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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - P. MARCOS
Plínio Marcos (6)

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Escritor "maldito", teatrólogo, Plínio Marcos nasceu em Santos em 29/9/1935 e morreu na capital paulista em 19/11/1999, um ano depois de receber o título de Cidadão Emérito da Câmara Municipal de Santos. Amigo de Patrícia Galvão, com quem trabalhou junto na peça Barrela, Plínio tem um marco de homenagem no Centro de Cultura de Santos, que aliás recebeu o nome daquela escritora e jornalista. Dez anos após seu falecimento, o semanário santista Jornal da Orla republicou em seu site na Internet as crônicas de Plínio Marcos que haviam saído na edição impressa desse jornal na década de 1990:

Janela Santista - Plínio Marcos
A arte de fazer rir

Muita gente vem me dizer que tem uma história fantástica. Mas como não tem jeito pra contar, querem que eu escreva pra eles... Contar história é uma arte. O contador de história precisa estar sempre atento, ligado. O contador de história precisa estar sempre com o Espírito Santo presente, apto pra criar de improviso.

Muitos artistas, muita gente famosa de teatro, não sabe fazer isso. Principalmente agora, na era da televisão; os atores dizem o que decoram, mas não sabem escutar. E escutar é essencial para se conseguir ritmo. Falo de ritmo interior. Ritmo é fundamental. Sem isso, um sujeito não pode contar sequer uma anedota.

Se você aí, um belo dia, estiver conversando com uma turma de amigos em torno de uma mesa de bar e sua cadeira quebrar, pode crer: seus amigos vão explodir de rir quando você estatelar no chão. Não quer dizer que não gostem de você, quer dizer apenas que a queda provocou um desequilíbrio no sistema nervoso deles. Depois que voltarem a se equilibrar, todos correrão pra lhe acudir. Qualquer palhaço de circo sabe disso, do que trabalha na mais pobre espelunca mambembe ao astro do cinema.

Grandes artistas do humor, como Charlie Chaplin (com seu Carlitos), Jacques Tati, Popov, Jerry Lewis, os criadores da dupla o Gordo e o Magro, Ronald Golias, Didi, Dedé, Piolim, Chincharrão, todos eles têm o talento de escutar e de trabalhar com o ritmo interior. Atrizes geniais como Bibi Ferreira, Cacilda Becker, Tônia Carrero, Vera Fischer e Walderez de Barros usam o mesmo recurso, para explorar o riso ou o pranto.

Porém (sempre tem um porém), entre os artistas daqui ou de fora, para mim o maior de todos é, sem dúvida, o mestre Procópio Ferreira.

Uma vez, numa estréia, a casa estava lotada a três de alto, com gente se agarrando pelos picos para não espirrar pelo ladrão. O Procópio fazia o pai da mocinha que o galã desonrou. A peça corria num ritmo frenético, até que chegou o momento culminante, uma cena exaustivamente ensaiada. O galã entrava e o Procópio acusava: "Foste tu! Desonraste minha filha! Hás de morrer!". Ele abria uma gaveta, pegava o revólver e matava o vilão.

Nos ensaios, tudo correu bem. Mas no espetáculo, o patuá entortou. O galã entrou em cena e o Procópio foi em cima:

—Foste tu! Desonraste minha filha! Hás de morrer!

O Procópio abriu a gaveta e não tinha nenhum revólver. Olhou em volta; não havia pau, nem faca, nem nada.

Naquele tempo, o teatro ainda tinha ponto. O Procópio olhou pro ponto:

— E agora? — perguntou o mestre.
— Mata ele — pontou o cara, achando que o ator tinha esquecido a cena.
— Com quê? — rosnou, nervoso, o ator em apuros.
— Mata ele! — insistiu o sujeito do ponto.

A essa altura, o Procópio estava bravo, diante de uma platéia atônita, à espera de um gesto dele. Com sua presença de espírito, avançou em direção ao galã e lhe deu um pé na bunda.

— Morre, desgraçado! - berrou.

— Morro, sim — o galã não deixou por menos, colocando uma mão na bunda e outra no coração. Depois, na melhor tradição circense, fez um aparte para o público - O sapato dele está envenenado.

É o único vilão que morreu de pé na bunda de que se tem notícia... Mas a história ilustra bem a necessidade de estar ligado, imbuído do Espírito Santo na hora de contar uma história, no palco, no boteco da esquina ou na calçada da rua. Mostra que o segredo de uma história que funciona não está no fato de ela ser comovente, engraçada ou original, mas no próprio contador.

Às vezes, um ator está em cartaz com sucesso, há meses fazendo o público arrebentar de rir com determinada piada. De repente, um dia, ele entra em cena com seu espetáculo de sucesso garantido, diz sua piada que sempre funciona e nada. Cocacha, cachaça, parangolé, bico-de-pato, rosca espanada, ou vai-ou-racha ou quebra-a-tampa-da-caixa. Ninguém ri. Os simplistas diriam que a anedota apodreceu. Mas bastaria ensaiar de novo, recuperar o ritmo.

Quando um ator não liga para uma piada perdida, ele não está apenas perdendo a chance de provocar o riso, ele está perdendo a vocação. E quando um contador de história, profissional ou informal (desses que viram atração numa roda de amigos), não liga por não fazer seu interlocutor rir (ou chorar), está perdendo o rumo, está se distanciando do seu próximo, está se afastando da alma brasileira, está se perdendo a si próprio.

* Texto originalmente publicado na edição de 07/02/1999.

Janela Santista - Plínio Marcos
A Santos que tanto amo

Santos, bela ilha. Belíssima! Suas praias são maravilhosas! Porém (sempre tem um porém), não é a beleza natural dessa terra encantada que pesa mais na balança. O que faz de Santos uma cidade especial é a sua gente. Essa é a terra de tantos e tantos artistas de valor reconhecido no mundo inteiro. Tenho medo de citar seus expoentes e esquecer muitos que nasceram por aqui e outros tantos que se nutriram por aqui.

Como esquecer essas incríveis mulheres de teatro, como Cacilda Becker, Cleide Yáconis, Margarida Reis? Como esquecer Patrícia Galvão, um anjo anarquista que veio ao mundo pra nos inquietar? Acho que Santos é a cidade que gerou o maior número de atores e atrizes no Brasil: Ney Latorraca, Nuno Leal Maia, Jonas Melo, Tereza de Almeida, Nélia Silva, Greghi Filho, Serafim Gonzalez, Paulo Lara, Eliana Rocha, Jansen e uma turma enorme; tem mais, são tantos que o risco de esquecer nomes é grande. De qualquer forma, as artes cênicas devem muito a Santos.

Escritores importantes também há, como Geraldo Ferraz, com seu "Doramundo". Tem gente das letras em todas as áreas, dos jornais ao teatro, como Marcelinho Paiva, Sofredini, Jandira Martinez (também atriz de primeira), Pedro Bandeira, Miroel Silveira. São muitos!

E os nossos poetas? Entre gênios de imensa sensibilidade, Vicente de Carvalho e Zezinha Rezende fazem parte de uma galeria que a Baixada Santista inspirou.

Vale citar Martins Fontes:

Como é bom ser bom

Vale lembrar Roldão Mendes Rosa:

O passado na mão se desconjunta
Se queres dele mais que uma lembrança
O passado não mais se alcança
O que a morte separa a mão não junta

Fundamental um registro de Narciso de Andrade:

Se estendêssemos os braços e alongássemos os gestos
colheríamos estrelas

Nas artes plásticas a cidade também produziu talentos que sempre fizeram figura, como Nelson de Andrade, Mário Gruber, Aloísio dos Mosaicos, Beatriz Rotta Rossi.

Esta é uma cidade de lutadores. Muitos dos seus filhos foram martirizados peIas ditaduras, como Rubens Paiva, Batata, Mazinho Bio e outros tantos. Alguns foram cassados ou marginalizados da vida pública, como Nelson Fabiano, Marcelo Gato, Esmeraldo Tarquínio, Gastone Righi, Mário Covas. Outros, gente brava, de grande fibra, como Silvino, Dominguinhos e seu Carneiro, se destacaram entre os sindicalistas e lotaram um porão de navio-prisão.

E os nossos atletas? Nossos nadadores são verdadeiros homens-peixe. Basta lembrar Haroldo Lara, Zoaines, Roberto Neiva, Toniquinho de Souza, as irmãs Russo, Elza Moura, todos discípulos do Elni de Camargo. No futebol, então, a contribuição de Santos é incrível. O futebol de Santos é dos melhores do mundo. Pelé se fez aqui.

Futebol é um caso à parte. Estou na captura do Paulinho, do Jabaquara, do Norberto Cabeça, do Henrique da Marítima e do grande Chachá pra juntar histórias e ir contando aqui pelo Jornal da Orla; a idéia é, depois, reuni-las num belo livro sobre o futebol de várzea de Santos. Mas isso é só um parênteses.

O que pesa na balança é que Santos faz anos e há muito o que comemorar.

Janela Santista - Plínio Marcos
A trilha da saúde

1- Entre no coração do extraordinário e tudo se normaliza.

2- Para cada doença que há na terra, pelo menos uma erva que cura.

3- Se não houvesse professores de Medicina nesse mundo, como se aprenderia essa arte? Estudando no grande livro aberto da natureza, escrito por Deus.

4- Um dia vamos respirar estrume e não terra, que é nossa mãe.

5- O ser humano sem rumo, parece que não sabe mais onde é o caminho, fica doente, deprimido, triste, dependente da opinião alheia e sujeito às mumunhas da propaganda.

6- Aceitar a própria natureza ajuda a Deus, cura, livra da revolta e do ódio e mantém acesa a chama do auto-conhecimento.

7- O especialista só vê parte das coisas, não vê o Universo como um todo.

8- Tudo o que acontece no Universo acontece comigo.

9 – Quem cura é o médico
, ou uma pessoa, que não é. Nem o imperador, nem o Papa, nem escolas superiores podem fazer de alguém médico; podem conceder licença para matar. Mas não podem dar o poder da cura, não podem fazer de um homem médico verdadeiro se ele não tiver sido ordenado por Deus.

10- Só existe uma dor suportável, a que mantém acesa a chama da dor dos outros.

Janela Santista - Plínio Marcos
Afobado come cru ou queima a boca

Bem que o Pé de Bicho se encrespou. quando viu o Zuzu piar na parada com uma arma de calibre grosso. Foi logo estrilando:

— Onde tu vai com essa draga?

Sem perder o rebolado, o Zuzu sacou em cima:

— A gente não tem um trato? Eu só entro nessa coberto.

Essa resposta foi uma pá de cal no quásquás-quás-quás. Realmente. Os dois vagaus tinham um trato. por sinal dos mais cavernosos. Há muito tempo, campaneavam um palacete de bacana e as mumunhas dos moradores. Manjaram que, nos fins de semana, os donos do palacete se arrancavam, pra fora da cidade, deixando de guarda na casa um velho vigia, que mal podia com ele mesmo, e um cachorrão meio abobabado O que significava que era uma moleza afanar o palacete. E, por essas e outras, combinaram um assalto. Só que não falaram em armas. O Pé de Bicho não gostava de sujeira. Com ele era tudo na finura. Sem escarcéu, nem nada.

Entrar no palacete sem despertar atenção, ensacar os badulaques todos e sair de fininho, era a idéia do Pé de Bicho. Já o Zuzu, meio apavorado, achava que tinha que ir prevenido pro que desse e viesse. Na sua cuca fundida, sempre passava uma idéia de jerico: "E se a gente leva um flagrante?". Assombrado por isso, carregava a arma.

O Pé de Bicho se arrependeu de não ter avisado ao parceiro que era pra não levar revólver. Pra ele, que era escolado por mil e um pererecos, pra ele, que varejou desde pivete por todas as encolhas, a atitude do companheiro não tinha mistério. O fato de o Zuzu levar a draga e arrotar valentia não engrupi, era medo puro. E, percebendo isso, o Pé de Bicho escamava. Na verdade, o seu único medo era trambicar com parceiro medroso. A opinião do Pé de Bicho era que essa raça maldita sempre complica tudo.

Diante do menor perigo, se espantam e fazem besteira, sem ter precisão. Além do que, no caso de bater a cana, o apavorado disfarçado de machão é sempre o primeiro a abrir o bico e entregar o serviço. Por isso. ficou de pulga atrás da orelha, quando o Zuzu mostrou o revólver. Sentiu a situação encardir. Porém, não deu pra trás, nem engrossou. Deu a pala, não grudou, deixou andar. Se fechou em copas e meteu a fuça como tinham planejado.

Primeiro, passaram pela porta do palacete, levando um papo chibu pra desbaratinar o vigia. Assim como quem não quer nada, espiaram o casarão de esguelha e se certificaram que estava no jeito. Sem dar bandeira, jogaram pro jardim do palacete uma pelota de carne com vidro picado dentro. Um engodo para aterrar o cachorrão bobalhão. E foram fazer hora num boteco das redondezas. Aí, novamente, o Zuzu deu mancada pro gosto do Pé de Bicho. Foi logo pedindo:

— Me dá urna birita caprichada.

Ao escutar a ordem, o dono do botequim se mexeu rápido. Mas, antes de ele servir, o Pé de Bicho deu um guento de leve no cupincha:

— Vai beber?

Com a cara mais natural que tinha, o Zuzu rebateu firme:

— Então! É pra dar coragem.

O Pé de Bicho esfriou. Pra ele, que era catimbeiro malhado, aquilo era o fim da picada. Partir pra guerra com um pinta que levava arma e bebia pra ter coragem, não era o seu negócio. O Pé de Bicho ficou ruim dentro da roupa. Só não meteu o galho dentro e desfez a parceirada por questão de honra. Ele era tinhoso nessas coisas. Considerava que o erro era seu de topar um assalto com um vagau que não conhecia direito. Agora, não podia reclamar, nem dar recueta. Não pegava bem. Mas, enquanto cozinhava o galo pro tempo andar e o palacete ficar sem o cachorrão, o Pé de Bicho matutava e se jurava de nunca mais agarrar um rabo de foguete com estranho. Que era o que o Zuzu era pra ele.

Os dois se conheceram na prisão. Um contou pro outro suas façanhas. Na carteação, o Zuzu falou que fazia e acontecia. O Pé de Bicho botou fé. Quando saíram da galera, se encontraram por acaso. Ambos estavam catando lata e precisando adiantar seus lados. Sem dificuldades, acertaram os ponteiros. Mas, na hora do "vamos ver", o Zuzu veio com as presepadas. Revólver, bebida pra dar coragem e os cambaus. O Pé de Bicho, limpo. Uma zorra encarnada. Mar, sem remédio. Esperou o parceiro beber e partiram pro assalto.

Foi urna moleza engabelar o velho vigia que, confiando no cachorrão, cochilava, sentado no portão do palacete. Sem dificuldades, os ladrões entraram no quintal do casarão pelo muro dos fundos, que dava pra um terreno baldio. O cachorrão cumpria o seu papel na fita. Estava estarrado. Tinha comido a pelota de carne, sem dúvida nenhuma. Sem alarmes, o Pé de Bicho e o Zuzu trabalharam à vontade na porta da cozinha do palacete. Rapidamente a arrombaram; sem problemas ganharam o interior da casa.

Tateando no escuro passaram pra sala. Daí, com cuidado, pelas frestas da janela, o Pé de Bicho se certificou que o vigia estava tranqüilo, sem se dar conta que a casa estava entregue aos ladrões. E, calmamente, acendeu uma lanterna e deu início à limpeza. O Zuzu fez o mesmo. Tudo quanto era cacareco que os dois pilantrosos iam encontrando, eles ensacavam. Estatuetas, relógios, pratarias e outras bugigangas. Os ladrões não tinham noção do que tinha real valor, ou não. Pra eles, qualquer coisa de casa de grã-fino deveria valer uma fortuna. Jamais eles poderiam imaginar que os badulaques de um palacete pudessem ser fajutos. Por isso, metiam a mão em tudo que podiam carregar. E estavam nessa, até que o Pé de Bicho lembrou que no andar de cima podia ter jóia. Sem vacilar, deu uma dica pro Zuzu:

— Fica aqui. Vou lá em cima fuçar e já venho.

E, sem esperar resposta, subiu a escada. O Zuzu não chiou, mas não gostou de ser deixado sozinho. Ficou com um bruta medo. Se plantou onde estava, sacou a arma e não se mexeu. No andar de cima, o Pé de Bicho revistou todos os cantos. Afanou coisa paca. jóias, dinheiro, ternos foram entrouxados. Mas, de repente, o Pé de Bicho descobriu uma escada de serviço. Por curiosidade, desceu por ela. Saiu na copa. Logo percebeu que o ouro não estava ali. Mas, em vez de subir pela escada por onde descera, resolveu dar um tempo junto ao parceiro, pra ver como estava a situação. Abriu a porta da copa pra sala.

A bruta rangeu nos pinos. Assustado, o Zuzu se virou e, sem verificar, mandou bala. Três caroços braseados, que pegaram o Pé de Bicho no peito. Ele desabou e o melado correu. O Zuzu, afobado. não quis nem saber. Tratou de dar pinote. Pulou o corpo do Pé de Bicho, sem reparar que quem estava ali jogado era o parceiro. Já ia se afastando, quando o Pé de Bicho, com as últimas forças, deu-lhe um guento:

— Tu me acertou, lazarento. Tu me acertou em cheio. Agora, se tu me deixar aqui, eu te entrego, Zuzu.

Bambeado com essa ameaça e vendo a bobagem que aprontara. o Zuzu endoidou. Sem cerimônia, completou o esquinapo. Meteu mais dois balaços na cachola do Pe de Bicho. Dessa vez não teve erro. Os miolos do Pé de Bicho saltaram. O tampão da moleira rachou. E ele foi falar com Deus. O Zuzu deu no pé. Mas, não foi longe. Alertado pelos tiros, o vigia se acendeu. Quando o Zuzu ia pular o muro, o velho deu-lhe um tiro na perna. Foi o suficiente pra pregar ladrão no solo, até a polícia chegar.

* Texto originalmente publicado na edição de 26/09/1999.

Janela Santista - Plínio Marcos
Amor é amor

Mulher gamada é fogo. Elas, quando se vidram e se amarram num homem, são capazes de fazer das tripas coração pra defender seus interesses. Uma mulher apaixonada se transforma dos pés à cabeça. Se é classuda, cai da panca e, sem vacilar, apronta os maiores salseiros. Se é acanhada, endoida e não regateia pra fazer um escândalo. Esse lance de que a mulher mesmo muito ligada num homem e tal e coisa, se enruste e se fecha em copas porque tem categoria é papo furado. Mulher que deixa o amor no barato não está toda na parada. Que nada! Às vezes, está por solidão, por simpatia, por conveniência e os cambaus. Nunca por gama. É isso. Não tem erro. Sou eu que afirmo, e de mulher eu entendo.

Mas deixa isso de lado. O que quero contar e o que pesa na balança é a história da Dilma Fuleira e da Celeste Bicuda, duas flores da Barra do Catimbó que se unharam e se dentaram por amor ao Ariovaldo Piolho, um vagau de pouca presença física, mas de muita embaixada. Ele lidava com seu rebanho com mil e um macetes e, por essas e outras, sempre foi muito considerado pelo mulherio. É verdade que esse perereco se deu nas quebradas do mundaréu, onde o vento encosta o lixo e as pragas botam os ovos, mas, se acontecesse nos salões da mais fina gente da sociedade, não me causava nenhum espanto. Mulher é mulher em qualquer lugar.

Mestre Zagaia, velho cabo-de-esquadra que navegou sem bandeira por muita água barrenta e que bateu perna à toa pelos caminhos mais escamosos, esquisitos e estreitos do roçado do bom Deus, viu quizilas de assombrar negos de patuá forte, embrulhou sua solidão em muito lençol encardido e escancarou nas Tabuadas das Candongas uma dica sobre o assunto:

- Depois dos panos arriados, o espetáculo é sempre o mesmo.

E, se Mestre Zagaia falou, tá falado. Mulher é sempre mulher. E a Dilma Fuleira e a Celeste Bicuda também são, embora à primeira vista não pareçam. Sabe como é. Elas nasceram lesadas da sorte e só pegaram a pior. Bagulho catado no chão da feira nunca fez bem à beleza de ninguém.

Porém (e sempre tem um porém), não foi a condição de bagulho que impediu que elas tivessem grandes ilusões a respeito de amor. E o galã dos sonhos das duas era, como já disse, o Ariovaldo Piolho. Esse vagau se serviu das duas sem a mínima cerimônia. Foi ali na base do agrião. Como as duas estavam a fim dele, o danado negociou. Fez valer a velha e tinhosa lei da oferta e da procura. Se fingia de morto e esperava pra ver quem comparecia no seu enterro.

Como quem não quer nada, pegava a grana na mão da Dilma, cumpria a obrigação e ia buscar os pixulés com a Celeste. E se o dinheiro compensava, não deixava ela em falta. Até que o caldo engrossou.

Bateu sujeira. O doutor delerusca resolveu acabar com o pesqueiro das piranhas e a Dilma Fuleira e a Celeste Bicuda se viram no papo-de-aranha. Escaparam da cana, mas o faturamento caiu às pamparras. E, no meio disso tudo, o Ariovaldo Piolho sentiu o aroma da perpétua. Vagau escolado por muitos anos de janela é sempre cem por cento profissional. Sem pagório, deixou as mulheres na saudade. E se deu o esquinapo.

A Dilma Fuleira achou que o Piolho não queria nada com ela porque estava enredado pela Celeste Bicuda. Procurou a rival e, sem conversa, deu-lhe uma tremenda biaba. A Celeste Bicuda era encardida. Encarou, mas não deu nem pra saída. A Dilma Fuleira era gordona e alta. A Celeste, baixinha e só pele e osso. Teve que apanhar e correr. Porém, como não era de engolir nada enrolado, a Celeste Bicuda tramou a forra. Foi na macumba levar o nome da Dilma Fuleira pra sua mãe-de-santo enterrar no cemitério. Feita a façanha, a Celeste Bicuda se botou a boquejar nos botecos. Garantia pra quem duvidasse que a Dilma Fuleira ia murchar até morrer. E não faltou fuxiqueiro pra ir rapidinho envenenar a Dilma. E ela, que já estava atolada até o gogó no pântano, acreditou que a bananosa toda que curtia era devido à mandinga da Celeste. Se picou de raiva e jurou pela luz que a iluminava que ia pegar a inimiga e dar pancada até ela desenterrar seu nome. E foi pra guerra.

A Dilma encontrou a Celeste no seu barraco e nem pediu licença. Entrou na força bruta e foi botando pra quebrar. De repente, a Celeste Bicuda deu uns gritos, uns pulos pro alto e, quando desceu, era uma fera batusquela. Passou a mão numa enxada e tocou o bumba-meu-boi no lombo da Dilma, que se viu obrigada a dar pinote. Mas a Celeste foi na captura e derrubou o barraco da Dilma a enxadada. Em desespero e apavorada com a fúria da Celeste Bicuda, a Dilma se refugiou na casa do Piolho. A Celeste não tomou conhecimento. Aliás, ainda ficou mais endoidada de ver a rival junto do homem da sua gama. Aumentou o escarcéu.

O Ariovaldo, sem se afobar saiu de fininho e chamou a polícia. A cana chegou e ferrou a Celeste e a Dilma. No Distrito, a Celeste falou que não tinha nada com a briga. Foi o exu da sua crença que encarnou nela pra acabar com a Dilma. A Dilma, de zoeira, entregou tudo como era. Disse pro doutor que a bronca era por causa do Piolho, que estava na fita como testemunha. O delegado quis saber se o Piolho tinha emprego. Não tinha. Entrou em pua e as mulheres foram dispensadas. Mas continuam pelejando por amor. Uma visita o vagau às quartas-feiras; a outra, aos domingos. E todas as duas levam o santo dinheirinho de presente pro Ariovaldo Piolho, o bom amante.

Texto originalmente publicado na edição de 16/05/1999.
Extraído do livro Histórias das Quebradas do Mundaréu.
Janela Santista - Plínio Marcos
Amor e ódio de Bacalhau e Marion

O Bacalhau era o português mais munheca que já veio ao mundo. Com ele era ali, na morisqueta. Se mandou pro Brasil a fim de amarrar o burro na sombra. E nem queria saber: o lance era faturar. Pegava o batente de condutor de bonde. Linha 19. No reboque, que era mais fácil de engrupir fiscal. O bondão saía da estrada de ferro, atravessava o cais do porto de Santos e ia até o loló do Macuco.

O Bacalhau ali, fazendo chover na sua horta, na velha base do agrião: dois pra companhia, um pra adiantar seu lado; tudo o que enfurnava, são saía mais. Seu sonho era, um dia, voltar pra Portugal bem calçado. Com a muquinha pega na cuca, o cutruco amargava o talo, mas não chiava. Segurava as pontas. Forrava os peitos na pensão do Prato Feito e encostava o cadáver no cortiço do Assanhado, boca do desespero. Essa era, aliás, a escama do Bacalhau. Era só alguém apertá-lo, com lance de escapar da zona, e logo vinha o deschavo:

"Ora, ora.., pois, pois... se eu fosse rico, não estava atrelado ao reboque do 19 e morando nessa joça". Com essas e outras, ele escapava de rifa, lista, mordida de parceiro.

Porém (e sempre tem um porém), não escapava do bochicho da curriola do cortiço; o Assanhado inteiro boquejava que o portuga unha-de-fome estava montado na grana. De tanto ligar suas antenas nesse bafo, a negrinha Marion, pistoleira escolada por muitos anos de janela, começou a paquerar o Bacalhau. A crioula queria botar a mão na bufunfa e cair fora da piorada que levava. O cutruco era o seu pedal. A Marion se guiava pelas dicas da Tabuada das Candongas, onde Mestre Zagaia dá sua pala:

"Trouxa não precisa de grana". E se Mestre Zagaia diz, é porque é.

Por dentro dos assuntos, acreditando pacas na sua embaixada e na pinta de loque do cutruco, a crioula levava fé no remelexo. Olhava pro Bacalhau e via um bilhete premiado. E tome dengo. O portuga, que de otário só tinha a fuça, dava carga. Se servia. Ninguém falava em dinheiro. O Bacalhau não era mesmo desses arreglos e a crioula, que estava cozinhando o galo pra lance alto, deixava pra lá os pixulés. Até que chegou o dia do esquinapo.

Certa de que o seu cupincha estava entrutado no seu chamego, a Marion meteu ficha:

- Tou precisada de uma grana. E pra tirar um bacuri, que não pode ser; e tu que tem culpa.

Era chaveco. O portuga sacou. A Marion não era de parir há muito tempo. Ele cutucou:

- Deixa nascer.

Essa dica entortou a negrinha.

Ela perdeu a esportiva e saiu na linha grossa:

- Não tem disso, não. Vai bufar, mas tem que gemer com o sonante. Pensa que eu sou palhaça? Vem cria, tu dá o pinote e eu fico aí, no ora-veja, com nenê berrando e tudo. Quero grana. E já!

Foi um perereco. A negrinha viu que tinha tubulado. Fez um salseiro. Foi lenha dura. Deu banda no cutruco, que não era de comer enrolado, e fedeu. A moçada do cortiço veio cheirar. Acabaram entrando no pega-pra-capar. Baixou cana no Assanhado. Foi o gango todo explicar pro delegado o porquê do bate-fundo. O delerusca só deu uma espinafração sentida e mandou caírem fora, que o xadrez já estava entulhado de pilantra.

Pro Bacalhau, o caso tinha acabado nisso. Pra negrinha Marion, não...

Tinhosa, ela não era de deixar barato e quis jogar o labrego no chão. Apanhou uma cueca do cutruco e foi bater cabeça no congá de Mãe Begum de Obá, que tinha terreiro no Pau Grande e fama na Baixada Santista inteira. A crioula deu a cueca e uma nota pra macumbeira e ela botou pra quebrar. Mandinga forte. Bateu atabaque três sextas-feiras seguidas. Tudo quanto foi santo forte veio valer pra Maiion.

Mas, que nada... O labrego não teve nenhum abalo. A crioula campaneou o portuga e se mancou que ele ia de vento em popa. Nenhuma carruíra grudou no pé do pinta; ele não caiu do bonde; estava se dando cada vez melhor com o mulherio do cortiço. Ou seja, ia levando em maré mansa.

A crioula ficou urna vara. Se picou de raiva e foi bronquear com a macumbeira:

- Tu é enganadeira. Pegou minha nota e não jogou o desgraçado do Bacalhau no chão.

- Não aconteceu nada com o teu homem? - a Mãe Begum se fez de boba.

- Não! Não! Não! O português está mais firme que urna rocha - berrou a negrinha.

- O cara é cutruco? - perguntou surpresa Mãe Begum.

- E português, sim! Português salafra! - selou a atucanada Marion.

- Por que não avisou logo que o tal pilantra era labrego? Daí eu não pegava o trabalho - declarou aliviada Mãe Begum de Obá.

Diante do espanto da negrinha Marion, a mãe-de-santo pôs a maior banca:

- Escuta, minha filha: se macumba pegasse em português, crioulo nunca tinha sido escravo...

* Texto originalmente publicado na edição de 18/07/1999.

Janela Santista - Plínio Marcos
As chuteiras do Jabaquara

O Jabuca. O glorioso Jabaquara Atlético Clube de Santos. Na época dessa história, era o Leão da Ponta da Praia, depois de ter sido o terrível Leão do Macuco. Também tinha sido o Espanha, nome substituído por força da guerra; num momento de inspiração, a diretoria mudou para Jabaquara. Clube querido.

Muito querido. Entre outras coisas, por ter escolhido esse nome, Jabaquara. Nome de um quilombo que existiu na subida do Morro da Nova Cintra, em Santos.

Sempre me vêm à memória histórias do Jabaquara, atual Leão da Caneleira. Sempre aparece diante dos meus olhos úmidos o rosto da molecada do meu bairro de infância, ali do Aquário, na Ponta da Praia, atrás do campo do Jabuca. Quantos craques não saíram dali...

Um dia, nós, do infantil Vila Bancária, recebemos um ofício de um inimigo poderoso, o infantil Vitória. Nós e outros tantos times vivíamos em volta do campo do Jabuca: Aquário Praia Clube, dois anos invicto, sem perder de ninguém; Ferriboat Futebol Clube; Vasco dos Pescadores; Praticagem; 1 de Maio e tantos mais... Mas a pinimba do Vitória era mesmo com a gente da Vila Bancária. Dois times de craques. Rivalidade encardida.

O caso era o seguinte: era época de eleição, O pessoal do Vitória arrumou um candidato a vereador que lhes deu camisa, calção, meias, chuteiras e tudo o mais em troca de votos. Pra inaugurar o novo uniforme e pra humilhar a gente, o time fez o convite-desafio: jogar na Prova de Honra do festival, a valer taça.

Naturalmente, era pra ir de uniforme e chuteira. Xaveco! Camisa preta e branca nós tínhamos; calção e meias cada um levava o que tivesse; mas chuteira... Não era fácil; tinha gente que ia até de sapato. O pessoal da Vila queria saber:

- Onde vamos arrumar chuteira?

- Que coisa, vamos dar vexame!

Foi aí que o Luciano Juqueri teve a idéia.

- O campo do Jabuca não é aí mesmo? Pois é: vamos assaltar.

- Mas lá tem um puta cachorrão bravo pacas, o Negão - alguém lembrou.

Era verdade. Mas o Luciano tinha boa memória. Sacou essa:

- O Negão é do Frajola.

Frajola, naquele tempo, era meu apelido. E o cachorro era mesmo meu, fui eu que o achei quando era filhote. Peguei pra mim. Levei pra casa. Mas meu pai não me deixou ficar com ele. "Esse cachorro é policial, vai crescer muito, vai ficar bravo; e nós não vamos ter lugar pra ele", argumentou.

Mas eu queria ficar com o cachorrinho. Então, o guardei no campo do Jabaquara e ficamos amigos. Todo dia eu visitava o Negrinho. Que, como meu pai previa, ficou um Negrão. Fera. Passava o dia na coleira e só era solto à noite. Bravo, bravíssimo. Mas não comigo. O Negrão tinha sido atropelado e perdido uma perna, o que o deixou mais bravo ainda. Mas era meu.

E ficou certo: eu segurava a fera. O Luciano Juqueri e a turma do pau assaltavam o vestiário. Ninguém deu pra trás. Boi Baba, Chulé, Bola Vazia, Malucão, Bubu, Caveirinha. Eles arrombaram a porta do vestiário e roubaram um saco de meias e um de chuteiras. E, já que estávamos lá, trouxemos as taças e tudo o mais que achamos.

No dia seguinte, o Jabaquara não pôde treinar. Não tinha material. Saiu no jornal, um escarcéu. Quem foi? Quem não foi? A polícia, devido ao escândalo, entrou na fita; eles não podiam engolir o sapo. Um cagüete acusou: "É coisa do pessoal da Vila Bancária. Lá tem muito lalau". E as patrulhinhas passaram a rondar nosso pedaço. A gente ia pra rua com o maior cuidado, até que veio o dia do jogo.

Tivemos que ir. Nosso time era preto e branco. Entramos de vermelho e amarelo. As chuteiras eram grandes demais pra nós, tivemos que encher de jornal. E tinha mais: os nomes dos jogadores do Jabuca estavam escritos nelas: Baltazar, Bahia, Veiguinha, Leonaldo, Alemãozinho, Souza. Mas, que fazer?

Tivemos que encarar mais aquela. Houve a maior fuzarca antes do jogo. Discurso de político, pontapé inicial. E, finalmente, bola rolando. Aí, pararam quatro radiopatrulhas e um carro do Jabaquara. Os soldados cercaram o campo.

- Segura as pontas, finge que não é com a gente. Fiquem firmes, não vai dar pra fugir mesmo! - o Juqueri berrou pra turma.

E tome bola. Nesse jogo, o time do Vitória foi legal. Cooperaram. Todo mundo dando o melhor, mas sem pontapé nem nada.

A polícia quis entrar. O Papa maneirou.

- Esperem! Não reconheci as chuteiras.

O sargento não engoliu, ficou bravo:

- Essas camisas são do Jabuca claro que são. Vermelho e amarelo... E essas meias vermelhas? E esses nomes nas chuteiras? Olhaí!

Calmo, o Papa mandou cercar a molecada e foi apontando um por um.

- Quero você. Você. Você. E você aí. Quarta-feira, às 15 horas, no Jabaquara. Vão treinar. E fiquem sabendo: quem não aparecer, eu mando a polícia buscar em casa.

E foi assim que Alemão da Marítima, Luiz Manuel, Aracaju, Malhado, Leal, Raimundinho, Bexiga, Enoc, Nei Feijão, Bugre, Alicate, Feijoada, Fabinho, Ivã e tantos outros vieram a ser craques até de Seleção Brasileira.

Esse é o nosso Jabuca, time de craques.

* Texto originalmente publicado na edição de 17/01/1999.

Janela Santista - Plínio Marcos
As professoras de Cubatão

Tenho ido a Cubatão a convite do meu amigo Nei Eduardo Serra, o prefeito. Gente boa, gente da Baixada. Ponta-esquerda que fez e aconteceu pelo Santos Futebol Clube de glórias mil e por outros times da Baixada, Nei Serra honra seu passado de bom de bola fazendo um trabalho de grande gabarito lá em Cubatão.

Escalou a bela Mônica Prado para a pasta da Educação. Ele, junto com seu time, faz as coisas evoluírem por lá.

Mas o que me encantou mesmo lá em Cubatão foram as professoras da João Ramalho, a escola onde eu comecei um trabalho por lá. Todas muito bonitas, e sobretudo muito alegres. Amigas dos alunos. Uma festa! Eu estava lá, falando pra turma da escola e elas todas rindo muito, brincando, como deve ser. Assim deve ser a vida. Me enchi de entusiasmo. Vou visitar várias outras escolas de Cubatão e, com certeza, vou encontrar um ambiente descontraído como a do João Ramalho.

O mais maravilhoso foi encontrar, entre essas professoras vocacionadas, a filha de um grande amigo, o Rios, encadernador; ela dá aula na João Ramalho. Esse velho Rios foi um cara que fez das tripas coração pra me tirar das ruas (eu era um inquieto palhaço gago) e pra me ajudar a encontrar um rumo. Eu só podia ter ficado feliz da vida de ver a filha dele lá, tão bonita, tão alegre, tão querida das colegas e dos alunos, O Rios deve estar muito feliz com essa filha que Deus lhe deu.

Ao vê-la, lembrei vivamente das noites no bar Regina, com todos aqueles intelectuais - Narciso de Andrade, Nelson de Andrade, Maurício Legeard, Roldão Mendes Rosa, Patrícia Galvão, Gilberto Mendes e tantos outros. Que Deus os tenha. E que me perdoe por ter dado tanto trabalho para o mestre encadernador. Rios foi um herói do povo brasileiro; lutou com grande bravura de várias formas. Tenho muito orgulho de ter sido amigo dele. Ele não acreditaria, mas juro por essa luz que me ilumina que tenho muita saudade dele.

O velho Rios passava horas e horas contando histórias da prisão da Maria Zélia, onde gente de muita coragem ficou presa (valentes como o Rios e a Pagu), gente que encarava os esbirros do Morro de Santo Antônio, que vinham do Rio de Janeiro para perseguir, prender e torturar os que pregavam a liberdade. Muitos bravos peixeiros que andaram e andam pela Baixada (o grande Cebola, Mazinho Bio e tantos outros) estiveram lá. E o velho Rios contava suas histórias...

Essas idas a Cubatão estão me trazendo incríveis lembranças. Havia grandes times de futebol. O Comercial Santista, mantido pela fábrica de papel local, era um timão. Dali saíram vários craques para a Portuguesa Santista. O Cubatão era outro timaço. Enfrentar esses times era parada dura, no pau na bota.

Ah, Cubatão... Um dos primeiros circos em que eu trabalhei foi o do grande palhaço Borracha, quando esteve instalado justamente em Cubatão. Astrogildo Filho, um dos maiores galãs da extinta tevê Tupi, estava na companhia; o Astrogildo (que pouco antes de morrer fez uma peça minha, "Oração para um Pé-de-chinelo") foi acompanhante do Assis Chateaubriand e do Ricardo Garcia (que trabalhou muito tempo comigo no Pavilhão Teatro Liberdade). "Seu" Borracha foi um dos grandes palhaços que eu vi atuar, o circo dele era bem luxuoso e fazia muito sucesso em Cubatão.

Lá, também, trabalhei no Parque Teatro Atlas. Era um parque de diversão. Nós, os artistas, servíamos para esconder o jogo, que rolava atrás do palco: tinha roleta, tira vira-baixo, um jogo pesado. Aliás, naquela época, Cubatão era barra-pesada. As pessoas vinham, do Norte e do Nordeste pra arrumar emprego na refinaria; dormiam em beliches instalados nos alojamentos e saía muita briga. Não raro tinha morte. Muitos ficavam doentes. Os portugueses, que eram os pioneiros de Cubatão, foram indo para Santos. A gente costumava dizer que Cubatão era a terra dos homens maus". Assim mesmo, eu trabalhava por lá como artista e gostava muito.

A gente de Santos adorava fazer teatro na Comercial Santista. Muitas vezes trabalhei lá, na companhia da Wilma Duarte ou na do Zé Garrafa. O povo de Cubatão é teatreiro. Pena que hoje esteja sem teatro. Tem um em construção, mas a obra está parada. Uma pena! Uma cidade tão bonita não podia estar sem teatro. Não podia estar privado de ver e fazer teatro num bela casa de espetáculo um povo que gosta tanto de teatro. Ninguém me contou, eu vi: nove horas da matina, um bando de meninas chegando para ensaiar teatro na escola. Olha aí, amigo Nei: esse povo de Cubatão merece um teatro. Está pra você, marcar um gol de placa como os que você fazia quando era moleque na Ponta da Praia.

* Texto originalmente publicado na edição de 27/06/1999.

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