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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - OS IMIGRANTES - 2012
Os imigrantes - 2012 [5 - Sírio-libaneses]

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Trinta anos depois da primeira série de matérias, o jornal A Tribuna iniciou em agosto de 2012 uma nova série Os Imigrantes, abordando em páginas semanais as principais colônias de migrantes estrangeiros estabelecidas em Santos. Esta matéria foi publicada no dia 10 de setembro de 2012, na página A-8:


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No comércio, a chave da vitória

Para cristãos ou muçulmanos, o pendor mercantil falou mais alto no jogo da sobrevivência e da inserção cultural

Ronaldo Abreu Vaio

Da Redação

Eterno e Vitório são irmãos. Em seus nomes, traduzidos do árabe, carregam um resumo do que foi a trajetória de seu pai, que saiu do porto de Beirute, no Líbano, em 1959, rumo a Santos. Aqui, a vitória a ser conquistada era na árdua batalha por uma vida melhor. Mas, vida transitória, a permanência nem de longe era cogitada como eterna. "A maioria dos libaneses vinha para cá pensando em ganhar dinheiro e voltar", conta Vitório, ou melhor, Fauzi. A seu lado, o irmão Eterno –diga-se Khaled – concorda. Hoje, os dois são herdeiros de uma tradição cuja face material são quatro lojas de móveis, conhecidas como Novo Macuco.

E esse novo Macuco foi construído pelo pai deles, Said Mohamad Abdul Rahim. Ele veio sozinho, aos 17 anos, seguindo um fluxo que remontava ao século 19, quando os primeiros sírios chegaram a Santos. Ao contrário das levas iniciais, de cristãos ortodoxos, a partir da Segunda Guerra a maioria desses imigrantes era muçulmana. Mas, o que fossem, deixaram as diferenças religiosas de lado e construíram uma teia de solidariedade que transformou a colônia quase que em uma grande família. O Clube Sírio-Libanês, fundado em 1952, foi um marco da reunião de cristãos e muçulmanos na Cidade. "Acho que, por estar longe da terra, não havia espaço para assuntos político-religiosos. Quando se reuniam, falavam dos hábitos, dos pais, dos avós", comenta Khaled.

Assim, apenas três dias depois de descer no porto de Santos, Said recebeu de um brimo a mesa ajuda que este já tivera tempos antes, quando chegara a Santos: um primeiro lote de roupas de cama, para mascatear. O pendor ao comércio, aliás, é uma bem conhecida marca dos sírio-libaneses e talvez seja uma herança de alguns de seus antepassados, os fenícios – povo de hábeis mercadores da Antiguidade.

Carregando uma mala pesada sob o sol tropical, lá foi Said pelas ruas do Macuco, batendo de porta em porta para vender suas roupas. Detalhe: ele não falava uma sílaba de português. As compradoras geralmente eram donas de casa atarefadas, também conhecedoras da linguagem mímica universal. O problema era quando os filhos atendiam à porta. Para essas ocasiões, buscava socorro em duas palavras árabes: chams, que quer dizer sol, e may, que significa água. O truque foi ensinado pelos brimos. "Ele falava as duas palavras juntas, rápido, chams'may. Soava como se fosse 'chama a sua mãe'", sorri Khaled. Mesmo enrolada, a comunicação deu certo: poucos anos depois, já abria a primeira Novo Macuco, na Avenida Afonso Pena.


Khaled, Fauzi e o café árabe, servido do racuy (espécie de bule) nas funjen (xícaras sem alça). Não é usado coador: em água fervente, coloca-se primeiro o cardamomo, sementes da família do gengibre, para dar gosto à bebida; a seguir, adiciona-se o pó de café

Foto: publicada com a matéria

Kafta com feijão – Fauzi e Khaled têm três filhos cada um e mais quatro irmãos. Vencida a batalha por uma vida melhor, o pai, já avô, construiu um prédio para que toda a família morasse junta – um núcleo em cada andar. E, até ali, a hierarquia muçulmana foi mantida: a cobertura do edifício coube ao patriarca Said.

Nesse aspecto, seguindo à risca os preceitos culturais, todos os filhos casaram com descendentes de libaneses da mesma religião. "Existe a tendência de o árabe casar com outro por causa do choque cultural, mas não é proibido casar com brasileiro", comenta Fauzi. Do casamento à língua: uma das principais marcas de uma cultura, jamais foi esquecida pelos sírio-libaneses. Na família de Said, de segunda a sexta-feira à noite, depois da escola regular, os filhos recebiam aulas de árabe por duas horas.

Mas nem tudo pode – ou deve- permanecer intocado. Pelo bem dos filhos na nova terra, os rígidos papéis sociais de homens (os provedores, comerciantes) e mulheres (as mães e donas do lar) na religião muçulmana foram flexibilizados. As filhas dos sírio-libaneses estudaram e se formaram. Os filhos também. E todos ficaram um pouco mais distantes da lojinha e um tanto mais próximos do Brasil.

A família ainda se deleita com os pratos típicos da terra natal, o homus, o charuto de arroz e carne em folhas de repolho ou de parreira. Mas já não seria um crime misturar a kafta – espécie de almôndega de carne de boi ou de ovelha – a um prato de feijão. Porém, quibe com catupiry ainda é algo que faria "minha avó se revirar no túmulo", como diz Khaled.

Por outro lado, ele não se sente menos muçulmano por não levar sua filha na escola vestindo a burca. Como também não vê empecilho em deixá-la dormir na casa de colegas ou participar de excursões – como aconteceu com eles próprios, em sua infância. E a tristeza de Natais sem presente – os muçulmanos não comemoram a data – é coisa do passado.

Hoje, Fauzi tem 45 anos, e Khaled, 39. Os embates entre o mundo lá fora e o dentro de casa ficaram para trás. Eles vivem a cultura de sua família. Sem ela, não seriam o que são: brasileiros de fato. Por essa saga de vida, Fauzi define os libaneses como "guerreiros". Mas uma outra boa descrição talvez esteja encerrada no nome de seu pai. Em árabe, Said quer dizer feliz.


Masbaha – Objeto similar a um rosário, com 33 ou 99 contas. Pode ser em vários materiais: madeira, marfim, sementes e plástico. É usado em orações espontâneas ao longo do dia, evocando versos do Alcorão – o livro sagrado muçulmano.

Foto: publicada com a matéria

Por que os sírio-libaneses são chamados de turcos? – No Oriente Médio, havia apenas um grande país chamado Síria, que permaneceu sob o domínio da Turquia do século 16 ao fim da Primeira Guerra Mundial. Os pioneiros aportavam no Brasil com passaportes turcos. Daí, o hábito de chamar assim os árabes.

Depois disso, em 1918, a Inglaterra e a França dividiram o antigo território da Síria em vários países: a atual Síria e o Líbano – sob o domínio francês – e o Irã, o Iraque, a Palestina e a Jordânia, comandados pelos ingleses.


Foto: publicada com a matéria

Imigrantes ao quadrado – A guerra não é uma pátria, mas muitas. Ou nenhuma. Malak Mlatisoma e Ahmed Hamdi Bouchnak são primos. E foi a guerra quem decidiu que eles seriam sírios, quando desterrou a avó de ambos da sua terra, a Rússia. Era 1917. A família teve a fazenda de castanhas desapropriada pelo novíssimo governo comunista e migrou para a Bulgária. A avó de ambos conheceu então quem seria o seu marido. Vivia-se em meio à Primeira Guerra Mundial, e tampouco na Bulgária a situação era das mais seguras.

A avó, casada, mudou-se com o marido para a Turquia, onde teve a primeira filha: a mãe de Ahmed. Muçulmanos, foram tentar na Síria uma vida mais tranquila. Lá, o casal teve mais um filho: o pai de Malak. Ela, por sua vez, aos 14 anos, casou-se com um imigrante muçulmano da Bósnia, quase 20 anos mais velho.

Em 1948, a Síria entrou em guerra com Israel, e as coisas ficaram difíceis. Imigrar mostrou-se a única saída. A Cruz Vermelha ofereceu três opções: Canadá, Austrália e Brasil. Os dois primeiros recusaram o casal, por causa de uma má-formação na mão do marido de Malak. Assim, em 1954, desembarcaram em São Paulo.

"Que bom que acabamos vindo para cá. Eu gosto muito", diz ela, em um português perfeito. Depois de um período na Capital – o marido, padeiro, trabalhou em uma panificadora de alemães -, mudaram para Santos, em 1966. Abriram uma pensão de estudantes no Boqueirão, onde hoje é o restaurante Recanto Drika – o nome do rio que banhava a cidade onde o marido nasceu, na antiga Iugoslávia.

No final dos anos 60, foi a vez do primo Ahmed imigrar. Tenente do Exército sírio, disse adeus após participar da batalha nas colinas de Golã, na fronteira Sul da Síria. "Não queria aquilo, de matar ou morrer". Entrou em contato com a prima Malak, que o acolheu. Aqui, casou-se e teve uma filha.

O tempo passou, as vidas tomaram o seu rumo, as mortes chegaram: há 13 anos, Malak ficou viúva. Do passado, lá longe, ainda perduram as grandes reuniões em família, especialmente nas festas religiosas. Uma das maiores, o encerramento do Ramadã. Nesses dias, a mesa é farta, não faltam o cabrito assado, o tabule, o charuto, as nozes, as tâmaras, o damasco seco e os doces sírios, de pistache ou amêndoas. Sim, eles são árabes muçulmanos. Mas, sobretudo, são homens. "A gente olha para o coração. Seja muçulmano, cristão, budista, o importante é o espírito", comenta Ahmed.


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Árabes cristãos – Quando se fala em árabes, pensa-se logo em islamismo. Mas cerca de 10% da população da Síria e do Líbano é de cristãos. E, curiosamente, os primeiros imigrantes árabes em Santos eram sírios e católicos ortodoxos. Anos depois, foram eles os principais responsáveis pela construção da Igreja Católica Ortodoxa, que até hoje está na Avenida Ana Costa, 323.

"Eles se reuniam para fazer campanhas. Um patrício de São Paulo foi quem comprou o terreno e o doou", conta Cristóforo Kabbach, filho do imigrante Michel Kabbach, que esteve diretamente envolvido na construção do templo. Porém, antes de qualquer coisa, essas pessoas eram todas árabes. Por isso, ainda em 1904, foi fundada a antiga Sociedade Beneficente Síria, na Rua Amador Bueno, 260, no Centro. Nela, havia aulas de árabe e assistência social aos imigrantes, independentemente da religião. "Todo sírio que chegava, os membros da Sociedade faziam uma visita, para oferecer algum tipo de ajuda". A entidade não existe mais. Mas tem coisas que não passam. Para Kabbach, o amor à música árabe, herdado do pai, é uma delas. Em um dos versos de que mais gosta, uma lição para qualquer um. "Coitado daquele que não respeita a Deus e maltrata os outros".

República do Líbano

Capital - Beirute

População - 3.971.941 (2010)

Língua oficial- Árabe

PIB - US$ 61,44 bilhões (2011)

Renda per Capita - US$ 15.522 (2011)

IDH - 0,739 (2011) – elevado

Data nacional - 26 de novembro de 1941 (Independência da França)

Colônia na região - os libaneses e seus descendentes em Santos somam 10 mil pessoas. Na Baixada Santista, 50 mil, segundo estimativas da Sociedade Beneficente Islâmica do Litoral Paulista.

República Árabe da Síria

Capital - Damasco

População - 22.517.750 (2010)

Língua oficial - Árabe

PIB - US$ 107,3 bilhões

Renda per Capita - US$ 4.665,00

IDH-  0,632 (2011) – desenvolvimento médio

Colônia na região - Em Santos, os sírios e seus descendentes somam 7 mil, segundo a Sociedade Beneficente Islâmica do Litoral Paulista. Na Baixada, eles são 30 mil.

Respeito e religiosidade

"Por pior que tenha sido o dia, agradeço a Deus, sabendo que amanhã será melhor (…). Se falta respeito em casa, não tem mais nada".

Ali Said Taha, libanês, há 54 anos no Brasil


Foto: publicada com a matéria

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