua de Frei Gaspar), dobrou a Rua Direita e, tomando a Rua Meridional (que hoje não existe e no seu terreno ergue-se a Praça da República), parou em frente à Matriz. As ruas por onde passou o cortejo estavam juncadas de folhagem e apinhadas de povo. Das sacadas pendiam colchas de seda, e senhoras atiravam sobre o pálio regaçadas de odorantes flores. As tropas da guarnição estendiam-se em duas alas, desde o Largo do Carmo até o da Matriz, e trajavam grande uniforme.

Não sabemos se houve na recepção alguma banda musical que, com seus harmônicos acordes, avivasse mais o entusiasmo popular. Por carta régia de 3 de fevereiro de 1820 [2], criara d. João VI uma banda no Batalhão de Caçadores destacado na vila, mas ignoramos se ela chegou a ser constituída. Ainda que o fosse, porém, tendo o Governo Provisório, após a revolta do Chaguinhas, dissolvido aquele batalhão, é de crer que a sua banda de música, se existiu, fosse também extinta.

Dos documentos do tempo, contudo - quais sejam as Actas do Govêrno Provisório e as da Câmara Santista - nada consta a tal respeito, o que nos faz conjeturar que a banda não chegou a ser formada, talvez por falta de recursos dos cofres reais, que o labor do povo sempre enchia e que a insaciabilidade do oficialismo parasitário esvaziava sempre.

Depois de ouvido o Te Deum na Matriz, recolheu-se d. Pedro ao Palácio dos Governadores, que, como dissemos no primeiro volume desta obra, era localizado na ala esquerda do Convento dos Jesuítas e fora preparado pelo capitão-general Franca e Horta, especialmente para servir de residência às altas autoridades quando tivessem de ir a Santos.

À noite, o edifício da Câmara, sito no Largo do Carmo, ostentou uma iluminação "esplêndida", segundo reza a ata em que os vereadores combinaram os preparativos da recepção; e assim também puseram luminárias o Palácio, a Alfândega, o Quartel, a Casa do Trem e muitas residências privadas.

No dia seguinte, deu o príncipe audiência pública e solene beija-mão às autoridades e povo, sendo recebida em primeiro lugar a Municipalidade que, coberta de seu estandarte, aí compareceu em uniforme de gala.

O seu presidente João Baptista Vieira Barbosa, juiz de fora pela Lei, por estar vago este cargo com a chamada do dr. Pacheco e Silva para S. Paulo, fez a seguinte Fala em nome da corporação que representava e do povo da Vila: "REAL SENHOR: esta Câmara, por si e em nome do povo que representa, já por seu delegado [3] teve a honra de levar à real presença de V. A. R. seus puros votos de fidelidade, amor, respeito e submissão na Capital; porém, como, para cúmulo de sua ventura, o Céu inspirou a V. A. R. o desígnio de visitar esta Vila e Praça, nada lhe resta mais do que reiterar aos pés de V. A. R. aqueles mesmos sentimentos, pois que ela e o seu representado só teve e tem por timbre, e é de seu caráter, não se contradizer nem desmentir em suas ações" [4].

A Fala foi inexpressiva, fraca e não abona o entusiasmo nacionalista da Municipalidade, porquanto as demais Câmaras e corporações da Província sempre se manifestaram nos seus manifestos, ofícios e discursos em linguagem vibrante, viva, emocional, espontânea de patriotismo e de ardorosa admiração pelo jovem príncipe que estava se arriscando a perder um trono europeu, secularmente glorioso, tradicional herança de seus antepassados, em defesa de uma Pátria, que adorava, mas que afinal de contas não era aquela em que nascera.

Volta para S. Paulo

Ao romper do dia 7 de setembro, sua Guarda de Honra, que provavelmente aquartelara no Quartel da Guarnição, já se achava postada no largo em frente do Palácio, aguardando ordens para o regresso a S. Paulo. Este não se fez pela madrugada, como a ida a Santos, pois já era dia claro quando Sua Alteza e comitiva, dirigindo-se para o cais do porto do Consulado, tomaram as lanchas de volta para o Cubatão, onde, montando d. Pedro "uma possante besta gateada" [5], iniciou a sua marcha ascencional pela Serra de Paranapiacaba acima até alcançar à tarde a colina do Ipiranga.

É fato positivamente averiguado, desde muito tempo, e a desafio de qualquer contestação séria, que a alimária que d. Pedro cavalgava quando proclamou a Independência era uma "bela besta baia", como, quatro anos depois, afirmou uma testemunha presencial, o padre Belchior Pinheiro [6], afirmativa confirmada plenamente quarenta anos mais tarde por outra testemunha de vista, o coronel Manuel Marcondes de Oliveira Mello, que sub-comandava então a Guarda de Honra que desceu a Santos.

Entretanto, num opúsculo editado em nossos dias [7], o respectivo autor ainda nos repete a insubsistente fábula do cavalo zaino, engendrada na imaginação do dr. PAULO DO VALLE, o qual, como excelente professor oficial de retórica que era, chega a falar, com dupla e evidente exageração histórica e estilística, "em corcel espumante" [8].

Pobre, humilde e prestadia besta gateada, que conduziste, airosamente escarranchado no teu forte lombo, pelas veredas íngremes da escarpada serra, à cumeada olímpica da glória, o grande herói daquele feito épico - com que dura ingratidão te recompensam! Nem por ter sido inconsciente, foi menos valioso o relevante serviço que à Pátria Brasileira tu rendeste, para quererem agora usurpar-te a merecida celebridade e justa fama - a ti, que poderias, num movimento inesperado, num corcovo brutal e caprichoso, dar com o excelso viajor por terra, adiando assim indefinidamente a execução dos seus planos emancipadores!

Se, no que concerne à estadia do príncipe em nossa terra natal, a deplorável escassez de documentos dificulta nossa tarefa, obrigando-nos a uma narrativa falha, descolorida e sumária, dá-se exatamente o contrário quanto ao grito do Ipiranga e aos posteriores acontecimentos ocorridos na Capital: abundam os relatos das testemunhas presenciais.

Entretanto, nossa dificuldade ainda é mais séria que no primeiro caso, porquanto os depoimentos, longos e pormenorizados, dessas testemunhas, contradizem-se, chocam-se, divergem e fica o escritor debruçado sobre os documentos a estudá-los, a confrontá-los, a esmiuçar detalhe por detalhe, a ver se consegue harmonizar, em bem da verdade que procura, os fatos que em violento contraste se repelem.

Em Santos guiaram-nos a pena as atas da vereança relativas aos preparativos que se fizeram para a recepção, que foi tão pomposa quanto o permitiam as apertadas condições financeiras da Municipalidade que, não querendo fazer completo fiasco, teve que pedir ao povo "para concorrer com o que pudesse para melhor se fazer o mesmo recebimento a S. A. R., visto o pouco rédito desta Câmara" [9].

Da estadia de d. Pedro na localidade, o livro de atas só registra a Fala proferida pelo presidente Vieira Barbosa, sem informe algum referente às cerimônias havidas, ao revés da Câmara de S. Paulo, que consignou o que de principal houve no tocante ao papel que à mesma corporação competia desempenhar no conjunto das festividades e homenagens públicas.

Diante da esterilidade daqueles documentos, tem-se a involuntária convicção de que a impressão deixada pela visita do príncipe não foi de todo grata ao coração de seus vassalos santistas. Dar-se-á que a voz da tradição, despertada agora por ALBERTO RANGEL, esteja com a verdade; e que d. Pedro, tendo marcado à bela esposa de Felício Pinto uma entrevista inicial em Santos, aí se deixasse prender no enlevo das fugitivas horas de paixão, afastando-se do convívio popular e escandalizando talvez por sua conduta os homens principais da Vila?

Na descrição do feito do Ipiranga e ulteriores casos, seguiremos de preferência a carta do padre Belchior Pinheiro, que foi publicada quatro anos depois dos acontecimentos, quando estavam vivas quase todas as pessoas que os presenciaram e a pequena distância dos tempos não os podia ter apagado da memória delas.

As informações do barão de Pindamonhangaba, prestadas no declínio de uma velhice avançada, quarenta anos depois, ressentem-se, nalguns pontos, do visível enfraquecimento de sua memória, o que veremos depois, quando tivermos de analisar perfunctoriamente as diferentes narrativas dadas à publicidade até hoje.

Depois de ter subido a serra, d. Pedro, a certa altura do caminho, queixou-se de cólicas disentéricas que o agoniavam, obrigando-o a apear-se a cada momento para atender às exigências imperiosas de seu organismo; e deu ordem à escolta para prosseguir na rota, aguardando-o mais adiante à boca da estrada de S. Paulo.

Casa de campo do coronel João de Castro (depois visconde de Castro), pai de dona Domitila

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Um idílio no Ipiranga

No lugar onde se apartou da comitiva estava localizada a casa de campo de João de Castro Canto e Mello, coronel reformado do Estado Maior do Exército, e venerando pai da bela Domitila. Era uma propriedade rural encravada em campos de pastaria e situada além do Ipiranga, na estrada que vai para Santos [10].

A circunstância de ter d. Pedro despedido a escolta nesse ponto, ligada ao fato anterior do Cubatão, quando fez voltar para S. Paulo, alegando motivo urgente de serviço público, seu ajudante de ordens, irmão daquela senhora, reforça a opinião de alguns cronistas atuais que reviveram, nas evocativas páginas de seus livros, a velha tradição oral de que ela também descera a Santos ao mesmo tempo que ele, embora em caravanas separadas por algumas horas de distância, segundo pensamos nós.

Do torrão Andradino, onde teriam tido provavelmente o primeiro inolvidável contato amoroso, haveria a futura marquesa regressado horas antes da comitiva do príncipe e daí a razão por que este só deu ordem de partida quando o sol já ia alto. Obediente aos planos combinados, ficaria esperando por ele no solitário casarão postado em meio da imensa campina melancólica.

Entretanto, a combinação poderia ter sido diversa, figurando-se uma outra hipótese mais inteligente do que as anteriores. Dona Domitila não desceu a Santos. Do Cubatão mandou d. Pedro que o alferes Francisco de Castro voltasse para S. Paulo. O seu reaparecimento no lar paterno era o aviso previamente convencionado. Dona Domitila partiu, pois, pela manhã de 7, para o rústico solar do velho Castro; e ali, na quietação da tarde tépida e macia, doirada por um pálido sol de fim de inverno, ao constante rumor de alguma fonte ignota, que cantarejava e fluía, intercortando a mata, é que o carinhoso e delirante par, na força juvenil da graça e da paixão, alternou as primeiras confidências íntimas, permutou os primeiros abraçados ósculos, trocou ardentes juras de fidelidade e desmaiou de amor no toro do adultério...

O próprio d. Pedro, segundo ALBERTO RANGEL [11], rememora, em carta dirigida à Marquesa de Santos, a 27 de dezembro de 1825, que foi a 7 de setembro de 1822 que começou a votar-lhe amizade. Cremos que o ilustrado escritor equivocou-se, quando escreveu, textualmente: "Nas alturas dessa propriedade, d. Pedro se separara da escolta, a 7 de setembro de 1822, e justamente nessa data começara a 'ter amizade' com dona Domitila, segundo ele próprio o rememora em 1825, marcando de seu punho a curiosíssima efeméride dos amores efetivos".

E reproduz em nota o trecho, a que se refere, da citada epístola do príncipe, publicada por MELLO MORAES [12]: "No mesmo dia em que fazia três anos que eu comecei a ter amizade com mecê, assino o Tratado de nosso reconhecimento como Império".

Ora, essa tratado, que fora concluído e assinado pelos respectivos plenipotenciários em 29 de agosto, foi ratificado pelo imperador no dia imediato - isto é, a 30 de agosto de 1825. A efeméride, portanto, assinalada pelo punho de d. Pedro, na missiva endereçada à sua amásia, não é 7 de setembro, como divulga o ilustre publicista. Teremos, pois, de concluir que o encontro inicial dos dois amantes foi nesta Capital, e não em Santos ou no Ipiranga, por ocasião da volta para S. Paulo.

A conclusão, entretanto, não exclui a hipótese de ter dona Domitila ido à terra dos Andradas a 5 de setembro ou ter-se demorado em doce idílio com o regente galanteador, na tarde de 7, no silêncio do campo e à sombra do paterno teto, porquanto d. Pedro confessa que a 30 de agosto é que começou a ter amizade por ela, o que não importa, como parece entender o sr. ALBERTO RANGEL, na confissão de a ter possuído nessa data.

A amizade, o amor, a paixão, irrompem, crescem, desenvolvem-se, incrementam-se, intensificam-se, independente do ato complementar da posse. D. Pedro recorda, na carta, o venturoso dia em que principiou a amar a rapariga paulistana, e isso não significa que a sua intimidade fosse mais longe.

Aliás, era ele um homem extremamente amoroso, mesmo quando não estimulado pelos simples impulsos da concupiscência. A sua dócil ternura coava-se através de sua brutalidade impulsiva. As provas aí as temos no afeto sempre demonstrado pelos pais, irmãos e outros parentes de dona Domitila, pelos filhos que ela tivera na constância do primeiro matrimônio e até pela filha Maria Isabel, concebida na segunda fase do seu concubinato e que ele jamais quis reconhecer como sua, porque a reputava fruto de infidelidade de sua ingrata manceba.

Quando, aos dois meses de prenhês, a marquesa revelou-se em tal estado, o imperador possuiu-se da mais violenta cólera e tentou matá-la, conseguindo acalmar-lhe o espantoso furor o segundo irmão dela, José de Castro, o qual, num simpático movimento de fraternal defesa, declarou ao zeloso amante indignado: "Senhor, se o filho ou filha que minha irmã tiver não for seu, eu lhe dou a minha cabeça".

D. Pedro acalmou-se no momento, mas ordenou que a marquesa e toda a família viessem logo para S. Paulo, onde nasceu Maria Isabel de Alcântara Brasileira (mais tarde, pelo casamento, condessa de Iguassu), a 28 de fevereiro de 1830, e tão filha era do imperador que até lhe herdou a tara funesta da epilepsia [13].

D. Pedro, apesar de suas suspeitas, não se esqueceu dela no testamento feito dois anos depois na cidade do Porto, a 21 de janeiro de 1832, no qual recomenda especialmente à sua esposa dona Amélia "aquela menina de que lhe falei e que nasceu na cidade de S. Paulo, no império do Brasil, no dia 28 de fevereiro de 1830... para receber educação igual à que se está dando à minha sobredita filha, a duquesa de Goiás, e que depois de educada... a chame para o pé de si" [14].

Na carta citada, de 27 de dezembro de 1825, que reproduzimos integralmente abaixo, porque não consta das incompletas coleções até hoje publicadas e é por isso pouco conhecida [15], observa, quadruplamente admirado, o seu imperial autor: "Quando é para notar uma tal combinação de acontecimentos políticos com os nossos domésticos, e tão particulares!!! Aqui há o quer que seja de misterioso que eu ainda por ora não diviso; mas que indica que a Providência vela sobre nós (e se não há pecado) até como aprova a nossa tão cordial amizade, com tão célebres combinações".

Na constância de um amor que nunca esmoreceu em seu afeto, mas, ao contrário, sempre se revigorou nos choques, nas lutas e nos obstáculos, não se esquece ele, como se vê, de congraçar, na mesma grata recordação, esses dois culminantes episódios de sua visita à Província de S. Paulo - ao mesmo tempo que libertava a Pátria, escravizava o coração. E ambas as coisas feitas com tão igual entusiasmo e tanto amor, que as reuniu mais tarde na mesma carinhosa comemoração epistolar.

Todavia, identificando os acontecimentos de sua vida privada com os de sua vida pública, longe estava ele de prever que, por um desses misteriosos caprichos da sorte, aos quais aludiu na carta, o mesmo histórico cenário que fora o berço de sua glória política, serviria também de início fatal ao drama que o tinha de levar, em rápida carreira, à impopularidade e à queda próxima...

Dona Domitila de Castro Canto e Mello (depois viscondessa e marquesa de Santos)

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A Independência

Nas imediações do lugar denominado Moinhos [16], foi ao seu encontro o alferes Francisco de Castro, que voltava de S. Paulo e deu-lhe a importante notícia de que chegara do Rio, com urgentes papéis de Estado para ele, o major António Ramos Cordeiro. Diante dessa comunicação, resolveu apressar a sua marcha, adiantando-se a alguns poucos membros da comitiva que, nesse momento, se achavam novamente a seu lado.

O emissário fluminense, em cuja companhia viera o correio oficial Paulo Bregaro [17], funcionário do Supremo Tribunal Militar, ao que informa PAULO DO VALLE [18], e portador dos despachos para o príncipe, encontrara-se em caminho com a Guarda de Honra, pela qual soube que Sua Alteza tinha ficado atrás, a alguma distância dela.

Galoparam os mensageiros, até que, chegando ao alto da colina, próxima do ribeirão Ipiranga, pouco mais ou menos a três quartos de légua desta Capital, se lhes deparou d. Pedro que vinha apressadamente em direção contrária. Recebendo a correspondência das mãos de Bregaro, passou-a ao padre Belchior, a quem mandou que a lesse em voz alta, o que ele imediatamente fez.

Eram cartas da princesa Leopoldina e de José Bonifácio, comunicando-lhe as últimas notícias de Lisboa até 3 de julho, trazidas pelo navio Tres Corações, que chegara ao Rio, a 28 de agosto [19].

Por essas notícias, via-se, através das recentes discussões das Cortes, que se preparava o golpe final contra a autonomia brasileira pela anulação de todos os atos da Regência e chamada imediata do príncipe a Lisboa, dentro de um prazo fatal prefixado em lei. Na correspondência recebida, como prova exuberantemente VARNHAGEN, não se encontrava resolução alguma oficial do Governo Português sobre os negócios do Brasil e a pessoa de d. Pedro, mas tão somente meras notícias, aliás fidedignas, do que por lá se tramava contra nossos primordiais interesses.

As cartas régias, confirmativas da veracidade daquelas informações, só chegaram ao Brasil muito depois, porquanto saíram da Europa em princípios do mês de agosto [20]. Os informes que a princesa e o primeiro-ministro transmitiam, naquele momento, e com a maior urgência, ao regente, contavam que as Cortes, além de lhe ordenarem que se recolhesse prontamente a Portugal, iam também decretar a prisão e processo de José Bonifácio e a anulação de todos os atos ultimamente praticados pelo Governo do Rio.

A princesa recomendava-lhe - segundo o testemunho do padre Belchior [21], que ouvisse os conselhos de seu primeiro-ministro; e José Bonifácio mostrava-lhe, diante dos fatos, que só havia dois caminhos a seguir: ou voltar para Lisboa, tornando-se, como seu pai, prisioneiro das Cortes; ou permanecer no Brasil, e proclamar sua independência, ficando como nosso rei ou imperador [22].

Certamente José Bonifácio lhe insinuava, na carta, que era preciso tomar uma resolução definitiva e decisiva, antes que os projetos em andamento nas Cortes se convertessem em Cartas de Leis. Quando elas aqui chegassem, já encontrariam emancipado o Brasil; e, portanto, sem objetivo nem valimento algum as matérias e as ordens que encerrassem.

VARNHAGEN [23], para anular ou pelo menos apoucar a comparticipação do primeiro-ministro no ato soleníssimo do Ipiranga, diz, com estudada e falsa bonomia, mas de fato visando desfechar mais um golpe contra ele: "Provavelmente José Bonifácio escreveria alguma carta, insistindo acerca da necessidade de romper o véu e proclamar a independência".

Esqueceu-se de que duas páginas antes [24] asseverava que os papéis recebidos pelo príncipe lhe eram transmitidos do Rio, "pela princesa sua esposa e por José Bonifácio". Ora, como é que se transmitem papéis a um superior sem acompanhá-los, conforme a natureza deles, de um ofício ou carta: Tratando-se de notícias não oficiais recebidas da Europa, a transmissão delas far-se-ia naturalmente por intermédio de uma simples carta.

Ao ouvir a leitura dos importantes papéis, tomou-se de grande indignação o jovem príncipe, e, tremendo de raiva, arrancou-os violentamente das mãos do padre Belchior, amarrotou-os furiosamente e pisou-os debaixo dos pés, deixando-os abandonados sobre a relva, de onde os levantou aquele sacerdote, guardando-os cuidadosamente.

Virando-se para ele, perguntou-lhe: -"E agora, padre Belchior", ao que o padre lhe retrucou prontamente, fazendo-lhe ver que não havia outro caminho a seguir senão a separação. Recomeçou a marcha em direção a S. Paulo. Cercavam o príncipe o major Cordeiro, Paulo Bregaro, padre Belchior, João Carlota, o ajudante-de-ordens e mais alguns.

De repente, d. Pedro faz estacar o animal e, virando-se de novo para o vigário de Pitangui, queixa-se-lhe amargamente de que as Cortes chamem-lhe rapazinho e brasileiro, com o mais insolente desapreço. "Pois verão agora - exclama com energia - quanto vale o rapazinho! De hoje em diante estão quebradas as nossas relações: nada mais quero do Governo Português e proclamo o Brasil para sempre separado de Portugal!"

Os companheiros, comovidos e entusiasmados, bradaram logo: "Viva a Liberdade! Viva o Brasil separado! Viva d. Pedro!" E ordenou a seu ajudante que partisse a comunicar sua intrépida resolução à Guarda de Honra, estacionada mais para diante, o que foi cumprido sem demora [25]. Francisco de Castro partiu a galope para o local onde a Guarda esperava o príncipe - uma pobre vendola à margem da estrada, propriedade do alferes Joaquim António Mariano [26].

Como soubera d. Pedro das afrontosas expressões usadas contra ele por alguns exaltados constituintes portugueses? À primeira vista, parece que isso lhe fora revelado pela correspondência que acabava de receber. Segundo VARNHAGEN [27], entretanto, o príncipe já tivera conhecimento delas na própria Corte, poucos dias antes de partir para S. Paulo, por notícias trazidas pelo navio Duarte Pacheco, e que alcançavam as sessões legislativas de fins de maio e parte de junho.

O discurso de Borges Carneiro, petulante e escarnecedor, produzira-lhe tamanha impressão que ele, em carta de 22 de setembro, escrita a seu pai, ainda seriamente molestado com as frases chocarreiras daquele parlamentar, dizia-lhe que Portugal havia de conhecer ainda o Rapazinho e até que ponto chegava sua capacidade, "apesar de não ter viajado pelas Cortes estrangeiras".

As notícias, portanto, que ora vinham ao seu conhecimento, encontravam o seu ânimo assaz preparado para a resolução capital que de seguida tomou e que não foi um ato inesperado e imprevisto como ainda muita gente supõe, inclusive historiadores dignos de crédito.

O gesto de d. Pedro era a resultante do conjunto das combinações cariocas entre os chefes nacionalistas e o gabinete ministerial, sob a chefia de José Bonifácio, o que veremos mais especificamente um pouco adiante.

Por ordem do comandante Marcondes, o guarda Miguel de Godoy postara-se de atalaia em uma certa elevação da estrada para dar sinal da aproximação do príncipe, a fim de que cada qual montasse de novo, a tempo de pôr-se a escolta em forma e poder acompanhá-lo até a Capital. Dado pela sentinela o sinal esperado, formou a Guarda rapidamente, mas ainda mais rápido vinha d. Pedro em direção a ela, a ponto de a alcançar antes mesmo que alguns soldados tivessem tido tempo de subir para as selas.

Diante da Guarda, que, com seus capacetes dourados faiscando ao sol, e as respectivas plumas escarlates agitando-se aos ventos da colina, formava um hemiciclo em torno da imponente figura de d. Pedro, cuja profunda emoção era patente, estacou ele a relinchante besta que o estranho galope fatigara, desembainhou a espada que, à viva luz daquele ocaso histórico, centelhou em chispas e revérberos fulgurantes; e, em altas vozes que os ecos espantados repetiram séculos afora, disse-lhes: "Amigos, estão quebrados os laços que nos ligavam ao Governo Português".

E, ato contínuo, arrancando do chapéu o tope azul e branco [28], símbolo do Reino Europeu, atirou-o ao chão, exclamando imperiosamente: "Laços fora, soldados! Viva a independência, a liberdade e a separação do Brasil". Todos o acompanharam: os militares, puxando da espada e jogando ao chão os laços portugueses; e os membros civis da comitiva, tirando o chapéu, e correspondendo, com os outros, aos vivas soltados por d. Pedro.

"Pelo meu sangue, pela minha honra, pelo meu Deus, juro fazer a liberdade do Brasil" - acrescentou, traindo no tremor das frases a intensa comoção que lhe tumultuava n'alma. Em seguida, pondo-se de pé nos estribos, após haver embainhado a espada, acrescentou, finalizando: "Brasileiros! A nossa divisa, de hoje em diante, será: - Independência ou Morte". E, firmando-se nos arreios, esporeou a cavalgadura, em direção à Capital, acompanhado do séqüito que delirava de comoção patriótica e não cessava de admirar a garbosa figura daquele príncipe que acabava de repudiar um trono ilustre, cambiando-o pela glória de fundador de um novo império e de libertador de um grande povo.

SETE DE SETEMBRO DE 1822

O grito do Ipiranga (quadro de Pedro Américo, existente no Museu do Ipiranga)

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Traços físicos de D. Pedro

Trajava o herói pequeno uniforme: farda azul, botas de polimento, altas e justas, e chapéu armado [29], e contava então quase 24 anos - idade que ia completar daí a um mês e cinco dias, a 12 de outubro. Alto, espadaúdo, vigoroso e desempenado; torso forte, peito amplo; olhos pretos, com reflexos castanhos; cabelos castanhos, quase negros, ondulosos e sedeúdos; mosca; bigodes curtos, mas fartos, e retorcidos nas pontas com agressiva elegância; nariz saliente, mas de linhas corretas; rosto cheio e corado na mocidade da vida; pois que, mais tarde, se lhe tornara pálido, macilento e cavo; lábios grossos, dos quais o inferior, pendente como o dos Bourbons, cujo sangue lhe corria nas veias, era indicativo das tendências carnais de que toda a raça deu constantes provas - eis os traços fisionômicos do jovem audacioso e singular que, dentro de um mês, seria oficialmente guindado a imperador da Pátria Brasileira.

A fronte larga e elevada e a região occipital proeminente indicavam nele inteligência e generosidade, qualidades que abortaram, entretanto, na sua vida pública, por falta de luzes e de educação sistemática. A sua inteligência destituída de cultivo levara-o a dedicar-se à lira e à solfa, nas quais soçobrou inteiramente. Dos seus versos já falamos como produtos indignos da cogitação mesmo dos simples bisbilhoteiros ávidos de curiosidade; e da sua música, melhor que os versos, graças à forçada colaboração dos vários artistas palacianos, falaremos um pouco mais para diante.

Em política só teve realmente um ato de verdadeiro descortino - foi ter chamado José Bonifácio para seu primeiro-ministro, sem sugestões partidas de quem quer que fosse, por ter compreendido que era ele o homem talhado para o momento, pela sua fama, pelos seus talentos e pelo seu preparo.

Quanto à generosidade, que de sua conformação craniana se depreende, malbaratou-a em puros gestos de inexcedível devotamento pessoal por indivíduos imerecedores de sua afetuosa consideração e que, por seus conselhos insensatos ou perniciosos, o conduziram à absoluta incompatibilidade com a Nação que ele ajudara a fundar e cujo povo o estimava, apesar de seus erros, de seus desvarios e dos escândalos de sua vida privada, doméstica e social.

Enquanto o seu velho ministro manteve certa preponderância sobre os impulsos de seu coração desordenado, fez ele quanto pôde para engrandecer o país que lhe ofertara o diadema imperial; desde, porém, que outros conselheiros começaram a ser ouvidos com maior atenção que o velho Andrada, mudou de rumo desastradamente, certo de que a obra da independência era fruto exclusivo de sua inteligência, de sua força, de sua coragem e não a conseqüência de enérgicas aspirações populares a que José Bonifácio imprimira uma direção prudente, capaz e decisiva.

***

[...]


NOTAS:

[1] Livro de Vereanças da Câmara de Santos, 1822, folha 10.

[2] Leis do Brasil (1820-1821), pág. 21.

[3] O marechal Cândido Xavier de Almeida e Sousa.

[4] Livro de Vereanças de Santos (1822), folha 14.

[5] JOÃO ROMEIRO - Obr. cit., pág. 161 (Informação verbal prestada ao autor pelo coronel Manuel Marcondes, barão de Pindamonhangaba).

[6] Em ASSIS CINTRA - O Grito da Independência, págs. 211 a 213.

[7] EUGÉNIO EGAS - Opúsc. cit., pág. 14.

[8] Em ASSIS CINTRA - Obr. cit., págs. 221 e 223.

[9] Livro de Vereanças de Santos (1822), folha 10.

[10] ALBERTO RANGEL - Obr. cit., pág. 82.

[11] Obr. cit., pág. 82, nota nº 2.

[12] Chrónica Geral do Brasil (Introdução, págs. XIII a XIV).

[13] História da vida da filha bastarda do Senhor Dom Pedro (Autobiografia de dona MARIA ISABEL ALCÂNTARA BRASILEIRA, condessa de Iguassu. Manuscrito em poder do capitão José Leite da Costa Sobrinho, publicado por ALBERTO RANGEL (Obr. cit., págs. 373 a 378).

[14] Em ALBERTO RANGEL - Obr. cit., págs. 425 a 426.

[15] Eis na íntegra a interessante carta, respeitando a ortografia, não menos interessante: "Meu amor, e meu tudo... No dia em que fazia tres annos que eu começei a ter amizade com mece assigno o tratado do nosso reconhecimento como Imperio: por Portugal. Hoje que mece faz os seus vinte, e sette recebo a agradavel noticia que no Tejo tremulara em todas as embarcações nelle surtas o Pavilhão Imperial effeito da ractificação do Tratado por El Rei meu Augusto Pay. Quanto he para notar huma tal combinação de acontecimentos politicos com os nossos domesticos, e tão particulares!!!! Aqui ha o quer que seja de misteriozo que eu ainda por hora não devizo; mas que endica que a providencia vella sobre nós (e se não ha pecado) athe como aprova a nossa tão cordial amizade; como tão celebres conbinações. Como Estou certo que mece toma parte, e bem apeito nas felicidades ou infelicidades da nossa cara Patria por isso tive a lembrança de lhe escreer. Este seu fiel constante disvellado agradecido e verdadeiro amigo e muito do fundo d'alma - O Imperador. P. S. Não responda para se não encomodar, e perdoe a carta ser tão grande, e maior que fousse ainda não dizia o que querem dizer taes combinações".

[16] Meninos - segundo PAULO DO VALLE (Relato transcrito por ASSIS CINTRA em O Grito da Independência, pág. 221).

[17] Relato de CANTO E MELLO (Em MELLO MORAES - Obr., vol. e pág. cits.); Nota 6 de RIO BRANCO a VARNHAGEN (Obr. cit., pág. 181).

[18] No Grito da Independência, de ASSIS CINTRA, pág. 227.

[19] VARNHAGEN - Obr. cit., pág. 181.

[20] Idem, ibidem, pág. 182.

[21] Relato transcrito por ASSIS CINTRA (Obr. cit., pág. 211).

[22] Idem, ibidem, pág. citada.

[23] Obr. cit., pág. 183.

[24] Idem, pág. 181.

[25] PADRE BELCHIOR - Narrativa cit. (Em ASSIS CINTRA - Obr. cit., pág. 212).

[26] E. EGAS - Opúsc. cit., pág. 14.

[27] Obr. cit., pág. 178.

[28] Equivocadamente o sr. OLIVEIRA LIMA (obr. cit., págs. 321 a 322) diz que o príncipe "arrancou o tope de fita azul-claro e encarnado (as cores constitucionais portuguesas antes do azul e branco)". O laço azul e branco foi instituído, no regime constitucional, pela Carta de Lei, decretada pelas Cortes a 22 de agosto de 1821 e promulgada pelo rei no dia seguinte. A 7 de setembro de 1822 já eram, portanto, estas as cores do laço português.

[29] EUGÉNIO EGAS - Opúsc. cit., pág. 14.

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