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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - P. MARCOS
Plínio Marcos (7)

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Escritor "maldito", teatrólogo, Plínio Marcos nasceu em Santos em 29/9/1935 e morreu na capital paulista em 19/11/1999, um ano depois de receber o título de Cidadão Emérito da Câmara Municipal de Santos. Amigo de Patrícia Galvão, com quem trabalhou junto na peça Barrela, Plínio tem um marco de homenagem no Centro de Cultura de Santos, que aliás recebeu o nome daquela escritora e jornalista. Dez anos após seu falecimento, o semanário santista Jornal da Orla republicou em seu site na Internet as crônicas de Plínio Marcos que haviam saído na edição impressa desse jornal na década de 1990:

Janela Santista - Plínio Marcos
Bate-papo sobre o tarô

Muita gente me pergunta por carta, por telefone, em encontros casuais na rua: "O tarô é mágico? Você lê por telefone? Você adivinha o futuro?" Pode crer, o tarô é mágico. Porém (e sempre tem um porém), não é sobrenatural. Vê se me entende, porque mais que isso não vou explicar. Ler tarô por telefone, nem pensar: é pura picaretagem. Também não leio o futuro; o futuro a Deus pertence. E obedece à lei de causas e efeitos, de ação e reação.

O que eu leio? O tarô. Esse é o tarô: o meu tarô. Ele reflete o inconsciente do freguês nos arcanos e é isso o que eu leio. O tarô fala a linguagem que emerge da mente humana. As cartas apresentam figuras, desenhos, signos e sinais que significam símbolos quase sempre universais. Foi isso que atraiu tantos investigadores idôneos, como Ouspenski (discípulo de Gurdjiett) Papus, Eliras Levi e Jung, entre outros, para o tarô.

Em síntese, o tarô é um livro. Um sistema de símbolos. Vinte e duas lâminas - os arcanos maiores - que formam uma verdadeira chave dos mistérios. Colocados numa determinada ordem, os arcanos maiores podem conduzir a uma viagem altamente esclarecedora. Um profundo mergulho no inconsciente que leva ao auto-conhecimento, à elevação espiritual.

Muita gente se surpreende com a capacidade do tarô de ajudar o homem moderno, O homem nunca esteve tão mal como agora. Está miserável. Infeliz. Pervertido. Envenenado na raiz. O Estado autoritário deforma, atrofia as tendências naturais do homem, O homem sob a tutela do paternalismo do Estado perde a condição de caminhar sozinho. Tem medo. Muito medo. Um terrível medo social. Medo de ficar desamparado. A minha tarefa com o tarô é justamente ajudar esse homem a se encontrar. Não a atingir uma meta. A viagem é linda quando não existe meta a ser atingida.

Tenho andado por aí dando palestras e cursos sobre o tarô. Meu objetivo é o de sempre: instigar. No caso, instigar a platéia a analisar as cartas e seus significados através de reações intuitivas que elas despertam e de símbolos que elas evocam. Depois, examinamos a relação entre as cartas; uma carta se relaciona com as outras. Isso tudo dá ao tarô a dimensão de um canal de captação do Todo. Alguns ouvintes captam logo, outros demoram mais. E assim também na leitura individual: o trabalho dependendo do nível de cada um.

Quando me abordam por carta, por telefone, na rua, nas palestras, nos cursos, as pessoas sempre têm curiosidade de saber quem inventou o tarô. Vou dar uma colher de chá geral neste espaço, elucidando a questão. Na medida do possível, pois ninguém sabe ao certo e não existe uma resposta simples e imediata para o surgimento do tarô. Tem baralho de mil e um jeitos, do ponto de vista gráfico. Há cartas de todos os tipos. Cada grupo dá uma versão para a origem do tarô. Por essas e outras, ninguém pode, em verdade, afirmar que o tarô vem daqui ou dali, desta ou daquela época.

Há quem atribua aos chineses da mais remota antiguidade a criação de um jogo de tabuinhas numeradas e pintadas com figuras de rios, flores, peixes, árvores, dragões, serpentes e outros animais. Quando esse jogo chegou à Europa, por ordem da Igreja as figuras foram apagadas e permaneceram apenas os números, que evoluíram para o moderno jogo do dominó. Mais ou menos na mesma época, essas tabuinhas apareceram na Índia apresentando figuras humanas.

Mas há quem garanta que as primeiras notícias sobre o tarô datam de quando os cruzados entraram em guerra com os mouros; os cruzados encontraram lâminas de adivinhar entre os mouros. No entanto, há quem credite o tarô ao povo judeu, pois existem lâminas antigas onde aparecem caracteres do alfabeto hebraico; de fato, existe uma interpretação cabalística do tarô toda baseada na árvore da vida. Mas não podemos esquecer que Moisés foi sacerdote no Egito... E aí entra Hermes Trismegisto, o deus Thot.

Conta-se que ele, prevendo o início de um ciclo histórico da decadência espiritual da humanidade, idealizou, de forma sintética para preservar o significado simbólico, o conteúdo essencial do conhecimento esotérico. O raciocínio era evidente: prevendo que o homem entraria numa fase de distração das preocupações espirituais, a diversão poderia ser o próprio meio de preservação — de transmissão — do verdadeiro conhecimento, do conhecimento ocultista. Segundo essa versão, o povo cigano teria sido ordenado pelo deus Thot — os próprios ciganos contam isso — para espalhar o tarô pelo mundo.

Quem sabe, lê o livro (o tarô). Ele é a chave para a Bíblia, para o Alcorão, para o Torah, para o Livro dos Vedas, para o Livro do Rei Salomão e para todos os livros sagrados. Quem não sabe, joga. E alguns tomam dinheiro dos crédulos com previsões fajutas. Pessoalmente, por carta, por telefone...

* Texto originalmente publicado na edição de 30/05/1999.
Janela Santista - Plínio Marcos
Bira Morfético

Tem gente que nasce sujo de arara e, por mais que se esforce, não tem jeito de tirar o pé do lodo. O Bira Morfético veio na piorada e ainda conseguiu se atolar mais. Cria maldita dos puteiros das piranhas, ainda pivete ficou entregue a si próprio. A mãe não agüentou o repuxo e, num momento de desespero, bebeu creolina. Sem tomar conhecimento do Bira, a mulher embarcou. Foi falar com Deus. Como não tinha pai, o pivete teve que se valer sozinho. E ele, por ele mesmo, era muito pouco. Quase nada. Ainda mais ali, nas bocas escamosas das quebradas, onde o jogo é bruto e a ordem é a do "Salve-se quem puder".

Porém, o Bira foi levado para frente. Apanhando as sobras, encarando a sorte encardida como dava, se atucanando de fome e de frio. Claro que se machucou, se marcou e se sentiu no prejuízo. Mas, por não ter contra quem chorar, segurou as pontas. Depois das pancadas, se fez duro ou sacana. O que conta é que se escolou. Abriu os olhos de ver. Viu. Aprendeu os trampos e os macetes. Se fez gente. Podia escolher seu rumo. Foi quando se entornou ainda mais.

Uma ferida nojenta apareceu na mão do Bira. A princípio, ele não ligou. Se limitou a coçar a gronga e a esconder a mão no bolso. Até que, um dia, a miséria ficou escancarada. Foi em cana que adivinharam o perereco. Ele tinha entrado numa rapa geral. Estava aguardando os tiras verificarem se ele não estava devendo nada para a justiça.

Como ele sabia que não estava premiado, se plantou tranqüilo. Mas um companheiro de cela meteu as butucas na mão do Bira e fez um escarcéu. Anunciou para os outros presos que havia um morfético ali presente. A bobeira foi coletiva. Isolaram o Bira num canto do xadrez e meteram a boca no trombone. Fizeram a maior zoeira para o carcereiro tirar o morfético da cela. Coisa que demorou paca.

Enquanto esperava que o dono da chave lhe desse destino, o Bira se roeu de mil maneiras. A idéia de estar morfético lhe fundiu a cuca. E o fato de ser enjeitado pelos companheiros lhe ardeu a alma. Rejeição sempre fora o seu problema. E ali, no canto da cela, o Bira sofreu e cresceu. Se agoniou. Reviu lance por lance da sua vida quantas vezes quis ou teve coragem. Constatou que só tinha comido da banda podre. Nunca havia sido o mais forte, nem o mais sabido, nem o mais bonito. E, nessa hora da verdade, se picou de raiva e se jurou. Selou no íntimo que, se estivesse morfético, iria se tornar o capeta. E estava.

Depois de dois dias de espera, o Bira foi levado ao médico. Só de olhar a ferida na mão do preso, o doutor já deu a sentença:

- Isolamento para ele.

E não adiantou estrilo. Arrastaram o Bira para o hospital dos morféticos. Ele foi contra a vontade. Se só se agüentou lá uma semana. A vigilância era mole e ele se mandou. Não quis saber de tratamento. Tinha na cachola uma bola maluca e queria botá-la pra quebrar. Voltou para as bocas. A notícia já tinha chegado na frente. Todo o povão do esquisito sabia que ele estava morfético e ele passou a ser conhecido como o Bira Morfético. Coisa que ele até achou legal. Porque, dali pra frente, era só seu nome piar na parada pra curriola piar nas bases. E ele passou a se servir. Os donos dos botecos, das gafieiras, dos mocós, dos pontos de bico, dos paiós de maconha, e dos cambaus, pagavam ao Bira pra ele não chegar perto dos pesqueiros.

E choveu na horta do morfético. A grana que ele queria ele tinha. Mas para ele isto não era o suficiente. Seu negócio era fazer maldade. Não queria se tratar, nem nada. A bronca que ele tinha das pessoas era muito grande. Ele só queria se vingar. E para isso se aparelhou. Comprou um revólver e começou a aprontar toda espécie de salseiro. Assaltava e esculachava qualquer um.

Por destino, a ferida que lhe comia a carne, poupou os dedos do gatilho. Mindinho, seu-vizinho, pai-de-todos caíram todos. Ficaram fura-bolo e mata-piolho. Com esses, o Bira manejava a arma. E possuía uma pontaria certeira. Foi com essa pontaria e com a doença que ele fez o seu reinado. Ficou o bandido dos bandidos. Uma besta fera. Nele não existia a mínima gota de amor. Mas, também, nunca ninguém lhe dera a mínima gota de amor. As mulheres que conseguia era na marra. E muitas, depois de estarem com o Bira, se matavam, com medo de terem ficado premiadas. Nunca o morfético se tocou. Queria que se danassem.

Achava bem feito. A sua maior abilolação era quando alguém demonstrava nojo por ele. Teve uma vez em que o Bira matou três no embalo, porque os negos se acanharam e não quiseram apertar a mão que o morfético lhe estendera. Diante da recusa, o Bira não regateou: puxou a arma e arrebitou todos eles. E não tinha esquinapo pro morfético. Os policiais também evitavam dar-lhe uma prensa. Mesmo porque sabiam que não adiantava. Por ser doente. O Bira era mandado pro isolamento e de lá fugia.

E o Bira, por essas e outras, ficou o terror de todos. Até que se enrabichou pela Irene Picega, uma pistoleira com muitos anos de janela. Nos primeiros encontros que teve com o morfético, tirou ele de letra. Tratou o Bira bem. Não ouriçou por causa da mão, nem se arredou, mas também não deu pedal pra abordagem.

Cozinhou o galo. E o morfético gamou. Como ninguém é de ferro, o Bira estava precisando há muito tempo de uma relação de igual pra igual. E se iludiu na embaixada da Irene. Rodeou em quanto pode. Vários meses o Bira ficou na paquera. Se enredou tanto, que até deu estia pro pavão. Nas águas da Irene, o morfético deixou andar e a curriola pôde respirar.

Porém, a idéia de jerico atacou o Bira e ele se abriu com a Irene Picega. A mulher quis sair fora. Não deu. Levou a prensa e o Bira ganhou a mina na congesta. A Irene, quando se viu livre do Bira, se empapuçou de cachaça. Com o pretexto de se desinfetar, encharcou de álcool suas roupas e tocou fogo. Virou uma fogueira. Todo mundo viu a mulher arder. O Bira também assistiu ao incêndio. Não fez nada para apagar o fogo e não deixou os outros apagarem. Só se afastou depois que a mulher assou inteira. Saiu murcho, devagarinho e sumiu na noite.

No dia seguinte, foi encontrado estarrado com um tiro na orelha. Tinha se matado. Foi esse o fim do pior bandido que já pisou nas quebradas do mundaréu.

* Texto originalmente publicado na edição de 17/10/1999.

Janela Santista - Plínio Marcos
Cadê o Tom Mix?

A gente era da antiga Laranjeiras (hoje, a Afonso Veridiano; mas deixa isso pra lá). A gente pegava a Epitácio Pessoa pra sair na Oswaldo Cochrane e ir pra pelada na praia. O que quero contar e que pesa na balança é que um dia, nesse caminho, surgiu o carro de um japonês e ele pegou de frente, de chapa, a caminhonete da Laticínios Lambari, que distribuía a Bala Futebol.

Foi um auê: barulhão, corre-corre, gritaria. A porta de trás da caminhonete abriu. A molecada da antiga Laranjeiras não vacilou: pulamos dentro do furgão e saqueamos as caixas de Bala Futebol.

Só eu afanei duas fieiras de dez caixas. Correndo, escondi todas elas no porão do chalé verde em que morava. Foi um caso sério. Abri uma bala atrás da outra, separando as figurinhas, e chupando aquela meleira de água e açúcar. Não tardou a revirar o estômago.

Minha mãe veio de chinelo em punho, que era sempre o primeiro remédio para qualquer mal-estar. Como isso nem os gritos da minha mãe pra eu confessar o que tinha comido resolveram, ela veio de purgante. Virei flor, fiquei plantado no vaso. Nos intervalos, era caldinho de galinha e chá com torrada goela abaixo.

À noitinha, meu pai chegou do trabalho com a noticia:

—A molecada da rua assaltou o carro da Bala Futebol.

Confirmando que o amor é cego, Dona Hermínia, minha mãe, garantiu:

—O Plínio não foi. Ele passou o dia com dor de barriga. Aí, meu Deus, há males que vêm pra bem... Pelo menos nessa encrenca ele não se meteu.

—Mas o que ele comeu? — quis saber Seu Barros, meu pai.

—Não sei, nem ele sabe —ela afirmou. Imaginei como seria se eles descobrissem.

—Bom, se ele não melhorar até amanhã, chama a Vó Lucila — sugeriu meu pai. Minha avó paterna era benzedeira das mais procuradas e mais queridas.

A imprensa veio em cima. O grande Hamleto, o Antonio Guenaga, o Olao (todos da Tribuna); o Nunes (do Diário). A rádio não ficou atrás, entrou de sola no caso. Até a mais bela voz do rádio santista, lbrahim do Carmo Mauá ("São seis horas da tarde; cessa por um instante o seu labor e pensa no supremo bem da vida rezando comigo"), e a voz mais estridente e vibrante, Ernani Franco ("Adão não se vestia porque Mafuz não existia"), que berrava gol do Santos com toda a força de seus pulmões, comentaram o saque.

Todos criticando, naturalmente: "A molecada não respeitou um acidente sério no cruzamento da Epitácio Pessoa com a Oswaldo Cochrane. Aproveitaram o desastre e assaltaram o furgão da Laticínios Lambari. Saquearam caixas e mais caixas da coleção Bala Futebol".

Eu melhorei logo, com a graça de Deus, e no dia seguinte já corri pras minhas balas. Fui desembrulhando uma por uma, sob um sol de rachar mamona. As balas iam derretendo sob o calor santista e eu lá, separando figurinhas. Jogo duro. Mas compensava: fui enchendo o álbum e tirei um monte de carimbadas. As repetidas serviam pra jogar abafa ou pra ir no bar do Seu Meleiro negociar com álbuns.

Custou, mas aos poucos fui colando as figurinhas, formando páginas, retumbando de alegria com as carimbadas. Era uma beleza: os times iam se completando. Meus amigos faziam a mesma coisa.

Mas, de repente, nos tocamos: ninguém enchia o álbum. Para surpresa geral, faltava sempre uma figurinha, uma só, apenas uma: a do Tom Mix, ponta-esquerda do Jabaquara. Sacanagem! Estrilo geral. A imprensa tomou conhecimento do caso e esperneou: "Ladrão que rouba ladrão merece perdão", "A molecada santista está no prejuízo", e tome pancada na Bala Futebol. Uma zorra!

Até que apareceu nas páginas o retrato de um moleque de óculos, cheio de espinha, com uma bola de bico e cordão: ele tinha tirado a figurinha Tom Mix e recebido o prêmio pelo álbum completo, dizia a notícia. Nós achamos uma afronta aquele moleque (aliás, aquilo não era um moleque, aquilo era um menino), morador da Vila Mathias (a notícia dava o endereço completo dele, com número e tudo), tirar a bola. Juntamos a turma e partimos da antiga Laranjeiras até a Vila Mathias.

Fomos a pé, não havia grana pro bonde. Achamos a casa, batemos e lá veio o menino e a mãe do menino.

—Você ganhou a bola? — perguntamos.

—Ganhei — ele confirmou.

—Podemos ver a bola? — assim, como quem não quer nada.

—Pega lá a bola, meu filho; eles só querem ver — interferiu a mãe, já que o menino estava vacilante em mostrar a bola pra nós.

O menino veio com a bola, mostrou pra gente. Ficamos só olhando, ninguém dizia nada. Depois de um tempo, a mãe do menino mandou guardar a bola, que já tínhamos visto.

Foi ai que o Juqueri, num raro momento de inspiração, deu um soco na bola. Ela se soltou da mão do menino, nós a agarramos e saímos correndo.

— Ladrões! Devolvam a bola do meu filho! — A mãe do menino ficou lá gritando.

Chegamos à antiga Laranjeiras botando os bofes pela boca. Mas não regateamos, pusemos a bola no campinho. Chuta pra lá, chuta pra cá, uns dez bicos ou um pouco mais. E o couro descosturou. A bola abriu, fez bexiga. Ninguém ligou, continuamos chutando. Mais uns bicos e a bola estourou. Fim da alegria.

* Texto originalmente publicado na edição de 07/03/1999.

Janela Santista - Plínio Marcos
Coisas do Carnaval

O Carnaval só deixou saudade. Saudade da alegria que findou.

Éramos um grupo de amigos que parava no bar Redondo, no coração de São Paulo, bem em frente ao teatro de Arena, hoje Eugênio Kusnet. Muitos artistas marginalizados. Todos malandrinhos. Uma turma brava. Fundamos a Banda Bandalha. Foi um sucesso.

Todas as tardes parávamos eu, Carlão da Vila, Toniquinho Batuqueiro, Geraldão da Barra Funda, Talismã, Cachimbo, Zeca da Casa Verde, Vovô Gabi, Silvio Modesto e outros. Fizemos um show. Foi um sucesso. Tinha o conjunto de Santa Isabel, batiam jongo. Foi um sucesso.

O tempo foi passando. De repente, morreu o Talismã. O Zeca e o Geraldão já não estavam bem, eram as bolas da vez. Percebi e propus um show de despedida. Eles riram, achavam que estavam mesmo no bico do corvo. Fiz minha parte, fui procurar o pessoal do Centro Cultural São Paulo, que estava vazio, sem programação. Só queríamos uma noite, qualquer noite. la lotar, claro que ia. Como dizia o Silvio Modesto tirando partido alto, se puxar o pagode, o pagode continua.

Mas não cederam a casa de espetáculo pra nós. Alegaram que eu hostilizava o prefeito, o tal Maluf, e todos os seus prazeres. Que coisa! Que fiz eu pra essa vingança? Num programa de televisão onde eu fazia uma entrada rápida pra dar humor ao fim de noite, comentei que no governo do Maluf tinha tanto ex-comunista que, se o governo não fosse tão burro, dava pra pensar que o Maluf tinha virado marxista. Aí, não deixaram a gente ocupar o espaço do Centro Cultural para um show de despedida. Que canseira...

Logo depois, morreu o Zeca da Casa Verde. Não demorou muito, foi o Geraldão Filme. Em seguida, o Vovô Gabi. O Cachimbo se acabou também. Ninguém teve direito a até logo. Quem mandou eu dizer o que achava da corja, daquela gente que era de esquerda e que, sem nenhuma cerimônia, correu pra direita? Mas deixa isso de lado, O que quero contar e o que pesa na balança é que marcamos época.

Fizemos história. Tínhamos sambas lindos. Tínhamos uma cooperativa de artistas, O Bando. Apresentamos espetáculos retumbantes. Tínhamos a Banda Bandalha. Tínhamos, sobretudo, a alegria de viver.

Quando a Bandalha ia sair, juntava gente de todos os cantos do Brasil. Ali no pedaço do Redondo (hoje um restaurante de quilo qualquer), ninguém era recusado. As pessoas chegavam e eram bem chegadas. Vinha artista do maior gabarito, de grande sucesso. E tome samba. Chegamos a sair com dez mil componentes.

Uma vez, à tardinha, a turma estava reunida, esperando a hora da Bandalha sair. Pinta na parada um soldado fardado, polícia militar. O meganha trazia um pacotão embaixo do braço e falava educado:

— Seu Plínio, será que o senhor deixa eu sair na sua banda?

— Olha aqui, general, a banda não é minha, sai quem quer. Agora, só acho que não pega bem pra você sair fardado.

— Estou preparado, seu Plínio. Nesse embrulho está a minha fantasia. Se tiver um lugar, eu troco de roupa e saio numa boa.

Chamei o Antonio Porteiro (outro dos nossos que já foi falar com Deus), expliquei o drama do gambé. O que o porteiro do Arena não ajeitava? Levou o soldado pra teatro e logo o moço apareceu todo alegrinho, vestido de odalisca. O pessoal quis achar graça, ele encarou numa boa:

— Eu sou do Ceará, lá é assim. No Carnaval, os mais machões saem de mulher. Mas os homens se garantem.

— No Rio também é assim, e lá a rapaziada costuma levar uma navalha sob a fantasia; não dá pra ninguém fazer laúza— confirmou o Jangada.

A banda saiu bonita. Fomos levando. Já tínhamos andado bastante quando o odalisco se aproximou encabulado:

—Seu Plínio, eu só quero brincar o Carnaval. Mas tem três vagabundos que estão me provocando desde lá de longe. Eu não quero encrenca. A banda tá tão bonita...

—Fica na boa. Ninguém vai zoar com você.

Garanti chamando Julinho Capoeira, Geraldão Filmes, Jangada, Toniquinho da Tiririca e dei as ordens:

—Não precisam pegar duro. Mas façam os babacões se acanharem. Empurrem os encrenqueiros pra fim da banda. Se eles encardirem, o negócio é arrepiar.

Assim foi. A rapaziada juntou os três vagabundos, escovaram os pilantras e o desfile continuou tranqüilo até o fim. Quando acabou, o odalisca agradeceu muito, se desculpou muito também, pegou o embrulho dele com o Antonio e desceu pelo beco até o boteco Fim do Mundo. Entrou e deu de cara com os três vagabundos. O primeiro que viu o odalisco anunciou:

Olhai, gente, a bicha agora tá sozinha:

O soldado foi firme:

—Tá enganado, otário. Agora é que estou acompanhado.

Abriu o embrulho, puxou um três-oitão e não teve vacilo. Distribuiu três tochas: uma na perna do primeiro, outra no braço do segundo, e o terceiro, que quis fugir, recebeu um arrebite na bunda.

O odalisco pediu uma cerveja. Bebeu sem afobação e decretou:

—Os otários vão pagar. Cobra deles.

* Texto originalmente publicado na edição de 14/02/1999.
Janela Santista - Plínio Marcos
Corrida Maluca

Mexe e vira, os sonoros sons da minha infância ressoam na minha alma. Os gritos de alegria que retumbaram naquele pedaço - lá da linha Forte Augusto, no fim do Macuco, até o Aquário, descendo pelo Canal 6 e seguindo até o ferry-boat - ficaram encravados em mim.

Ali se sabia das coisas: de bota o povo sabia tudo; de natação, o melhor técnico era o Elni Abdelasís de Camargo, que era dali da Vila dos Bancários; o melhor corredor de Santos de todos os tempos foi, sem dúvida, o Luciano Fonseca, o Luciano Juqueri.

Por causa do Luciano se formou um clube de pedestrianismo na Vila. A sede era na casa do Haroldo Leitão, bom goleiro que acabou juiz de futebol da terceira divisão do Campeonato Paulista de Profissionais; o Leitão apanhou bastante por esse interior afora. Juiz mesmo lá na Vila tinha o seu Maneco do Ouro, um figurão. Mas deixa isso de lado.

O que quero contar e o que pesa na balança é dos corredores do pedaço. Bem dizia Dostoiévski: "quer ser universal, canta a sua aldeia". O fato é que do Macuco até a Ponta da Praia o que não faltava era corredor; todo mundo virou esportista.

Alguns iam até na São Silvestre, como o Neno Soneca; só que ele queimou fumo antes da saída pra ganhar embalo e entrou num barato de sono, dormiu encostado num poste até o sol raiar, anunciando a manhã do Ano Novo. Coisas da vida.

Porém (e sempre tem um porém), importante pra nós era quando as coisas se davam no nosso pedaço. Ali no reduto é que tinha pra troca. Nas esquinas se formavam as turmas: turma do Aquário, turma do Ferryboat, do Suvaco da Mula, da Padaria Vitória, da Pedro Lessa, da Meganha, da Rei Alberto, do Parque Santista e tantas outras. Todos se inscreviam em tudo que se ia fazer.

Portanto, como era de costume, quando o Vasquinho da Ponta da Praia resolveu fazer uma prova de pedestres em volta dos bairros, todos se inscreveram - do Luciano Juqueri, um tremendo corredor, até o Zé Patinete, um manqueta sem chance, passando pelo Bubu, um gordão de dois metros de altura por dois de largura. Claro que a gente, ali do Aquário, apostou tudo no Luciano.

Já o pessoal do Suvaco da Mula botou fé no Caiçara, que também corria muito e tinha fôlego. A corrida era bem comprida: saía da porta do Vasquinho, fazia a volta no Canal 6, passava por trás do Aquário e ia de novo pra Ponta da Praia, até o Vasquinho.

Nós, do Aquário, ficamos de prontidão no Canal 6, sabe como é... até araruta tem seu dia de mingau. Se, de repente, o Caiçara começasse a se destacar, caberia a nós segurar o bruto e adiantar o lado do Luciano.

E a corrida foi rolando. Logo de saída, o gordo Bubu foi sendo deixado pra trás. A mãe, as irmãs e as vizinhas dele berravam sem parar, acreditando, sabe-se lá por quê, que ele podia se destacar. Mas neca de ele aparecer. Todos os corredores iam passando, até o manqueta Zé Patinete. Menos o Bubu.

A família dele ficava cada vez mais enlouquecida. Até que, finalmente, o Bubu apareceu. Vinha em último, mas vinha. A torcida dele (a mãe, as irmãs e as vizinhas) fez um escarcéu na sua passagem, incentivando o gordão. O pessoal da zoeira curtia. E o bestalhão se acreditou: estufou o peito, saudou a mãe e a família, deu um impulso e bum!, caiu na grama do jardim da praia. Veio ambulância e tudo.

Não foi fácil embarcar o gordão pro pronto-socorro, o bruto pesava paca. Mas foi, junto com vários familiares, todos desesperados e chorando.

Nessa altura, o Luciano e o Caiçara vinham já virando o Canal 6, juntinhos, feito parelha. Resolvemos intervir. Agarramos o Caiçara, apenas pra segurar o corredor adversário. Mas, pombas!, ele resolveu espernear, Só que naquela parada estavam o Boi Baba, o Chulé, o Nego Cristalino, o Carneiro Negro, o Búfalo, o Silvio Crioulo e mais um monte de gente. Aí, já viu: ralaram o Caiçara; bateram de leve, mas bateram bastante, calculando o suficiente para ele não alcançar mais o Luciano. Não machucaram o Caiçara. Quando o soltaram, deu pra ele xingar a gente e sair correndo.

Nós seguimos devagar pelo jardim da praia (que jardins lindos os das praias de Santos!), tirando uma marola aqui, outra ali, gozando a cara daquela gente toda, mexendo com as moças. Seguimos assim pro ponto de chegada dos corredores. No caminho, vimos passar uma ambulância, mas não tomamos conhecimento. Logo tomaríamos...

De repente, um sujeito do nosso pedaço avisou: "A turma do Suvaco da Mula pegou o Luciano e quase matou ele de porrada’, O que ele tinha feito? Ninguém sabia. Provavelmente ficaram com raiva porque o Luciano ganhou a corrida. "Quase mataram o Luciano. Valha-nos Deus!", terminou o sujeito. Nós corremos pra tentar acudir, mas era tarde. A turma do Suvaco da Mula tinha se picado e no pedaço deles a gente não entrava, que a gente não era louco nem nada. A ambulância que pegou o Luciano também já tinha ido, não pudemos fazer nada. É, são coisas do esporte...
Janela Santista - Plínio Marcos
Cuscuz e xaxado

Todo mundo conhece a Etty Fraser, não apenas por seu trabalho como atriz, mas também por ser campeã em ajudar artistas necessitados - nos tempos que corre, os aidéticos têm nela um grande anjo da guarda. O que pouca gente se lembra é que a Etty já entrou numas de entortar patuá.

Estávamos numa roda, noite dessas no Gigetto, contando histórias, falando de gente do teatro e o assunto Etty piou. Eu me recordei de um caso que aconteceu na extinta TV Tupi, o programa do Airton e da Lolita Rodrigues, o "Almoço com as Estrelas". Era aos sábados, ao vivo, e embarcava em campeonato de coisas estranhas, coisa que esteve na moda desde a fundação da televisão. Pois a Etty surgiu lá uma vez como jurada de um campeonato de cuscuz, uma presepada até então inimaginável... Convidada, a Etty achou que era uma boa chance de falar da peça em que ela estava em cartaz e embarcou numa canoa furada sem vacilar.

É bem verdade que ela não estava sozinha na parada; tinha a Maria Della Costa e o Carlos Galhardo no mesmo júri, na mesma treta, mas o caso é que ela estava lá pra julgar cuscuz. E teve início o perereco.

Foi a própria Etty quem me contou... Faço minhas as palavras dela, que, apesar das aparências em contrário, apela pra gíria na intimidade; como ela só faz papel comportado na televisão, de mãe e tia, só os mais chegados conhecem seu lado mais charmoso e engraçado.

Quando o Airton, com a simpatia que sempre lhe foi peculiar, chamou pro palco as concorrentes do concurso de cuscuz, a Etty se assombrou; subiu uma leva de umas vinte senhoras de várias idades, tipos e cores, com seus cuscuz. Havia cuscuz de todo naipe: seco, molhado, de sardinha, de camarão e os cambaus. Depois de desfilarem seus cuscuz em frente às câmeras de tevê, as senhoras partiram pra batalha.

O julgamento consistia num teste de paladar: cada um dos jurados comia um pedacinho de cada cuscuz e escolhia o melhor. Devido à quantidade de participantes, bastava que a Etty, a Maria Della Costa e o Carlos Galhardo provassem um naquinho à toa de cada prato pra tomarem um verdadeiro porre de cuscuz.

Porém (e sempre tem um porém), as distintas senhoras concorrentes, na ânsia de agradar, atocharam pra cima deles cada fatia de cuscuz que vou te contar! Uma só já dava indigestão. E pra que ninguém saísse esculachando o concurso, os honestos membros do júri decidiram não deixar nenhuma sobra.

Foi de lascar: depois do terceiro pedaço de cuscuz, nenhum dos três artistas da comissão julgadora se lembrava mais do gosto do primeiro; no décimo naco de cuscuz eles estavam transbordando pelas orelhas. No final da cuscuzada, estavam todos entupidos. E o pior é que não sabiam qual o melhor cuscuz.

Foi aí que a Maria sugeriu que decidissem quem seria o vencedor por sorteio; todos apoiaram e o Airton topou. Foi sob grande suspense que o animador fez a sorte decidir quem ganharia o prêmio e a vencedora foi muito aplaudida, donde se conclui que foi um sucesso.

Desgraça foi o que sobrou pra Etty. Para aproveitar o embalo, o Airton anunciou que o Carlos Galhardo iria cantar, pra gáudio dos ouvidos e para a sensibilidade dos corações. O grande intérprete pediu tempo.

Explicou que, se abrisse a boca, ia espirrar cuscuz no auditório. o Airton compreendeu e, pra quebrar o galho, apresentou um cantor de xaxado... que, sem a mínima cerimônia, esparramou que, representando o júri do concurso de cuscuz, a Etty ia dançar xaxado. A simpática gordinha, que não sabe dizer não, puxou seu espírito esportivo, que estava sufocado embaixo de um monte de cuscuz, e mandou ver. Quem tem arte sempre abafa e a Etty abafou: dançou xaxado pela primeira vez como se fosse num forró badalado.

Janela Santista - Plínio Marcos
Dois grandes craques

Como eu já contei, todo fim de ano, no dia 31 de dezembro, se reúne, ali entre o Canal 6 e a Escolástica Rosa, uma turma de craques veteranos que até hoje jogam uma bola fantástica. Vai gente daquele incrível Santos de Zito, Lalá (goleiro), Geraldino, Dorval, Pepe, Sérgio Chulapa. Vai Norberto Cabeça (da Portuguesa Santista), vai o ponta-esquerda Serginho (da Portuguesa Santista e também do Palmeiras).

Outra figura que pinta por lá é o Henrique Alemão, o Henrique da Marítima. Esse era craque, um goleiro fantástico! Ainda muito cedo, começou no Jabaquara. E nascido e criado no bairro do Aquário, Ponta da Praia, pedaço de grandes goleiros, como César Palito (da Portuguesa Santista, do Vasco da Ponta da Praia), Armando da Venda (que foi do Jabaquara, do Aquário, do Vasco, do Praticagem), Armando Louco (Pratícagem, Ferry-boat), Joca (do Vitória), Lolo (do Vasco), Oswaldo Malcriado (do Jabuca) e tantos outros. Entre todos, o maior foi o Henrique Alemão. O legendário Papa, treineiro do juvenil do Jabuca, só o chamava de Girafa (apelido do grande Gilmar quando era do Jabuca), porque era comprido paca. Um craque! Novinho ainda, o Girafa já era reserva do Barbosinha, que estava para ir embora.

O Henrique Alemão já treinava entre os profissionais e tinha muito prestígio com o Wilson Capão, treineiro dos titulares do Jabuca. Portanto, a vaga de titular estava no papo. Por esse prestígio que tinha e por ter sido sempre chegado ao pessoal da nossa rua, ele perdeu a inibição e falou com o técnico sobre o Dodô.

- Olha, seu Capão, no nosso pedaço tem um moleque que é um craque. Eu nunca vi em toda a várzea um jogador como esse Dodô.

Por essa luz que me ilumina, eu também não vi. Nem o Pagão, nem o Genésio do Fluminense do Canal 5, nem o Luís Barbosa do Praticagem, nem o Agnaldo do Portuários e do Santos, nem o Luiz Manoel do Jabuca, nem o Nei Papagaio da Portuguesa e do Palmeiras, nem o Laudo do Aquário, ninguém viu um jogador melhor do que o Dodô. Um jogador sem igual. Tremendo craque!

Diante do entusiasmo do Henrique da Marítima pelo Dodô, o Wilson Capão autorizou a vinda do novo craque para o treino. No dia certo, ele se apresentou. A bem da verdade, seu Capão não botou muita fé naquele moleque franzino, dentucinho, com cara de debochado. Mas já que o tal carinha estava tão bem recomendado, deu a ele a camisa 10 dos reservas e mandou treinar. Mesmo porque, como dizia o velho Papa, não se manda jogador embora só pelo tipo:

- Se aparece um gordinho e baixinho, de repente pode ser o Coutinho. Se aparece um comprido magrão, pode ser o Gilmar. Um meio torto pode ser o Garrincha. Um baixinho magrelo pode ser o Luizinho do Corinthians. Então, experimenta antes.

E por essas e outras, o Wilson Capão botou o Dodô pra treinar. A primeira bola que o Dodô pegou, ciscou de um lado pro outro; o becão Rui Maluco veio como uma vaca brava em cima dele; o boleiro se esquivou e meteu a bola entre as pernas do Rui Maluco, que ficou picado de raiva e partiu pra cima do moleque. Precisou o Henrique Alemão garantir a parada pro Dodô. O Rui ameaçou pra valer. Seu Capão deu bronca e mandou continuar o treino. Nova jogada: Dodô pegou a bola, esperou o Rui Maluco entrar com tudo e, outra vez, tirou o corpo e pôs a bola entre as pernas dele. Aí encardiu.

Seu Capão conteve o zagueirão e berrou pro Dodô:

- Cai fora, moleque! Cai fora! embora, aqui não treina mais.

O Henrique veio lá do gol, gritando:

- Qual é, seu Wilson? O senhor vai deixar esse perna-de-pau aí e vai mandar esse craque embora?

- Nervoso, o Wilson Capão selou:

- É assim. Esse moleque pode ser craque, mas está acabando com meu time.

Nunca mais quiseram saber do Dodô por lá no Jabuca. E o Henrique não chegou a titular, ficou na Marítima; teve um problema na perna que o impediu de continuar no futebol, mas isso é outra história.
Janela Santista - Plínio Marcos
Dois times sem jogo

Certa vez, o União da Barra do Catimbó recebeu o seguinte ofício:

Ilmos. Srs.

Dos União da Barra do Catimbó

Nós vem por essa mal-traçada linha chamar vocês aí pra jogar no campo da gente uma partida de futebol no domingo, que a gente só joga nesse dia, que nos outros a gente trabalha. Se vocês quiser vim, pode responder o ofício dizendo que vem, que é pra gente pendurar ele na tabuleta do boteco do Almeida pros sócio do time da gente poder ver que vocês aceitou e se na hora vocês ficar com medo e não vim, eles não vão ficar pegando no pé da gente e dizendo que essa diretoria não tem ninguém que sabe tratar jogo. Agora, se vocês não ta a fim de encarar a gente, então é problema de vocês. O Flor do Ó não tem medo de ninguém.

(Assinado: Olavo Silva, Diretor Esportivo do Flor do Ó)

Assim que leu o ofício, o seu Azulão, presidente do União da Barra do Catimbó, se picou de raiva. Convocou a diretoria do seu time, leu o ofício do adversário e, de imediato, todos toparam o jogo com o Flor do Ó. E, como era solicitado pelo desafiante, mandaram a resposta num ofício caprichado.

Ilmos. Srs.

Diretores do Flor do Ó

Nós recebeu o ofício marcando jogo e responde por essa mal-traçada linha que aceita. Nós não é de enjeitar parada. Se a gente tivesse medo de homem, não saía na rua vestindo calça. A gente vai, pode anunciar. Mas tem um negócio que é o seguinte: nós dá o juiz e vocês que é dono do campo dá a bola. Domingo tamos aí na Freguesia do Ó pro que der e vier. Responde logo se aceita dar a bola. Se tiver medo de só, é só dizer que não quer, que a gente não vai.

(Assinado: Eldócio Pereira, o Azulão, Presidente do União da Barra do Catimbó)

De posse do ofício-resposta, o pessoal da diretoria do Flor do Ó se atucanou e, rápido e rasteiro, mandou um pivete levar outro oficio, com novas bases:

Ilmos. Srs.

Diretores do União da Barra do Catimbó

Nós recebeu seu ofício que veio cheio de mumunha. E passamo a responder nessa maltraçada linha. Vocês quer moleza, já vi tudo. Mas a gente não tá a fim criar caso. Só queremos jogar. Vocês podem trazer juiz, que com nós ele não vai ter vida mansa. Se tiver afanando a gente, nosso capitão toma o apito dele e dá pra outro. Nós sabe que na Barra do Catimbó só tem juiz ladrão. Nós não é otário. Mas aceitamos nessa base que botamo aqui. Agora, negócio de bola, vocês traz a bola, nós dá o campo e vocês a bola, cada um dá uma coisa. Se quiser assim, ta combinado.

(Assinado: Olavo Silva, Diretor do Flor do Ó)

Mal o Azulão meteu as botucas no ofício do adversário, segurou o pivete mensageiro e fez com que ele esperasse às pampas para levar outro ofício de volta.

Ilmos. Srs.

Diretores do Flor do Ó

Juiz ladrão tem é no bairro de vocês. Tudo abafador. Nós manja a negada daí. E não adianta vir com grupo pra cima da gente, que a gente não é trouxa e não vai entrar no truque do papagaio enfeitado da Freguesia do Ó. O juiz que a gente leva pra apitar o jogo apita até o fim e não adianta estrilo de capitão fajuto. Se nós leva o homem nós garante ele, nisso vocês pode botar fé. E no negócio da bola não tem arrego: vocês dá a bola. Agora, se vocês quer arranjar desculpa pra não jogar é problema de vocês. Nós foi convidado. Aceitamo porque nós não tem medo de ninguém. Na bola e no pau nós somo mais nós.

(Assinado: Eldócio Pereira, o Azulão, Presidente do União da Barra do Catimbó)

Ilmos. Srs.

Diretores do União da Barra do Catimbó

Nós vem por meio dessa mal-traçada linha avisar que não aceita esculacho de ninguém. Ladrão é vocês desse pedaço fedorento. Nós aqui é trabalhador. E dentro do campo quem fala mais alto, o único que chia é o capitão do time e se ele resolver tirar o pilantra que vocês botaram pra apitar pode contar que ele tira, porque a gente dá a maior moral pra ele. No negócio da bola, vocês tem que trazer a de vocês, que a bola da gente tá com bexiga e pode estourar.

(Assinado: Olavo Silva, Diretor do Flor do Ó)

A diretoria do União, presidida pelo Azulão, não era de engolir desaforo. Por isso, mal acabaram de ler o ofício, se bronquearam e azedaram mais na resposta.

Ilmos. Srs.

Diretores do Flor do Ó

A Barra do Catimbó não é bairro de ladrão, a mãe de vocês não mora aqui. Gaturama é a patroa daí. E a gente não quer levar a bola nossa porque sabe que vocês vai querer roubar ela. A negada do Democrata contou pra gente que quando foi jogar aí a bola deles caiu na vala e vocês enrustiram e eles voltaram sem bola. Nós não entra nessa. Deixa de ser fominha e bota a bola que vocês afanaram do Democrata em campo.

(Assinado: Eldócio Pereira, o Azulão, Presidente do União da Barra do Catimbó)

Esse ofício do Azulão revoltou a turma do Flor do Ó e eles, naturalmente, enviaram um pra acabar com a graça:

Ilmos. Srs.

Diretores do União da Barra do Catimbó

Nós não afanou bola de ninguém. Nós não ia se sujar por tão pouco. O Democrata apanhou na bola e nos tapa e por isso ta fazendo fuchico. Agora, vocês fizeram mal em meter a mãe no meio disso. Quando derem as fuças por aqui, vão ter que engolir isso. Porque jogo só vai ter se vocês trusser bola. Ladrão pensa que os outros é ladrão, mas nós não é. Pode trazer a bola sossegado.

(Assinado: Olavo Silva, Diretor do Flor do Ó)

Por fim, o Azulão mandou um ofício definitivo:

Ilmos. Srs.

Diretores do Flor do Ó

Nós não vai porque não vai deixar ladrão roubar nossa bola. Mas quando vocês quiser dar a bola, a gente vai. Quanto esse negócio de engolir o ofício da mãe de vocês, nós duvida e faz pouco. Tamos aqui pra qualquer coisa. Se vocês tem medo de vir aqui, pode esperar que a gente se encontra nas quebradas.
(Assinado: Eldócio Pereira, o Azulão, Presidente do União da Barra do Catimbó)

Por essas e outras, o União da Barra do Catimbó e o Flor do Ó ficaram sem jogo.

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