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ROTA DE OURO E PRATA
Histórias: o porto de Santos em julho de 1900

Artigo publicado no jornal A Tribuna de Santos em 3/11/1994:

José Carlos Rossini
Colaborador (de Genebra, Suíça)

Na virada do século XIX para o século XX, o perfil da navegação mundial já havia sido totalmente modificado pelo impacto do aparecimento da máquina a vapor como meio de propulsão marítimo.

Em 1900, cinquenta anos após a criação das empresas pioneiras de navegação a vapor, o mapa do mundo já apresentava uma série impressionante de linhas marítimas servidas regularmente pelas grandes embarcações de casco de ferro e altas chaminés fumacentas; o comércio internacional expandia-se a ritmos até então inimagináveis e a humanidade entrava no século das máquinas.

O poderoso Império Britânico, espalhado pelos quatro cantos do globo terrestre, exercia sua influência expansionista e a Grã-Bretanha, com a cidade de Londres como sua grande capital, era a nação mais desenvolvida em todos os sentidos: tecnológico, financeiro, industrial, social, naval e mercante. Frente a essa superpotência da época, as outras grandes nações procuravam não perder muito terreno na corrida do desenvolvimento e do progresso.

Para se ter uma boa idéia do que representava então a Grã-Bretanha (formada da união entre a Inglaterra, a Escócia, o País de Gales e a Irlanda do Norte), basta citar o fato de que, juntas, as outras três grandes nações européias da época - a Alemanha, a França e a Itália - não alcançavam o Produto Interno Bruto (PIB) daquela nação insular.

Os Estados Unidos da América estavam ainda num estágio balbuciante de crescimento, bem como os outros países do continente americano (Argentina, Brasil, Chile). Dos países da África e da Eurásia, só o Japão possuía condições de poder rivalizar em comércio e expansão com as grandes nações européias.

 

Em 1900, o porto de Santos se beneficiava dos recursos do cais linear

 

Planos alemães - O kaiser Guilherme II, da Alemanha, que era o imperador da nação mais poderosa em terra firme, em termos militares, havia decidido, no crepúsculo do século XIX, fazer de seu país uma potência imbatível também no plano naval.

A Alemanha, com pouco litoral a ser definido, tinha acesso aos mares do planeta somente através do Canal da Mancha ou das passagens marítimas entre o Mar do Norte e o Atlântico Norte, passagens estas que estavam sob o controle de fato da Grã-Bretanha.

Tal decisão do kaiser implicava, portanto, a noção de que a Alemanha deveria construir uma frota de guerra tão poderosa quanto a da Grã-Bretanha, e que a Alemanha deveria sair de seu relativo isolamento continental para conquistar influência decisiva em países de outros continentes, sobretudo naqueles que se encontravam às margens dos oceanos e próximos às grandes rotas de navegação comercial. Para a realização desses dois fatores, a Alemanha teria que despender todos os seus recursos financeiros e mobilizar as forças produtivas do país num gigantesco esforço.

Para a Grã-Bretanha, tal decisão alemã e o início de sua realização significavam também o prelúdio de uma era de planificação estratégica global, com todas as conseqüências inerentes ao fato.

Nenhuma outra decisão política influenciou tanto o decurso dos primeiros 50 anos do século XX. Suas conseqüências mais imediatas foram a aliança política entre a França e a Rússia, a maior aproximação entre os Estados unidos e a Inglaterra em termos de colaboração geral, a neutralização dos países escandinavos, da Bélgica e da Holanda, além do nascimento de lutas políticas intestinas nos jovens países ou colônias da África, Ásia e América Latina.

A aplicação desta decisão geo-estratégica da Alemanha culminou no deflagrar da Primeira Guerra Mundial - que, por sua vez, deu origem ao forte sentimento nacional-socialista (nazista) encarnado na pessoa de Adolf Hitler, sua ascensão ao poder e, quase que inevitavelmente, ao eclodir da Segunda Guerra Mundial, em 1939.

 

O kaiser quis fazer uma Alemanha imbatível também no mar

 

Competição mundial - Em 1901, a grande competição tecnológica em escala mundial já apresentava seus frutos iniciais, e nesse mesmo ano a White Star Line recebeu o Celtic, o primeiro grande transatlântico a superar a marca de 20 mil toneladas de arqueação bruta.

Datam também da virada do século XIX-XX outros grandes navios que marcaram história e que foram produtos típicos desse primeiro período da corrida estratégica e tecnológica, originada pela decisão do kaiser da Alemanha.

Assim, apareceram, no arco de cinco anos, entre 1896 e 1901, cerca de 65 grandes transatlânticos, todo com tonelagem superior a 10 mil toneladas, dentre os quais os dez da classe Barbarossa (da Alemanha), os seis da classe vapores expressos (também da Alemanha), os nove grandes da White Star Line (da Inglaterra) e, além do já mencionado Celtic, o Cedric e o Oceanic, este último medindo 215 metros de comprimento e com 17.274 toneladas de arqueação bruta.

 

No ano de 1900 registrou-se a entrada de apenas 700 navios em Santos

 

Em julho de 1900, para grande alegria do kaiser Guilherme, o recém-construído transatlântico da Hamburg-Amerika (Hapag), Deutschland, conquistava a famosa Blue Ribbon (Fita Azul), realizando, na sua viagem inaugural, a passagem mais veloz do Atlântico Norte, entre Eddystone (Inglaterra) e Sandy Hook (Estados Unidos), a uma velocidade média de 22,4 nós (41,5 quilômetros horários). Nos meses seguintes, o Deutschland quebraria seu próprio recorde por bem mais sete ocasiões!

Nenhum desses 65 gigantes fora construído para servir à Rota de Ouro (Brasil) e Prata (Argentina), rota essa que era marginal para as grandes potências marítimas e suas empresas de navegação.

O maior navio em absoluto que freqüentava então os portos da costa Leste da América do Sul (provindo da Europa) era o francês Atlantique, de 6.478 toneladas e 148 metros de comprimento, com capacidade para 720 passageiros de classe.

 

A competição tecnológica deu primeiros frutos já no início do século XX

 

Santos - Em 1900, o porto de Santos já se beneficiava do cais linear que ia da altura da Estação Ferroviária da São Paulo Railway (atual Armazém 1) até o início do Paquetá (atual Armazém 8) e tinha obras em andamento para novo trecho, até a chamada Curva do Paquetá.

Existiam então sete armazéns entregues ao tráfego, entre uma faixa destinada ao serviço de cais de 35 metros de largura e uma rua paralela ao cais, de 20 metros de largura (a Xavier da Silveira).

A faixa destinada ao serviço de cais possuía três linhas de trilhos onde, na primeira, corriam os guindastes de carga e nas outras duas, os vagões para carga e descarga. Estes trilhos, naturalmente, encontravam-se ligados ao pátio da São Paulo Railway, ao lado da estação de passageiros.

Os guindastes em operação, de fabricação inglesa, tinham diferentes capacidades e sistemas, para pesos de 6 a 20 toneladas, fixos ou móveis, com propulsão de movimento a vapor ou hidráulicos.

A muralha do cais era de concreto, alvenaria e cantaria com altura de 1,5 metro acima da maré máxima. Do lado de mar, o fundo era então dragado à profundidade mínima de sete metros.

O Armazém de Bagagem de então situava-se onde é hoje localizado o Armazém 5, em frente ao qual atracavam os navios de passageiros da época. Do outro lado da rua, destacava-se o belo edifício da Velha Alfândega.

Próximo a esse ponto do cais, encontrava-se também o serviço de lanchas que ligava a cidade santista até a outra margem do estuário, de onde os habitantes e visitantes da região se dirigiam por estrada de terra até as praias de Guarujá.

A forte diminuição da corrente migratória européia, provocada por restrições políticas nos países de origem - acontecimento este iniciado por volta de 1896 -, fez com que o movimento de navios aportados em Santos decrescesse em paralelo e, em 1900, registrou-se o menor número de entradas nos 100 anos relativos ao período 1895-1994. Foram somente 700 os movimentos de atracação, contra os 1.200 do ano de 1896!


O transatlântico Minas foi construído em 1891 pelo estaleiro italiano G.Ansaldo, de Sestri Ponente

Navios importantes - No registro de entradas do mês de julho de 1900 figuram nomes de transatlânticos que marcam a história da navegação mercante das diversas bandeiras, freqüentando a Rota de Ouro e Prata. Se não, vejamos.

No início do mês, atracava o Minas, vapor pertencente à empresa italiana Ligure Brasiliana, cujo agente em Santos era a A. Fiorita & Cia., com escritório na Rua Visconde do Rio Branco. Esta companhia também representava a poderosa armadora peninsular Navigazione Generale Italiana, que naquela época utilizava diversos navios na rota para o Brasil e o Prata, como o Washington, o Manilla, o Bormida, o Paraguay e o Gottardo.

A Ligure Brasiliana havia sido fundada em Gênova (Itália) em 1897, pelo senhor Giulio Gavotti, sobre os escombros jurídicos de uma outra armadora, a Ligure Romana (esta última pertenceu a Gustavo Gavotti, deputado no Parlamento italiano e irmão de Giulio). Foram os irmãos Gavotti os primeiros armadores italianos a perceber o potencial interessante de uma ligação marítima entre a Itália e o Norte do Brasil.

Os vastos territórios da região do Amazonas podiam representar um novo mercado pleno de promessas, sobretudo porque, na virada do século XIX-XX, a borracha havia feito de Manaus uma cidade rica e opulenta, onde se faria fortuna com a mesma rapidez que em São Francisco (EUA), eldorado dos garimpeiros de ouro do século XIX que demandavam à Califórnia.

O Minas, construído pelo estaleiro G. Ansaldo, de Sestri Ponente, em 1891, era um vapor de 2.964 toneladas de arqueação bruta. Havia iniciado sua carreira sob o nome de Michele Lazzaroni, por conta do armador romano Bartolomeo Mazzino.

Este, utilizando então de subsídios governamentais para o desenvolvimento da indústria naval, ordenou a construção de três navios gêmeos que foram colocados em 1892 na linha de emigrantes para o Brasil e o Prata. O primeiro destes foi o Michele Lazzaroni, o segundo recebeu o nome de Giulio Cesare e o terceiro foi batizado Re Umberto.

 

O valente vapor Minas trazia imigrantes italianos para o porto santista

 

No ano seguinte, o Michele Lazzaroni foi transferido para a propriedade da Ligure Romana, e seu nome mudado para Remo. Em 1894, ele foi afretado pelo armador Giacomo Cresta, de Gênova, e, juntamente com o Giulio Cesare, realizou algumas viagens até Belém. Por ocasião dessas viagens pioneiras entre a Itália e a Amazônia, os dois vapores receberam respectivamente os novos nomes de Pará e Maranhão.

Eis, pois, aqui o Minas atracando no armazém 7, em 5 de julho de 1900, procedente de Gênova, com imigrantes a bordo; três dias mais tarde, levantava a âncora para Gênova e Nápoles (Itália), com transbordo de passageiros para Marselha (França) e Barcelona (Espanha).

Este valente vapor de pequenas dimensões freqüentou durante anos o cais santista, transportando milhares de emigrantes que pisaram o solo brasileiro e o argentino para uma nova vida.

Estes homens, vindos da Europa, acompanhados, às vezes, por sua esposa e filhos menores, tinham como bagagem uma ou duas malas de pertences e a alma repleta de esperanças.

Em fevereiro de 1916, torpedeado no Mediterrâneo, quando servia como navio auxiliar da Marinha Italiana, o Minas chegou ao fim de sua longa carreira.

 
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