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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - VISITANTES
Castro Alves, em 1869

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A passagem por Santos do poeta Castro Alves, a caminho do Rio de Janeiro, em maio de 1869, foi lembrada cerca de 130 anos depois em artigo pelo jornalista e historiador Paulo Matos (falecido em julho de 2010). O baiano Castro Alves, sempre lembrado pelo único livro publicado em vida, Espumas Flutuantes, teve outra obra, Navio Negreiro (publicada nove anos após sua morte), ambientada no alto da Serra do Cubatão. E há em Santos uma publicação de 1877 em que apareceu pela primeira vez um poema de introdução de Os Escravos, intitulado Vozes d'África.

Este o texto de Paulo Matos, de 1997 (ortografia atualizada nesta transcrição):


Declamando versos em homenagem a Eugênia, o jovem poeta conquistou a atriz, no Recife
Imagem: Trópico Enciclopédia Ilustrada em Cores, Livr. Martins Editora, S.Paulo/SP, cerca de 1965

Castro Alves - A convulsão libertária

Paulo Matos (*)

Há 130 anos, passava por Santos, a caminho do Rio de Janeiro, o maior poeta brasileiro, Antonio Frederico de Castro Alves, que fez de sua poesia a voz das causas sociais. Reingressara no curso de Direito em São Paulo. Era o fim do ano de 1868 e, com apenas 21 anos, o poeta libertário que transformara o romantismo já tinha sua saúde comprometida. Precursor da luta pela abolição da escravatura e pela república dos livres, não viveu para vê-las.

A vida levou seu cantor com apenas 24 anos, já o poeta mais popular do Brasil. Para muitos, não foi um simples homem este nosso castro Alves, o libertário poeta que escreveu e iluminou uma época, em que viveu efêmero: foi uma convulsão da natureza! Foi ele capaz - e audaz - de enfrentar a então principal questão social, que se mantinha vergonhosa - a escravidão. Hoje não teria lugar nos meios de informação. E mais difícil seria a evolução que ele promoveu e significou.

Quebre-se o cetro do papa

faça-se dele uma cruz

a púrpura sirva ao povo

para cobrir ombros nus

(Castro Alves)

Em tempos em que a sociedade se mobiliza, para extirpar a chaga do trabalho infantil e da exploração sexual da adolescência prostituída, entre as mazelas sociais deixadas por quatro séculos de escravidão, o sesquicentenário do nascimento do poeta libertário Castro Alves - um século e meio neste 14 de março! - assume significado especial. Afinal, foi ele um militante engajado na luta contra a nossa então principal questão social, a exploração escravagista.

Na época de seu nascimento nos idos de 1847, ainda vigia a crueldade escravagista e o tráfico, embora proibido pela Inglaterra em todos os mares pela Bill Aberdeen, em 1831, prosseguia. Na vanguarda da mobilização nacional para que se liquidasse com a violência imposta aos negros, vindos em sua maioria de Guiné, Congo, Moçambique e Angola, surgiam vozes como  a do santista José Bonifácio, já em 1823 propondo, na Constituinte, a emancipação progressiva dos escravos.

No ambiente em que explodiam as revoltas e alforrias, além dos brados dos setores progressistas em conflito com os senhores de engenho e fazendeiros, vinha ao mundo aquele que iria fazer da luta pela Abolição sua razão de vida, em militância heroica. Uma vida precocemente interrompida, mas intensamente vivida no sentido de dedicação à humanidade. Na palavra de Agripino Griecco, não foi um simples homem este nosso Castro Alves: foi uma convulsão da natureza!

Nasce o sol - Chegava mais tarde o sol daquele domingo, 14 dce março, em que, às dez da manhã, dona Clélia Brasília da SIlva Castro projetava para a Bahia, o Brasil e o universo a preciosa vertente de libertação de um povo: Antonio Frederico de Castro Alves chegava na fazenda Cabaceiras, banhada pelo Rio Paraguaçu, a sete léguas de Curralinho - lugar que hoje leva o nome do poeta. O pai Antonio José Alves lutara na Sabinada, em 1837, ao lado do governo; do outro lado, o avô materno era herói das lutas pela Independência na Bahia.

O irmão José Antonio, primogênito - que se suicidaria em 1864 - chamava o menino que seria poeta de Cecéu, o irmão que veio do céu. Castro Alves foi o segundo a nascer, João o terceiro. Guilherme, Elisa, Adelaide e Amélia viriam sucessivamente, compor a família daquele que cresceria alegre e brincalhão entre a flora, a mata e os rios da terra natal. Ainda viria o meio-irmão Cassiano, do novo casamento de seu pai.

Educado em Salvador, aluno do Colégio Sebrão, aos 23 anos já recitava na escola seus poemas. Em 1858 cursou o Colégio Baiano, de Abílio Cesar Borges, barão de Macaúbas - o Aristarco de Raul Pompéia em O Ateneu. E tinha apenas 14 anos quando escreveu e proferiu:

"Se o índio, o negro africano

e mesmo o perito hispano

tem sofrido escravidão:

Ah! Não pode ser escravo

quem nasceu em solo bravo

de brasília região!"

Devorava Virgílio, seu predileto Victor Hugo, Camões e Lamartine, entre os românticos da época. Mais tarde, Dante, Musset, Byron, Espronceda, Fagundes Varela e Alvares de Azevedo, cada qual em uma de suas fases da vida vibrante e atribulada. Traduzira Victor Hugo na infância, logo que aprendeu Francês. O que, segundo Jorge Amado, lhe permitiu avançar sobre os demais jovens do seu tempo e libertar-se de Byron, absorvendo o sentido literário e heroico da poesia. Precoce e genial na Literatura, não assimilava a Matemática, tendo sofrido duas reprovações em Geometria, na tentativa de entrar na Faculdade de Direito no Recife.

Castro Alves fora para a capital pernambucana em 1862, mas só lograria entrar em Direito em 1864. Quando já começava a manifestar-se a tuberculose, no convulsionado amante lírico e social apaixonado pelo teatro. E nele, por Eugênia Câmara, que marcaria sua vida.

Paixão madura, por infante - "Amar-te é melhor que ser Deus".

Castro Alves vira pela primeira vez Eugênia Infante da Câmara, uma atriz portuguesa, no Teatro Santa Isabel, em 1863, quando ela interpretava Dalila, de Otávio Feuillet. Ao declamar-lhe versos, o poeta fez o público delirar. No mesmo teatro, em 1867, o poeta procedeu à primeira leitura de Gonzaga para críticos e professores da faculdade, sob aplausos unânimes.

Os estudantes costumavam prestigiar as atrizes de sua predileção e foi assim que surgiu a polêmica entre o baiano Castro Alves e o sergipano Tobias Barreto: o primeiro endeusava Eugênia Câmara e o segundo Adelaide Amaral. A princípio, foram duelos de versos, que se tornaram artigos de jornais, em que Tobias atacava Castro Alves, que não lhe dava importância. Diziam era ciúme do popular e jovem poeta abolicionista, que conciliara, como Victor Hugo, os ideais filosóficos e sociais em prol da humanidade.

O poeta e sua musa se uniram em 1866, quando ela tinha 26 anos e ele 19. Como ele, que abandonara a faculdade para ir com a atriz para o Rio de Janeiro, ela abandona a companhia teatral e vai com ele para a Bahia, em 1º de janeiro de 1867. Recepcionados entusiasticamente, Castro Alves recita O Dois de Julho, o poema da luta baiana pela independência brasileira, que na Bahia foi intensa e armada. Em 3 de agosto, no teatro São João, Eugênia declamava O livro e a América, prenunciando o grandioso futuro do continente americano...

"talhado para as grandezas

pra crescer, criar, subir

o novo mundo nos músculos

sente a seiva do porvir"

Em fevereiro de 1868, o poeta vai para o Rio de Janeiro, com sua amada e uma carta de apresentação do grande parlamentar e tribuno Fernandes da Cunha para José de Alencar, então no apogeu. O romancista cearense e Machado de Assis louvaram-lhe o texto de Gonzaga, o mesmo em que Eugênia arrebatara o público ao representar a personagem Maria, dizendo, no território fértil da Inconfidência poético-mineira:

"Sim! Sim" O mundo inteiro saberá teu nome!

E quando os sertanejos embalarem seus filhos

À sombra da floresta da América

Cantarão os mártires de Minas

Lembrando o poeta e o tribuno, o revolucionário e o libertador!"

Recife, Rio, São Paulo - A antiga Corte era o palco maior de Castro Alves e sua peça Gonzaga foi lida na redação do Diário do Rio de Janeiro, para os ouvidos atentos de Francisco Otaviano, Salvador de Mendonça, Ferreira de Menezes, Quintino Bocaiúva, Joaquim Serra e outros críticos e escritores, sob unânime aprovação. Depois, ele vai para São Paulo. Chega em março na então pequena cidade provinciana, em que apenas a mocidade acadêmica e as festas religiosas davam alguma animação.

No Largo de São Francisco, no espaço da famosa faculdade de Direito em que reingressava, desta feita na terra da garoa, Castro Alves tornou-se um ídolo dos colegas e até dos mestres. Principalmente de José Bonifácio, o Moço, a quem se uniu por profunda admiração. Em São Paulo é que escreveria Vozes D'África e Navio Negreiro...

"Existe um povo que a bandeira empresta

para cobrir tanta infâmia e covardia

e deixa-a transformar nessa festa

em manto impuro de bacante fria

Meu Deus! Meu Deus! Mas que bandeira é esta

Que impudente na gávea tripudia?

Silencio, musa, chora e chora tanto

que o pavilhão se lave no seu pranto..."

O começo do fim - Em 25 de outubro de 1868, estreia com sucesso Gonzaga ou a revolução de Minas. Já era ele o "poeta republicano do Gonzaga". na posição política que assumira muito antes dos que passaram para a história. Culpava a monarquia por tolerar a escravidão, previa sua queda com a Abolição e sonhava com o mundo transformado em uma grande nação única.

Sofria, porém, com o tormento do amor de Eugênia Câmara: ele preso às poesias, as ocupações intelectuais e os estudos no quarto de pensão; ela aos espetáculos teatrais. Já moravam separados e Eugênia parecia esquecê-lo, o que dizia em versos. Raramente Castro Alves saía de seu quarto na pensão da Rua Riachuelo, faltava frequentemente às aulas. E quando ia, restringia-se a compor poemas, como Laço de Fita, Boa Noite, Asveros e o Gênio.

Colega de Rodrigues Alves, Afonso Pena (ambos futuros presidentes da República), Joaquim Nabuco, Bias Fortes, Salvador de Mendonça, Brasílio Machado e outros ilustres, com o rompimento de Eugênia sobreveio-lhe a prostração e apatia, não mais lia ou escrevia. Fumava incessantemente e, às vezes, saía para caçar, sempre buscando a solidão.

Foi em uma dessas ocasiões, em uma chácara entre o Brás e a Moóca, que ao embrenhar-se pela mata com uma espingarda com que raramente atirava -a penas uma busca para o isolamento -, ao pular um fosso,esta lhe dispara no pé esquerdo. Arrastou-se até a casa mais próxima, no início do fim prematuro e comum à morbidez da geração de românticos contaminada por Byron. Mas ele, que a superara?

A estética da libertação - Seus males, agravados com os padecimentos pulmonares e o abandono de sua musa Eugênia Câmara, aniquilaram o poeta. Que vira o óbvio, o ululante, o até então inenarrável, na construção libertária e revolucionária da poesia. Emocionando multidões em uma nova estética e uma nova linguagem poética da literatura brasileira. O autor de Espumas flutuantes consolidou o lirismo de fisionomia formal, estilística e temática de traços nitidamente brasileiros, renovando os conceitos de época.

O poeta mais popular do Brasil frutifica em uma época em que o romantismo transita para as novas tendências do realismo, caracterizada em sua opção pela poesia de inspiração social. Com a saúde agravada, vem para Santos e daqui segue para o Rio de Janeiro, em companhia de Rubino de Oliveira. Chega dia 21 de maio de 1869 e seu estado é lamentável. A iminente amputação, o agravamento da doença pulmonar. Morreria de gangrena ou de tuberculose? Tentaram evitar, mas a mutilação do pé ferido tornou-se inevitável, ia-se o terço inferior da tíbia. Com alta, antes de retornar à terra natal foi ver Eugênia Câmara, que se exibia no Teatro Fênix Dramática. Chega cedo, para não o verem em muletas. E falaram-se pela última vez.

De volta a Curralinho, ainda batalhou para acabar com o vexatório mercado de escravos ali existente. Distraindo-se, transporta-se para o desenho, deixando vários encantadores pela delicadeza do traço. A hora fatal se aproximava, precocemente aos 24 anos, em que fora do Recife para São Paulo, Bahia e Rio de Janeiro, em que arrebatara multidões propagando a Abolição e a República.

Era sexta-feira, três e meia da tarde, 6 de julho de 1871. Na casa de número 20 da Rua do Sodré, o poeta nos deixava. Três anos depois, iria a sua Eugênia Câmara. Ele não chegou a ver a promulgação da Lei do Ventre Livre, aprovada em setembro do ano em que se foi, nem as leis que se seguiram até a Redentora - no espetáculo de liberdade que produziu e interpretou no palco que amou e viveu intensamente.

As portas da percepção. E do futuro - Depois de sua partida, publicaram-se suas obras Gonzaga e A Cachoeira de Paulo Afonso (1876), Vozes D'África e O Navio Negreiro (1880), Os Escravos (1883). Em 1921, Afrânio Peixoto organizou as Obras completas de Castro Alves, em dois tomos.

Há um século e meio, nascia um ser poeta que atravessou efêmero sua etapa de vida na terra, consagrando uma aliança com a emoção para a superação da nossa então principal questão social, nosso atraso fundamental. Aquele que nossos meninos e meninas pobres necessitam para superar as regras da exploração, da opressão e da violência, abrindo as portas da percepção e do futuro.

"A praça é do povo como o céu é do condor, é antro onde a liberdade cria água ao seu calor".

Para Jorge Amado, a maior das noivas de Castro Alves foi a liberdade.

O poeta e o amor - Foi intensa e atribulada a vida amorosa do Poeta dos Escravos, que amou mulheres de todas as classes sociais. Idalina foi a musa de sua adolescência, dos primeiros tempos do Recife, quando começou a escrever Os escravos; Maria Cândida Garcez era a "estrela transformada em virgem"; Cândida de Campos o "nenúfar sobre o azul do lago"; Eulália Filgueiras, a "visão do céu"; Inês, a "rosa da Espanha"; Leonídia Fraga, pela qual "rosas mudam-se os martírios". E ainda Sinhá Lopes dos Anjos, envolta na garoa paulistana; e as três irmãs judias, fronteiriças à sua casa na Rua do Sodré, em 1866: Simy, Esther e Mary. Para elas escreveu Hebréia, dedicando o poema "à mais bela".

Nos últimos meses de vida, apaixonou-se por uma bela cantora lírica italiana, Agnese. Mas nada o dominou tanto como Eugênia Câmara, que levou seu coração a voos altos. Em todas elas, a imagem da mucama Leopoldina, a sua mãe de criação, que o criou para o amor. A todas amou, embora nem a todas tivesse possuído.

Orador de voz firme e forte, de imagem expressiva, diria Lucio de Mendonça que Castro Alves era "grande e belo como um deus de Homero". Ruy Barbosa destacava "o encanto irresistível" do poeta, "desses que transfiguram um orador, jato contínuo dessa lava sagrada que fazia de seus filhos uma criatura incendiada em sentimentos sublimes". Se a Águia de Haia dizia isso, o que não comentaria reservadas as recatadas moças daquele tempo sobre o poeta de cabelos ondulados e espessos, de fartos bigodes. Que não foi como os poetas das primeiras gerações românticas, presos aos conflitos íntimos e ao egocentrismo. Castro Alves universalizou...

(*) Paulo Matos é jornalista e historiador pós-graduado.

Imagem: primeira das oito páginas originais datilografadas do texto, no acervo do autor

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