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HISTÓRIAS E LENDAS DE CUBATÃO - CUBATÃO EM... - 1839 - BIBLIOTECA NM
1839-1855 - por Kidder e Fletcher - 25

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Em meados do século XIX, os missionários metodistas estadunidenses Daniel Parrish Kidder (1815-1892) e James Cooley Fletcher (1823-1901) percorreram extensamente o território brasileiro - passando inclusive por Santos e por Cubatão em 1839 (Kidder) e 1855 (Fletcher) -, fazendo anotações de viagem para o livro O Brasil e os Brasileiros, que teve sua primeira edição em 1857, no estado de Filadélfia/EUA.

Kidder fez suas explorações em duas viagens (de 1836 a 1842), e em 1845 publicou sua obra Reminiscências de Viagens e Permanência no Brasil (leia), sendo seguido por Fletcher (a partir de 1851), que complementou suas anotações, resultando na obra O Brasil e os Brasileiros, com primeira edição inglesa em 1857 e sucessivamente reeditada.

Esta transcrição integral é baseada na primeira edição brasileira (1941, Coleção "Brasiliana", série 5ª, vol. 205), com tradução de Elias Dolianiti, revisão e notas de Edgard Süssekind de Mendonça, publicada pela Companhia Editora Nacional (de São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Porto Alegre), publicada em forma digital (volume 1 e volume 2) no site Brasiliana, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ - acesso em 30/1/2013 - ortografia atualizada - páginas 234 a 282 do volume 2):

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O Brasil e os Brasileiros

Daniel Parrish Kidder/James Cooley Fletcher

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Pernambuco (Recife)

Imagem: reprodução da página 248 do 2º volume da edição de 1941, da Cia. Editora Nacional

Capítulo XXV

Viajando para o Norte

Para o Norte! Deixando a agradável cidade da Bahia, voltamos novamente a nossa frente na direção do Amazonas. Nosso navio corre rapidamente sobre o mar equatorial e, se bem que visitemos sucessivamente província após província, não nos podemos demorar em nenhuma delas o suficiente para conhecer seus aspectos e costumes que, todavia, são muito semelhantes aos das pequenas divisões do Império que já tivemos ocasião de tratar.

A monotonia da viagem é quebrada pelo som trêmulo do violão, cantando alegremente, e por expressões de eloquência; temos a bordo embriões de estadistas: oficiais do exército, de solenes bigodes e altissonantes títulos; estudantes de Medicina de volta a Sergipe, Alagoas, Pernambuco e Paraíba; espirituosos, pálidos e sujos sertanejos; senhoras de olhos negros; e dois ou três padres tonsurados, que muito apreciam o jogo.

Todos formam um exaltado auditório; os apoiados, apoiadíssimos, ditos em voz alta, encorajam os inúteis esforços dos oradores, e enganam o tempo que se passa percorrendo ao longo do litoral baixo, coberto de coqueiros.

Um nevoeiro que se levanta no horizonte distante indica a foz do grande Rio São Francisco, e o limite entre as províncias de Sergipe e Alagoas. Sergipe tem população muito escassa mas, na sua porção oriental, cultiva-se grande quantidade de açúcar e tabaco, enquanto que, nos distritos de Oeste, cria-se principalmente gado.

Morcegos

Num outro capítulo, referi-me aos tormentos a que os carrapatos sujeitam os rebanhos; os animais mais jovens têm, em certas regiões, um mais formidável inimigo nos gigantescos morcegos. O criador em grande escala do Noroeste de Goiás diz que não pode tirar resultado da criação de gado por causa da devastação causada entre os seus bezerros por esses demônios de asas, os vampiros.

Tive várias vezes o meu cavalo ou a minha mula, mordidos e sugados por esses sanguinários phyllostomina. Abundam do Paraguai ao istmo de Darien; e a narrativa dos primeiros viajantes e a linguagem figurada dos poetas, por tanto tempo desacreditadas, foram posteriormente tidas como muito mais próximas da verdade do que se acreditava.

Manhãs seguidas vi animais de carga, fortes na véspera, começarem a cambalear devido à perda de sangue retirado durante a noite por esses terríveis monstros. Em quase todos os casos, eles sugam o líquido vital entre os dois flancos do animal e, quando terminam sua tarefa assassina, a torrente de sangue continua a correr ainda por algum tempo. As extremidades são, no entanto, os pontos comuns de ataque; e as orelhas do cavalo, os dedos do pé do homem e a crista do galo são os pontos de escolha para as demonstrações das tendências sangradouras dos vampiros.

A exata maneira pela qual os morcegos agem para fazer uma incisão tem sido de há muito assunto de discussão e conjecturas. A língua, que é capaz de assumir grande comprimento, é dotada em sua extremidade de numerosas papilas, que parecem dispostas de modo a formarem um órgão de sucção, e seus lábios têm também tubérculos simetricamente distribuídos. São esses os órgãos pelos quais o morcego com certeza retira o sangue do homem e dos animais, e pensam alguns que a língua seja o instrumento empregado para esfolar a pele e assim permitir que mais facilmente retire o seu alimento do animal vivo. Outros supõem que o vampiro emprega os seus longos e afiados dentes caninos para fazer a incisão, que é pequena como se fosse feita por uma agulha fina.

Wallace afirma ter sido mordido duas vezes — uma num dedo do pé, a outra na ponta do nariz. "Em nenhum dos casos, escreve esse explorador, senti coisa alguma, e só acordei depois que a operação terminou. O ferimento e um pequeno orifício redondo, e a saída do sangue e muito difícil de estancar. Dificilmente se trataria de uma dentada, pois essa acordaria a pessoa que está dormindo; parece mais provável que seja ou uma sucessão de leves arranhaduras com a aresta mais aguda dos dentes, gradativamente desgastando a pele, ou uma trituração praticada com a ponta da língua até produzir efeito análogo. Meu irmão foi várias vezes mordido por morcego; e a opinião dele é que o morcego aplica um de seus dentes caninos na parte mordida e, em seguida fazendo-o girar como se fosse uma verruma, fura um pequeno orifício — servindo as asas do vampiro ao mesmo tempo para abanar o paciente, mergulhando-o em profundo sono. Algumas vezes despertou quando o animal estava agindo e, se bem que, como era natural, o morcego tivesse imediatamente voado embora, a sua impressão foi que a operação se dera da maneira acima descrita".

Muito do que se pode observar no arranjo dental desses phyllostoma tornam essa hipótese plausível. Os dentes molares do verdadeiro vampiro, o morcego-espetro, apresentam o máximo caráter carnívoro, o primeiro curto e quase maciço, os outros agudos e cortantes, terminando em três ou quatro pontas. Não obstante isso, o dr. Gardner, o mais rigoroso dos naturalistas e observadores, é da opinião que o morcego fere a sua vítima de modo inteiramente diferente. Diz ele que: "Tendo cuidadosamente examinado os ferimentos produzidos, em muitos casos, em cavalos, mulas, porcos, e outros animais — observações que foram confirmadas por informações recebidas dos habitantes do norte do Brasil — sou levado a acreditar que o furo que o vampiro faz na pele dos animais é praticado pela garra aguda, em forma de gancho, de seu dedo polegar, e que, da ferida assim produzida, ele extrai o sangue por meio da capacidade de sucção de seus lábios e de sua língua".

Alguns desses morcegos medem três pés entre as extremidades das asas. Há pessoas que não são mordidas por eles, ao passo que outras há que são constantemente vitimadas. O caçador de crocodilos Waterton conta que durante onze meses dormiu sozinho no seleiro de uma casa de lenhador abandonada na floresta e, apesar de os vampiros irem e virem por ali todas as noites, esvoaçando sobre a sua rede, nunca teve o prazer de ser mordido, prazer esse que ele sem dúvida jamais esqueceria se tivesse tido a mesma experiência de Wallace, que escreveu que "um ferimento de morcego na ponta do dedo do pé é muito doloroso, tornando o pé imprestável por vários dias", obrigando-nos a concluir que, excluída a primeira vez pela curiosidade do fato, "ser mordido por um morcego é coisa muito desagradável".

Casos houve no Norte do Brasil em que indivíduos, por quem o morcego mantém grande predileção, deverem ser removidos para outros pontos do país, onde não sejam abundantes os animais sedentos de sangue. Um dos componentes da comitiva de Wallace — um negro velho — era constantemente molestado por eles. Era mordido quase todas as noite e, embora houvesse no mesmo quarto uma meia dúzia de pessoas, era sempre o preferido pela atenção dos vampiros. "
Certa vez", escreve Wallace, "veio ter a nós com uma atitude de desânimo, dizendo que pensava que os morcegos queriam dar cabo dele de vez, porquanto, tendo coberto as mãos e os pés com o lençol, eles desceram para a parte inferior do tecido aberto de sua rede e, atacando as partes mais salientes de seu corpo, haviam-no mordido através dos buracos da calça!"

A sucuruju

Pelo fato de termos enumerado os diferentes insetos, répteis e animais venenosos do Brasil, o leitor, que ainda não haja visitado esse país, será levado a acreditar que não é possível dar um passo aí que não seja a gente amavelmente enlaçado por uma cobra, esquartejado por um jaguar, ou mordido por uma cascavel. Em sua imaginação, cada moita está repleta de bichos-do-pé prontos a introduzirem-se em suas pernas, cada fenda contém um escorpião esperando a ocasião para se esconder em suas calças, e cada poça d'água está cheia de enguias elétricas preparadas para lhe fazer uma chocante recepção.

Posso apenas afirmar que, viajando pelo litoral e pelo interior, nunca fui mais molestado por insetos do que quando estive no Sudoeste dos Estados Unidos e que, com certo cuidado, pode a gente viajar uns cinquenta dias sem experimentar nada mais mortífero do que uma picada de mosquito. As moscas da areia provocam mais queixas da parte dos naturalistas e viajantes que as serpentes, os escorpiões e as centopeias; e no entanto todos esses animais são mais ou menos encontrados no interior. As dificuldades, porém, só parecem intransponíveis de longe; desaparecem quando olhadas corajosamente de frente, e não afetam o turista e o naturalista a décima parte na realidade do que contavam.

Relativamente a esse assunto, poucas palavras ainda podem ser dedicadas à anaconda, a maior representante da família dos ofídios. Confesso que não acreditava no poder e na capacidade desse gigantesco réptil antes de visitar o Brasil, e acredito sem a menor sombra de dúvida que, na opinião de alguns, terei acrescentado algumas páginas às inúmeras "histórias sobre cobras" que correm por aí.

A enorme anaconda (Eunectes murinus) ou sucuruju dos indígenas (cuja representação forma a inicial deste capítulo), habita a América Tropical, e particularmente as densas matas da beira dos rios. A Boa constrictor, a jiboia dos indígenas, é menor e de hábitos mais terrestres. A primeira que vi era um filhote pertencente a um cavalheiro da província de São Paulo. Vi depois outra na província do Rio de Janeiro, medindo 25 pés de comprimento. O sr. Nesbitt, o engenheiro que levou os vapores do governo peruano aos afluentes superiores do Amazonas, informou-me ter matado a tiros, nas margens do Hualaga, uma anaconda que media 26 pés e sete polegadas. Um médico italiano de Campinas (São Paulo) narrou-me a forma pela qual a sucuruju pega a sua presa.

O gigantesco ofídio fica à espreita junto à margem do rio, onde vêm frequentemente matar a sede toda espécie de quadrúpedes. Espera pacientemente até que algum animal fique a seu alcance e, então, com rapidez quase inacreditável, o monstro se atira no pescoço da vítima, enrosca-se nele e esmaga-o até vir a morrer. Depois do infeliz animal ficar reduzido a uma massa informe, pela pressão da cobra, seu destruidor prepara-se para engoli-lo cobrindo-o com uma secreção viscosa. Quando a jiboia engole uma ovelha, começando por segurar-lhe a cauda juntamente com a pata posterior, fica num torpor durante um mês, até digerir a sua enorme refeição, e em seguida sai a caçar uma outra.

O referido médico afirma que a surucuju não tenta deglutir e digerir os chifres, deixando-os pender para fora de sua boca até caírem de podres. Alguns observadores ocasionais têm dito que a jiboia morre após ter engolido um volumoso animal, e que os corvos, que são vistos junto dela, é que o comem; mas o nosso informante declarou-nos que observações cuidadosas têm mostrado que essa afirmação é errônea. Não há dúvida que os abutres acompanham sempre de perto a surucuju, mas é para auxiliá-la a livrar-se das fezes.

Quanto ao crédito que se deva dar à afirmação do dr. B. relativa aos chifres do animal engolido e ao auxílio obstétrico prestado pelos abutres, deixo ao leitor a liberdade de opinar; os fatos são, todavia, incontestáveis no que respeita à capacidade da jiboia para engolir animais cujo diâmetro é muitas vezes superior ao seu.

De todos os exploradores e viajantes cujos escritos tive ocasião de ler, Wallace e Gardner são os mais moderados em seus testemunhos e, principalmente, nada registram que não tenham podido averiguar após pacientes e cuidadosas investigações.

Wallace escreve: "é fato inegável que a jiboia devora bois e cavalos". Na província de Goiás, Gardner visitou a fazenda de Sapê, situada na raiz da Serra de Santa Brida, próximo da entrada de um pequeno vale. Essas plantações pertenciam ao tenente Lagoeira. O dr. Gardner observa que nesse vale e em toda a província, atinge a anaconda enormes dimensões, atingindo às vezes 40 pés de comprimento: a maior que ele viu media 37 pés, mas não estava viva. Foi capturada nas seguintes circunstâncias:

"
Algumas semanas antes de nossa chegada a Sapê", escreve o dr. Gardner, "o cavalo de montaria preferido do sr. Lagoeira, que tinham deixado no pasto que não fica muito distante da habitação, não pôde ser encontrado, apesar de todas as buscas que se deram na fazenda. Pouco depois, um de seus vaqueiros, atravessando a mata que fica na margem de um pequeno riacho, viu uma enorme surucuju suspensa num galho que fica por cima d'água.

"Estava morta, mas tinha evidentemente se afogado numa recente cheia do riacho e, por estar inerte, não fora capaz de se desvencilhar da bifurcação do galho antes de descerem as águas. Foi transportada para uma clareira por dois cavalos, e verificaram que media 37 pés de comprida; ao abrirem-na, acharam dentro dela os ossos de um cavalo, algum tanto partidos e a carne do mesmo meio digerida: os ossos da cabeça nada haviam sofrido. Daí se poder concluir que a jiboia engolira inteiro o cavalo.

"Em todas as espécies de serpentes é prodigiosa a capacidade de deglutição. Tenho visto muitas vezes algumas delas, não maiores do que o meu dedo polegar, engolirem um sapo do tamanho do meu punho; certa vez matei uma cascavel, com perto de quatro pés de comprimento, e de não grande espessura, que havia engolido nada menos de três grandes sapos. Vi também uma cobra muito delgada, frequentadora dos telhados, engolir inteiro um morcego três vezes mais volumoso do que ela.

"Se tal se dá com as espécies menores, não é para admirar que uma espécie que mede 37 pés de comprimento seja capaz de engolir um cavalo, mormente quando se sabe que, antes de o fazer, quebra os ossos do animal enroscando-se em volta do mesmo, e em seguida o lubrifica com uma substância pegajosa, que tem o poder de secretar na boca".

O uistiti

Nos arredores de Sapê abundam os pequenos macaquinhos e, destes, uma espécie de pequeníssimas dimensões, às vezes chamada uistiti (Jacchus auritus), é muito ágil, não lhe faltando certa beleza.

As meninas brasileiras gostam muito de possuir seus animaizinhos de estimação; entre outros, tem grande preferência esse uistiti, que raramente é encontrado fora do Brasil, mesmo entre as melhores coleções zoológicas. Tem o pelo como o da chinchila, e o seu rosto não apresenta o aspecto repulsivo dos demais macacos.

Esses pequeninos animais ficam muito domesticados e dormem sobre o colo ou sobre os ombros de suas donas. Seus gestos são os mais graciosos e rápidos. Dois deles, que um amigo meu enviou para os Estados Unidos, podiam subir as cordas do navio dez vezes mais ligeiro que o mais ágil marinheiro. Se aparecem aves a bordo, eles as caçam de corda em corda, e quando passam por baixo do mastro em que pousou a sua vítima, caem sobre ela com certa precisão.

Nas florestas nativas, são muito apreciadores de insetos, que caçam com grande habilidade. São excessivamente tímidos quando agarrados com brutalidade: um dos dois, a que acima nos referimos, foi atormentado pelos marinheiros e morreu de convulsão em consequência disso. Era de fazer dó ver-se o outro espiando-se num espelho, dando ao nariz uma expressão de queixa e lambendo a sua própria imagem. Eram tão pequenos que uma caixa quadrada de charutos, do tamanho dos havana, podia conter a ambos.

Com grande precaução, o uistiti sobrevivente foi conservado vivo durante todo um inverno do Norte. Seu alimento era pão, biscoito-esponja, maçãs e, de quando em vez, um pescoço de galinha ou um rato.

Era curioso ver como devorava este último. Começava pelo focinho, e cuidadosamente ia separando a pele, para comer os ossos e tudo o mais até chegar à cauda, que era tudo o que deixava no interior da pele. Seu último esforço foi para imitar um eclesiástico, a fim de mostrar-se numa próxima feira. Mas sua boa vontade foi demais para ele: a pobre criatura foi emagrecendo até morrer, depois de sofrer uma série de convulsões, tendo tal fim sido apressado, sem dúvida, pela respiração de seus numerosos visitantes, e pelo escapamento do gás no quarto em que o guardavam; os sensíveis macacos do Jardim Zoológico de Londres também morreram devido a estarem alojados numa sala com aquecedor. Substituíram-na por gaiolas abertas, e seus substitutos escaparam.

Província de Alagoas

Em nossa rota para o Norte, logo depois de Sergipe, temos a província de Alagoas. Seu nome deriva-se dos lagos, ou melhor do braço de mar — onde foi construída a sua velha capital, a cidade de Alagoas. O principal porto marítimo da província é Maceió. Entramos nesse porto, após cerca de 36 horas de viagem da Bahia.

Quando atingimos terra na manhã de nosso segundo dia de viagem achamos a costa muito chata, exibindo aqui e ali uma praia arenosa, ou barrancos de 80 a 90 pés de altura, denominados, devido à sua cor dominante, de Barreiras Vermelhas. Aproximamo-nos tanto dessas falejas que pudemos distinguir perfeitamente a sua estratificação, que semelha camadas sucessivas de tijolos.

A mais bem dotada das ilhas dos mares do Sul dificilmente apresentará mais encantador aspecto que o porto de Maceió. É formado por um recife de pedra, visível na maré baixa, que se estende para o Norte e para o Sul a grande distância em linha reta, parecendo formar um ângulo com a ponta extrema de terra que fica ao Norte. Vista do mesmo local, a praia se volta para dentro, formando um semicírculo. A areia das praias é de uma brancura de neve, como se fossem branqueadas pela espuma das ondas do oceano que incessantemente as lavam.

Um pouco recuada da linha da praia, está uma fila de casinhas brancas, envolvidas por majestosos coqueirais, cujos belos frutos, pendentes de suas folhas multipartidas, parecem joias colocadas entre as plumas de um penacho. Sobre a encosta de uma elevação a alguma distância atrás, ergue-se a cidade, que conta uma população de cerca de seis mil habitantes.

A minha visita a Maceió foi agradabilíssima, ligada como esteve ao fato de alguns simpáticos brasileiros e pessoas de outras nacionalidades desejarem receber a Palavra e transmitirem-me a segurança de que a estada de meu colaborador e antecessor não havia sido esquecida. Um ancião, com lágrimas nos olhos, referiu-se à visita do dr. Kidder e auxiliou-me na disseminação da Verdade.

Maceió armazena grande quantidade de algodão e açúcar, trazidos do interior. Açúcar mascavo de boa qualidade pode ser comprado em Maceió pelo preço de $2.50 por cem pesos, e os produtores acham que podem vender o açúcar com lucro a menos de $2.00.

Essa província, quinze anos atrás, estava num constante estado de agitação; mas, nos últimos dez anos, tem experimentado ininterrupta tranquilidade e progride juntamente com o resto do Império.

Deixando-se Maceió, percorre-se uma costa que de perto se relaciona com a história passada. Diante de nós, está o Cabo de Santo Agostinho, que foi o primeiro ponto do Novo Mundo descoberto ao Sul do Equador.

Estamos percorrendo mares que, outrora, foram navegados pelos dois grandes flibusteiros ingleses Cavendish e Lancaster, que devastaram as cidades da costa brasileira em 1591 e 1593. Por aqui, também, passaram os navios de lord Cochrane e dos Almirantes Taylor e Jewett, os dois primeiros ingleses e o segundo norte-americano a serviço do Brasil que, por sua bravura e habilidade, derrotaram as frotas portuguesas e muito fizeram para implantar o novo regime nas cidades do Norte do país.

Palmares

Para o interior, cerca de 60 milhas de Porto Calvo, existia outrora uma curiosa comunidade, escondida entre coqueirais, tendo um governo regular militar e sacerdotal, conhecida por República dos Palmares. Parece quase um romance, com a sua colônia de escravos fugitivos, perfeitamente organizada, que saía de vez em quando em bandos depredadores, carregando dinheiro e gado, e fazendo cativas as mulheres e filhas dos portugueses, de quem exigiam pesados resgates.

Tinham aldeias e vilas e, além de suas sortidas de piratas, mantinham comércio regular com alguns pontos colonizados do país. Existiram durante sessenta anos e, com o tempo, tornou-se tamanha a sua audácia que lhes teve que ser declarada uma guerra regular, tendo os portugueses durante meses sustentado contra eles a mais séria das lutas a que foram obrigados ao ocidente do litoral.

A pequena Nação foi heroicamente defendida; mas, quando, depois de ter vencido galhardamente a grande superioridade dos portugueses, estes receberam canhões para sitiá-la, a República dos Palmares rendeu-se. Quando não havia mais esperança de resistir, o chefe e os mais resolutos de seus companheiros dirigiram-se ao alto de um grande penhasco que ficava no território dos pretos e, preferindo a morte à escravidão, atiraram-se no precipício — homens dignos de melhor sorte pela sua coragem e sua causa.

Pelas consequências que se lhe seguiram, a vitória lembra a das desumanas guerras da antiguidade. Os sobreviventes, sem distinção de idade e sexo, foram feitos escravos. Um quinto foi escolhido pela Corcia: o resto dividido entre os seus aprisionadores como presa de guerra, sendo aqueles capazes de fugir transportados para pontos distantes do Brasil, ou para Portugal. As mulheres e as crianças ficaram em Pernambuco, separadas para sempre de seus maridos e seus pais.

Pernambuco

Doze horas depois de deixarmos Maceió, as torres e zimbórios de Recife, ou Pernambuco, foram vistas, como em Veneza, surgindo das águas iluminadas pelo sol. Longe, do lado direito, numa elevação escarpada e verdejante, pudemos distinguir o subúrbio denominado Olinda, semelhando um mosaico de torres brancas, tetos vermelhos e palmeiras e bananeiras verdes. Todavia, só vista dessa distância é que encanta a vista; pois Olinda, cujos habitantes já olharam de alto os seus rivais em comércio de Recife, agora está decadente. A escola de Direito, com seus trezentos estudantes, foi transferida para Recife, e essa outrora valorosa capital das colônias equatoriais de Portugal vem decaindo rapidamente.

Olinda merece ser visitada como São Vicente, e as duas devem ser levadas em consideração por exibirem os clássicos remanescentes do sistema colonial português. Olinda, porém, lembra quase tanto os holandeses como os portugueses, sendo conhecida nos anais da Holanda como a antiga Mauricius, sobre a qual o ambicioso conde de Nassau arriscou a sua fortuna e a sua fama.

Quando o viajante se aproxima de Pernambuco, o seu ancoradouro e seus armazéns dão-lhe o aspecto de uma grande cidade comercial, e não mais se impõe ao observador a sua semelhança com a Rainha do Adriático. As águas que ficam para fora do curioso recife, que forma um quebra-mar natural, estão coalhadas de jangadas, ou catamarãs, com suas velas latinas, e os proprietários dessas balsas dançantes parecem estar no mar literalmente "sobre um lenho".

Nosso vapor entrou orgulhosamente no pequeno porto batido pelas ondas, passando junto ao farol todo branco que, tão baixo é o recife, parece erguer-se das águas. Fundeamos junto ao lado do forte voltado para o mar, aguardando ansiosos a visita da Saúde do Porto. Todos os passageiros, do rude matuto e sertanejo ao distinguido médico e ao orgulhoso oficial do Exército imperial, regozijavam-se pela sua próxima libertação.

A embarcação com as autoridades sanitárias chegou balanceando, após ter dado a volta da fortaleza, e tivemos a satisfação de ouvir que teríamos que fazer uma quarentena de dez dias numa ilha situada a quatro milhas de distância da cidade. Não havia, realmente, necessidade disso, pois o boletim sanitário de Maceió não sofrera motivo para alteração.

É desnecessário narrar as nossas aventuras durante essa quarentena; a nossa travessia numa jangada; como 50 pessoas foram alojadas em quatro quartos (que só ofereciam conforto para oito pessoas), o que teria sido insuportável se não fosse a total ventilação através das telhas em forma de calha; como achávamos tudo engraçado e ficamos satisfeitos com as circunstâncias; como fomos retemperados com leite de coco e a brisa reparadora; como eu tive oportunidade de praticar o bem; como fomos todos postos em liberdade e cem outros nos substituíram; e como foi amável a minha recepção (quando pude entrar em Pernambuco) pelos srs. Samuel Johnson e Hitch (diretores de duas igrejas, americanas e inglesa).

Tudo isso deve constituir a história não escrita. Como se disse de uma estada na Itália, deve-se dizer de nossa detenção em Pernambuco que, na linguagem da lógica, não teve causa causans; mas a causa sine qua non é que nos achávamos no Brasil, onde a "efêmera autoridade" dos funcionários é algumas vezes notoriamente soberana.

Pernambuco é a terceira cidade do Brasil, e o maior empório de açúcar do Império. Sua população é diferentemente avaliada em 80 ou 100 mil habitantes. A todos os respeitos, trata-se de uma florescente e progressiva cidade. Quem se recorda de suas primitivas ruas sem calçamento e outras faltas de conforto e bem-estar ficará atualmente surpreendido diante de seus vários melhoramentos e transformações.

Foram feitas obras para fornecimento d'água, construídas boas pontes, bem como um longo cais nas margens dos rios que poderia ser tomado como modelo, na opinião do sr. Hadfield, pelos conservadores do Pai Tâmisa. Oficinas gráficas publicando diários e semanários, além de, de tempos em tempos, obras de respeitável tomo e documentos oficiais. A educação tem merecido cuidados, quer no que respeita as escolas primárias, ou colégios, quer o florescente instituto para o ensino do direito, que rivaliza com o de São Paulo.

A cidade está dividida em três paróquias ou distritos, respectivamente chamados: São Pedro de Gonçalves ou Recife, Santo Antônio e Boa Vista, ligados entre si por pontes e boas estradas.

Peculiaridade das casas de Recife

Muitas das casas de Pernambuco são construídas em estilo desconhecido em outras localidades do Brasil. A descrição de uma dessas casas, onde o meu antecessor foi hospedado por um amigo pode servir de amostra do referido estilo.

Tinha seis andares. O primeiro, ou andar térreo, denominava-se armazém e, à noite, era ocupado pelos empregados do sexo masculino; o segundo serve de instalação para o escritório, etc.; o terceiro e o quarto contém as salas de visita e os quartos de dormir; o quinto, as salas de refeições e o sexto a cozinha.

Os leitores habituados com os assuntos domésticos perceberão a vantagem especial de se ter a cozinha localizada no sótão pela tendência que têm para subir a fumaça e as diversas emanações produzidas pelas operações culinárias. Há no entanto uma desvantagem inseparável desse dispositivo, que é a necessidade de transportar várias coisas pesadas subindo tantas escadas. A água, por exemplo, que na falta de qualquer mecanismo que a possa elevar, tem que ser carregada na cabeça dos pretos. Qualquer um compreenderá que um pequeno descuido, no equilíbrio das vasilhas d'água assim transportadas, expõe as partes inferiores da casa ao perigo de serem inundadas.

Dominando o sexto andar e constituindo, de certa forma o sétimo, existe um esplêndido observatório, de onde se pode contemplar o alto do céu em todas as direções.

A vista desse observatório é ampla e interessante em extremo. É o melhor lugar donde um estrangeiro pode observar para ter uma correta impressão da situação e das redondezas da cidade. Seus olhos, de um posto de observação tão alto, não deixarão de dirigir-se com o maior interesse para a ampla baía de Pernambuco, estendendo-se, com moderada e regular curvatura da costa, entre o promontório de Olinda e o Cabo de Santo Agostinho, trinta milhas abaixo.

Essa baía é geralmente adornada de numerosas jangadas que, com suas largas velas latinas, não fazem um medíocre efeito. Além do comércio do próprio porto, surgem no alto-mar navios vindo de distantes pontos, quer do Norte quer do Sul.

Não há porto de mais fácil acesso. Um navio, proveniente do Oceano Índico ou do Pacífico, ou de regresso à pátria, dirigindo-se para os Estados Unidos ou para a Europa, pode, com um simples desvio de sua rota principal, entrar no porto de Pernambuco.

Pode alcançar o ancoradouro do Lameirão, ou porto externo, e entrar em comunicação com a terra, quer para obter notícias e avisos, quer reabastecimento, e continuar a sua viagem à vontade, sem precisar sujeitar-se às exigências portuárias. Isso é de grande conveniência para os baleeiros e mercadores dos mares do Sul. Para descarregar ou receber carga, os navios devem entrar no interior do recife e conformar-se com os costumeiros regulamentos dos portos.

Os navios de guerra raramente se demoram aqui. Nenhum de grande tonelagem pode transpor a barra, e os que o podem veem-se obrigados — provavelmente por causa do perigo de acidentes quando estão muito próximos da cidade — a depositar na fortaleza a sua pólvora. Poucos comandantes se mostram desejosos de sofrer uma tal obrigação, e também o seu ancoradouro no Lameirão não pode oferecer garantias de tranquilidade e segurança. Os fortes ventos e as pesadas ondas do oceano são frequentemente suficientes para romper os mais resistentes cabos. São razões bastantes para que Pernambuco não seja uma preferida estação naval, quer para o Brasil quer para as demais nações.

O ancoradouro comercial está inteiramente sob as vistas do nosso observatório, porém muito próximo e densamente acumulado de embarcações para constituir um imponente conjunto.

Olinda

Olinda, vista à distância, deve atrair a atenção e a admiração de todos. Dessa cidade situada sobre uma colina, fica-se embaraçado para saber o que mais admirar, se o branco casario e os sólidos templos, se a luxuriante vegetação no seio da qual as construções na encosta do morro parecem mergulhadas. Desse ponto, corre uma linha de montanhas para o interior formando um arco regular que termina no Cabo de Santo Agostinho e forma um recôncavo em forma de meia-lua, análogo ao da Bahia. As partes mais altas dessa serra são coroadas de vegetação e matas verdejantes.

De fato, da parte mais distante do panorama até o próprio perímetro da cidade, através de extensa planície, circunscrita por cinco sextas partes do arco imaginário, quase não se abre uma saída para os olhos, sendo, entretanto, a região populosa e bem cultivada. Numerosos edifícios são altos, mesmo nos arrabaldes da cidade, e total ou parcialmente escondidos pelas altas palmeiras, mangueiras, cajueiros e outras árvores.

O intervalo entre Recife e Olinda está em berrante contraste com esse conjunto. É um banco desnudado de areia, com uma estreita língua de terra, com um lado banhado pelo oceano e o outro, a poucas varas de distância e perfeitamente paralelo, onde corre um braço do Rio Beberibe.

O "recife"

A uma distância que varia de um quarto a meia milha do litoral, corre o banco de rochedos já mencionado como se estendendo ao longo da maior parte da costa do Norte do Brasil. Sua parte superior é dificilmente visível na maré alta, coberta pelas ondas, que a lavam em lençóis de espuma. Na vazante da maré é posta a seco, e parece uma muralha artificial, com sua superfície suficientemente lisa para formar um belo passeio em pleno seio do mar.

É com auxílio de botes que a gente se aproxima desse parapeito natural. Verificou-se que tem uma espessura de duas a cinco varas. Seus bordos estão um tanto gastos e fraturados, mas de ambos os lados são verticais até grande profundidade. A rocha, pelo seu aspecto exterior, é de cor castanho-escura e, quebrada, verifica-se ser composta de arenito de espécie muito dura de complexão amarelada, em que se acamam numerosos bivalvos em estado de perfeita conservação. Várias espécies de pequenas conchas marinhas podem ser colecionadas nas cavidades superficiais escavadas pelas águas.

Em vários trechos, profundas fissuras sinuosas estendem-se pelo recife afora; porém em geral o aspecto é perfeitamente regular — muito mais regular, sem dúvida, que qualquer muralha artificial seria, se exposta durante centenas de anos ao desgaste das ondas oceânicas. A brusca abertura que se verifica nesse recife, e que permite a entrada dos navios, é tão notável quanto a proteção que lhes garante dentro de seu perímetro semelhante passadiço rochoso.

Em frente à extremidade Norte da cidade, como se uma brecha tivesse sido aberta pelas mãos do homem, o recife se abre, deixando na maré alta uma passagem de suficiente profundidade e largura para embarcações de sessenta pés de calado. É mister, porém, grande perícia para fazê-las entrar com segurança; pois mal se, transpôs o recife, torna-se necessário virar de bordo e navegar bem junto das pedras, para evitar o perigo de ser posto a fundo.

Próximo da abertura e na extremidade do recife fica o forte, construído em tempos passados pelos holandeses. Suas fundações foram admiravelmente feitas, compostas de compridos matacões de pedra, importados da Europa, já aparelhados. Foram colocados ao comprido no mar, e depois presos entre si por pesadas barras de ferro. Uma muralha dessa natureza se estende da base da fortificação até o corpo do recife. Parece ter ficado muito solidamente construída, e aumentada por uma delgada crosta de petrificação sobre ela acumulada. Tal circunstância vem corroborar a ideia de que a rocha, em conjunto, pode estar aumentando de tamanho, como os recifes coralínios das Ilhas do Mar do Sul.

O distrito de São Pedro — também chamado frequentemente Recife — não é grande. A maioria de seus edifícios são de aparência antiga; exibem o velho estilo arquitetônico holandês, e muitos deles conservam ainda seus balcões de madeira trançada, ou gelosias. Essas gelosias eram comuns no Rio de Janeiro na época da chegada de dom João VI. Mas esse monarca, temendo o uso que delas se poderia fazer como esconderijo de assassinos, ordenou a sua retirada; atualmente são raramente vistas na metrópole.

A principal rua do Recife é a Rua da Cruz. Na sua porção Norte, na direção do Arsenal de Marinha, é larga e de imponente aspecto. Na direção oposta, embora flanqueada por altas construções, estreita-se muito, como a maior parte das outras ruas que a interceptam. Uma única ponte liga essa parte da cidade a Santo Antônio, o distrito que fica na parte central.

Santo Antônio é a parte mais bela da cidade. Contém o palácio e o arsenal de guerra, em frente ao qual construíram um novo cais ao longo do rio. Logo acima da linha da margem, colocaram fileiras de bancos pintados de verde para comodidade do público. São convidativos, de manhã e à tarde, embora, pela ausência de árvores sombrias, os raios do sol, batendo sobre a areia sem vegetação torne o calor intolerável durante o dia.

As principais ruas desse trecho da cidade, assim como uma praça aberta, que foi utilizada para praça do mercado, são espaçosas e elegantes. A ponte que atravessa o rio é mais comprida e luxuosa do que a que já descrevemos, embora a profundidade da corrente que passa por baixo dela não seja tão grande.

Na margem Sul ou Sudoeste do rio fica a Igreja Inglesa, numa construção apropriada e decente. Construída em estilo moderno, é geralmente bem frequentada pelos ingleses residentes na cidade, aos sábados, tanto de manhã como de noite. A Boa Vista é muito grande, sendo principalmente ocupada por casas de campo.

Algumas grandes construções se erguem junto do rio, e como a maior parte das que ocupam semelhante posição em outros bairros, são destinadas em parte ao comércio. Fora essas, as casas são geralmente baixas, porém espaçosas, cercadas de jardim, e aqui denominadas sítios. As suas ruas antigamente não eram calçadas, e infelizmente sofrem do mal de permanecerem em péssimo estado. A areia, seca e reduzida a um pó quase impalpável, invade tudo, a não ser quando regada por poças imundas de água parada.

As sebes dos arrabaldes de Pernambuco são parecidas com as do Rio, embora mais regularmente tratadas. Muitas casas exibem um estilo caro e de bom gosto. Mostraram-me uma em cuja varanda estavam dispostas em fila um certo número de estátuas. Sendo o proprietário um rico senhor de escravos, algum gaiato, poucos anos atrás, para lisonjeá-lo ou envergonhá-lo, trepou à noite na varanda e forneceu-lhe nova carregação de escravos, pintando de preto todas as caras de mármore.

Pernambuco manifestou sempre maior atividade que as demais províncias do Norte. Foi a primeira a declarar-se contra o governo português, e várias vezes aí se deram comoções públicas que ameaçaram desmembrá-lo; mas, presentemente, não há província mais fiel. Uma revolta ocorreu em 1848, quando um bando de indigentes vindos do interior juntou-se a alguns descontentes da cidade; os seus chefes, porém, tiveram que se ver com as autoridades, e desde então a província tem estado inteiramente tranquila.

A situação da religião em Pernambuco não difere, como é natural, da que prevalece em outros pontos do Império. Os conventos não têm grande cotação, contando atualmente apenas alguns poucos frades. O hospício dos Barbadinhos ou Capuchinhos italianos foi convertido numa casa dos expostos. Nenhuma igreja se notabiliza pela sua beleza ou esplendor de construção. A de Nossa Senhora da Conceição dos Militares se distingue por um painel singular, cobrindo uma das paredes e que representa a batalha dos Guararapes, comemorando a vitória aí obtida sobre os heréticos holandeses.

Segui os trabalhos evangélicos de meu predecessor, e encontrei algum terreno com que inteiramente não contava para lançar a boa semente. Não há melhor oportunidade do que agora para introduzir a verdade e uma forma purificada de culto nessa parte do Brasil. O que é mister, para esse fim, é um certo número de intemeratos e fiéis pregadores brasileiros.

Através do capelão inglês, o dr. Kidder travou relações com um sacerdote que já se mostrava convencido da necessidade de algumas novas medidas a fim de esclarecer o povo, tendo recentemente tomado parte ativa na disseminação de bíblias e opúsculos. Ele assim registra a sua entrevista:

"
Encontrei esse sacerdote poucos dias depois de minha chegada à cidade. Veio em visita à casa de um amigo em que eu estava jantando e, acontecendo pôr as mãos em alguns dos novos exemplares que eu trazia comigo, manifestou sua grande satisfação, dizendo-me que tinha necessidade de muitas dessas publicações. Em complemento a isso, foi sempre com a maior satisfação que procurou a casa impressora do Rio de Janeiro, circunstância que prova a irradiação de luz que ela emana.

"Essa pessoa devia ter cerca de 50 anos de idade, parecendo-se muito com o ex-regente Feijó, mais do que qualquer outro brasileiro que eu visse. Parte de sua educação recebera no Brasil, parte em Portugal. Já havia sido capelão do presídio de Fernando de Noronha. Devido à sua recente mudança de ideias em vários pontos importantes, sofria grande perseguição do seu bispo e do clero, mas não parecia muito afetado por isso. Sua opinião era que a silenciosa distribuição de folhetos e bíblias entre as pessoas e famílias dispostas a lê-los e rezar por eles, era o melhor meio de se fazer o bem então em todo o país. E seguiu fielmente esse sistema, visitando-me com pequenos intervalos para um novo suprimento de publicações evangélicas.

"Certo dia retribuí suas visitas, e encontrei-o rodeado de uma verdadeira biblioteca, no meio da qual um exemplar da Bíblia atraiu a minha atenção, como tendo sido, durante um ou dois anos, o seu livro. Quase todas as páginas estavam marcadas, contendo algo que de perto lhe interessava. Desejaria que todos aqueles para quem a Bíblia não é um livro raro, que a prezassem tanto como esse padre que, depois de ter gasto a maior parte de sua vida como ministro de uma religião que estava de acordo com o melhor do que até então conhecera, agora, no declínio de sua existência, havia encontrado que a palavra de Deus era 'uma luz para seus pés e uma lâmpada para seus passos'".

Fanatismo no Interior

Em 1838, ocorreu nesta província de Pernambuco uma das mais extraordinárias cenas de fanatismo, servindo de triste prova de que não tem fundamento o gabar-se a Igreja Romana de que semelhantes extravagâncias só se dão em países protestantes.

A seguinte narrativa, resumida de documentos oficiais que tenho diante de mim, pode desafiar paralelo quer na história quer na mitologia. Para que o leitor possa entendê-la completamente, lembro-lhe que existe em Portugal, e até certo ponto também no Brasil, uma seita denominada Sebastianismo. O que distingue a seita é a crença de que dom Sebastião, rei de Portugal que, em 1577, empreendeu uma expedição contra os Mouros da África e, tendo sido derrotado, nunca mais voltou, vive ainda, e está destinado a reaparecer na Terra, quando se tiver realizado tudo aquilo que previram os mais entusiásticos Milerarianos.

Sonhos e profecias sem conta, juntamente com a interpretação de maravilhosos presságios confirmando essas ideias, circularam com tal aprovação do clero, que muitos acreditaram na insensata extravagância. Nem faltaram pessoas que, em várias ocasiões, resolveram efetivar semelhante profecia, provando ser o verdadeiro dom Sebastião.

O primeiro ponto de fé era que este deverá vir de fato e também, como sempre o pensam os crentes, que tal fato se há de dar durante a própria existência de cada qual. Os portugueses aguardam o seu aparecimento em Lisboa, porém os brasileiros acham mais razoável que ele visite primeiro a sua própria cidade, São Sebastião.

Parece que um temível vilão, de nome João Antonio, fixou uma região afastada da província de Pernambuco, perto de Piancó, na Comarca de Flores, para o aparecimento de São Sebastião
[T88]. O local designado era uma espessa floresta, próximo da qual existem duas conhecidas cavernas acroceraunianas. Essa região, afirmava o impostor, era um reino encantado, que estava prestes a ser desencantado, e portanto dom Sebastião deveria dentro em pouco aparecer à frente de um grande exército, cheio de glória, e com o poder de conferir riquezas e felicidades a todos aqueles que aguardaram confiantes a sua volta associando-se ao sobredito João Antonio.

Como se poderia esperar, encontrou adeptos que, passado algum tempo, convenceram-se de que o imaginário reino só poderia ser desencantado quando o seu solo estivesse espargido com o sangue de cem inocentes criancinhas! Na falta de um número suficientes destas, homens e mulheres deviam ser imolados, mas poucos dias depois se ergueriam de novo para se tornarem possuidores das riquezas do mundo.

Parece que o profeta não teve coragem bastante para executar esse plano sangrento; delegou poderes a um cúmplice, chamado João Ferreira, que tomou o título de "Sua Santidade", pôs uma coroa de cipós na cabeça, e exigiu que os prosélitos lhe beijassem a ponta dos pés, sob pena de morte imediata.

A carta oficial do sr. Francisco Rego Barros, ao tempo presidente de Pernambuco, diz que "casou também cada um de seus homens com duas ou três mulheres, com ritos supersticiosos, de acordo com a conduta imoral que tivera em outro lugar". Depois de outros feitos, por demais horríveis para serem descritos, iniciou a matança de criaturas humanas.

Cada pai foi obrigado a oferecer um ou dois de seus filhos. Em vão as criancinhas gritavam e pediam para não serem mortas. O pai desnaturado teria respondido "Não, meu filhinho, não há outro remédio", e oferecia-o à força. No espaço de dois dias, o chefe já havia assim, a sangue frio, imolado vinte um adultos e vinte crianças, quando um seu irmão, invejoso de Sua Santidade, derrubou-o e assumiu o poder. Nessas conjunturas, alguém fugiu do local e comunicou às autoridades civis a terrível tragédia.

Foram enviadas tropas, que se apressaram a chegar ao local; mas os fanáticos Sebastianistas haviam aprendido a não temer coisa alguma, pois um ataque contra eles seria o sinal para a restauração do reino, a ressurreição dos mortos e a destruição de seus inimigos. Por conseguinte, vendo as tropas se aproximarem, lançaram-se sobre elas, soltando gritos de desafio, atacando aqueles que justamente vinham salvá-los, tendo realmente matado cinco e ferido alguns, antes de serem subjugados.

Só se submeteram depois que do seu lado morreram vinte nove, inclusive três mulheres. As mulheres, ao verem os maridos morrerem a seus pés, nada fizeram para escapar, e exclamavam: "Chegou a hora! Viva! Viva! Chegou a hora!" Dos que sobreviveram, alguns poucos escaparam embrenhando-se nas matas, o resto foi feito prisioneiro. Verificou-se depois que as vítimas de tamanha desilusão nem sequer enterraram seus parentes mortos, tão confiantes estavam em sua imediata ressurreição.

Pernambuco está situada na grande saliência oriental que faz o continente Sul-Americano, penetrando no oceano. A sua grande importância comercial de hoje é grandemente devida a essa favorável posição. A cidade não depende em suas relações comerciais com a prosperidade e riqueza da região circundante.

Essa região é o sertão (deserto), termo que se aplica a muitos dos grandes tratos de terras elevadas por onde se estende a província. São planícies contínuas, apresentando pequena elevação sobre o nível do mar, cuja superfície é ligeiramente ondulada, coberta de erva áspera, baixa e franzina, sobre argila ferruginosa crestada, ou apresentando manchas de matas anãs, sendo irregularmente suprida de chuvas e muito escassamente povoada.

Pernambuco exporta anualmente quatro milhões de dólares, através da passagem guardada pelo pequeno forte pouco acolhedor que se vê na extremidade do recife. Meio milhão destina-se aos Estados Unidos. Sua carne e seus couros provêm do gado gordo porém mal domesticado que pasta nos campos (gerais) do distante São Francisco; e grande parte do algodão e do açúcar são provenientes de pontos a trezentas milhas distantes, nas imediações da Vila das Flores e das montanhas de Santa Barbareta — que são as primeiras a oferecer anteparo aos ventos que sopram para oeste, carregados de chuvas, que caem sobre os pequenos vales que sulcam a serra, estendendo-se pelas zonas inferiores.

Há também grande número de plantações de cana-de-açúcar na região por onde passará a projetada estrada de ferro de Pernambuco a Juazeiro. De Recife até o Rio Una — numa extensão de 75 milhas — existem nada menos de 300 engenhos na zona dessa estrada já contratada.


Sertanejos

Imagem: reprodução da página 259 do 2º volume da edição de 1941, da Cia. Editora Nacional

Os sertanejos

Os habitantes mais afastados são tão indomesticáveis como a natureza selvagem em que vivem. As leis são mantidas muito frouxamente. A sociedade é mais patriarcal do que civil. O dono de um engenho ou de uma criação de gado é, praticamente, um senhor absoluto. A comunidade que vive à sombra de tão poderoso senhor constitui o seu séquito feudal; quando alguns desses homens conspiram, estão em condições de reunir no seu campo dezenas de vassalos e partidários, com o que, antigamente, perturbaram mais de uma vez a tranquilidade da província com levantes, que deram grande trabalho ao governo.

As rendas da província, por isso, só podem provir das taxas de importação e exportação. É impossível a cobrança de impostos, por não haver cobradores bastante vigorosos para executá-la. Há poucos anos foi lançado um imposto sobre os rebanhos de gado, e um lançador foi ao sertão a serviço do erário imperial. Foi agarrado, estripado e metido dentro do couro de um boi, com a cabeça saindo para fora. "
Se o imperador deseja comer carne", disseram os sertanejos, "que o seu cobrador vá levá-la".

O provinciano pernambucano, quando vem à cidade, deixando o sertão para a sua feira semestral, desenvolve um notável esforço nesse empreendimento. A estrada principal que vai ter à capital passa perto de Cachingá — asseado lugarejo que fica a duas ou três léguas de Recife. Fica escondida dos olhos do viajante que dela se aproxima por um comprido vale, coberto de laranjeiras e bananeiras.

É a última parada dos sertanejos, antes de chegar ao mercado. Já perfez a cavalo uma viagem de doze dias, empoleirado num par de sacos de algodão, de forma quadrilonga, colocados paralelamente aos flancos do animal, seguido de sua tropa de uns doze cavalos ou mulas, carregadas, da mesma forma, de sacos de algodão ou açúcar. Um macaco, com um tamanco amarrado na cintura, vem montado, em lugar do cavaleiro, num dos animais; um papagaio, com sua respectiva dama, num outro; uma arara, com o pescoço bronzeado e uma como que casaca azul vivo, montando ainda outro. Um pelego de couro cru protege as suas roupas da chuva. Noite após noite dormi sobre a terra, ou suspenso na sua inseparável rede, suspensa entre duas árvores, apenas com o generoso céu estrelado servindo-lhe de coberta.

Cachingá, quieta e silenciosa de dia, torna-se barulhenta à noite; os sertanejos, em suas vigílias, enchem as vendas às centenas. Os primeiros raios da madrugada assistem a uma mistura de homens, cavalos e mulas estrompadas, macacos, papagaios e sacos de algodão e açúcar espalhados pelo chão.

A caravana se põe logo em caminho. Cada sertanejo acorda seus animais, enfarda suas cargas, coloca-se atrás de sua montaria, agarra-lhe a cauda, põe um pé na junta posterior do animal, e pula nas suas ancas como se galgasse um lance de escada. Cada animal conhece a sua obrigação — já estando educado para isso — de colocar-se em seu lugar na tropa.

Num instante a heterogênea cavalgada desce pelo vale do Capiberibe, antes que o sol tenha evaporado as gotas de orvalho, que pareciam brincos pendentes das folhas dos espessos arbustos que se debruçam sobre a estrada. O sertanejo passa adiante, só se descobrindo diante do santo padroeiro de todos os cavaleiros (que está guardado numa caixa de madeira na entrada da ponte de Santo Antônio), e para finalmente, com suas diferentes mercadorias, mais morto do que vivo, na Rua do Trapiche.

Pode-se apreciar agora a figura do sertanejo. Em sua cabeça traz um chapéu de pindoba, com a forma de um pão de açúcar, acostumado a todas as variações do tempo. Sob as abas do chapéu de cada lado cai uma mecha de cabelo, e entre elas aparece, meio sombreado, um rosto magro e bronzeado, de traços portugueses e um olhar misto de curioso e de desconfiado. Veste uma camisa de algodão, com uma espécie de jaleco mal chegando aos cotovelos e desabotoado no pescoço, deixando o peito tisnado a descoberto, o outro caindo até os joelhos. Seus pés estão dentro de alguma coisa que na lista de artigos comerciais a estatística não poderia classificar nem como bota nem como sapatos.

De manhã cedo é a hora de trabalho em Recife. As ruas do comércio de açúcar estão repletas de uma espantosa mistura de cavalos, mulas, burros e sacos de açúcar; os negociantes em açúcar mostram delicadamente as suas amostras; fardos de algodão, cabras em seu passeio matutino acompanhadas de toda a família; e quitandeiras fazendo seu eloquente panegírico dos bolos, doces e laranjas do seu tabuleiro.

E ainda por cima a enchente de cavalos e mulas carregados que entram pela Rua do Trapiche. Os animais deitam-se para descansar, e o sertanejo, fatigado da caminhada da manhã, e antecipando a sesta da tarde, enrodilha-se para cochilar apoiando ao pescoço de sua montaria. Um lenhador, com dois feixes iguais amarrados de cada lado de um burro, rompe à força o seu caminho. É seguido de um vendedor de galinhas montado numa mula, com uma imensa cesta, cujo conteúdo é revelado por compridos pescoços de galinhas esticados para fora, entre folhas de alface.

As araras e os papagaios são os tenores do movimentado espetáculo, enquanto que as trombetas de meia dúzia de burros dão os semitons baixos. No meio dessa Babel de sons, o sabiá — o mais doce da tribo dos cantadores alados do Sul, e rival do tordo e do poliglota do Norte — solta seus cantos apaixonados e melodiosos da janela de sua dona, ao lado de uma igreja toda caiada de branco.

Nenhuma cena de mercado pode exceder em variedade, confusão e interesse a de Recife, na época da safra do açúcar. Antes de meio-dia, os atores mudam: os pretos ganhadores, nus até à cintura, correm apressadamente dos armazéns de açúcar para as barcaças, num trote rápido, seguindo o compasso exato de sua barulhenta música.

Açúcar

Quase todo o Brasil é bem adaptado à cultura do açúcar; porém é na zona litorânea de Campos até o 6º de latitude Sul que dá em maior abundância. A exportação desse produto aumenta anualmente em Pernambuco, e sua produção prospera com os maquinismos aperfeiçoados que foram introduzidos pelos irmãos De Mornay. Em 1821 essa província produziu 20 milhões de libras; em 1853, o total foi de 140 milhões. A importância total de libras exportadas pelo Brasil em 1855 foi 254.765.504 libras, pelas quais os Estados Unidos pagaram mais de 1 milhão de dólares.

O preço comum em Pernambuco é de aproximadamente trezentos por libra para o açúcar mascavo e quinhentos para o branco. Este é exportado para a Suécia e Estados Unidos; grande quantidade do mascavo é enviada para o Mediterrâneo; as consignações para a Inglaterra geralmente levam a palavra "Gowes".

Pernambuco exportou também, em 1864, 19.141.520 libras de algodão para Liverpool. É um algodão de boa qualidade, que consegue alto preço, maior mesmo que o exportado pelos Estados Unidos. Para os quakers da Inglaterra, o artigo brasileiro tem preferência porque, na maior parte, segundo os Irmãos Candler e Burgess, é produzido pelos mestiços livres do interior; acredito que somente pequeníssima porção dele seja proveniente do trabalho escravo.

A Inglaterra importou do Brasil, em 1856, 21.830 milhões de libras de algodão mas, como vimos, Pernambuco só ele exportou em 1864 quase 20 milhões de libras. Em 1854 a exportação de algodão de Pernambuco não era de 3 milhões. A fibra só é inferior à do algodão das ilhas.

As jangadas

O paquete da Brazilian-Mail está à nossa espera. Dissemos adeus aos nossos amigos, e logo depois passamos em frente ao pequeno forte na ponta do recife, de um lado, e do outro os enferrujados canhões do Forte do Brum, e achamo-nos novamente no oceano.

Ao mesmo tempo, umas cem jangadas, ou catamarãs, velejam para as zonas ricas em peixe a grande distância da terra — dez, quinze, vinte, quarenta milhas. Essas curiosas embarcações são compostas de quatro tábuas de uma madeira muito leve, com oito polegadas de diâmetro, unidas entre si, com uma viga colocada por baixo para a quilha e o leme, e uma larga vela latina de cor pardacenta, feita de fibrilas e fixas num mastro tosco. Voa como o vento, e o clipper — veloz corredor dos mares — não pode vencê-la na carreira.

O pescador, com suas calças amarradas acima dos joelhos, pois as ondas passam por cima das tábuas da embarcação, senta-se com toda a segurança em seu banco de madeira. De quando em vez, tira um pouco da água do mar com a sua cuia e joga-a para fora da jangada. Não tenha receio por tão frágil armação naval. A jangada há de regressar ao porto amanhã, de manhã cedo, ou, quando muito, no dia seguinte, transportando um carregamento dos mais extraordinários peixes, alguns de olhos vermelhos, outros de olhos de boi, ou quatro olhos, bordos redondos, nariz romano, com escamas e sem elas; entre estes há alguns carregando várias espécies de caudas, pelos e tufos, como os búfalos...

Uma vez, pelo menos é o que se conta, uma jangada naufragou à noite; o proprietário foi recolhido e, levado para Baltimore, e voltou enfim à sua terra para achar a sua inconsolável viúva confortada por um novo casamento, e mais alguns filhotinhos no ninho familiar, ainda não em idade de voar.

O dr. Kidder fez certa vez uma excursão numa jangada até à bela ilha de Itamaracá, e a sua experiência mostrou-lhe que era bem arejada, bem provida de água e segura.

Um minuto depois de termos passado pela Fortaleza do Brum, uma última visão ainda se tem de um par de moinhos, lembrando o tipo holandês; e, navegando para frente, avistamos a Ilha dos Coqueiros, erguendo a sua floresta de verdes penachos contra o fundo brilhante do pôr do sol, e finalmente apenas a pirâmide rochosa de Olinda, coroada de uma igreja e seu cruzeiro e, mais longe, as praias baixas que se estendem até a Paraíba do Norte.

— Há uma assinalada dessemelhança na situação geológica das capitais das províncias do Norte do Brasil. Há, porém, uma notável semelhança na pesada alvenaria em que são construídas as casas, no som das famílias de sinos que habitam as torres das igrejas, na areia funda que cobre as ruas, e no piscar de olhos e nas faces magras e pálidas dos seus habitantes do sexo masculino.

A pequena Ilha de Itamaracá que, sob o domínio holandês, era a mais animada e povoada de todas as ilhas costeiras, atualmente está quase fora das vistas dos geógrafos, e foi se degradando de sua antiga posição de porto importante de comércio a uma mesquinha e pobre colônia de pescadores e cultivadores de frutas.


Jangada na entrada do porto de Pernambuco (Recife)

Imagem: reprodução da página 264 do 2º volume da edição de 1941, da Cia. Editora Nacional

Paraíba do Norte

Paraíba, capital da Paraíba do Norte, com uma população de dez mil almas, é situada a dez milhas de distância do litoral, Rio Paraíba acima. A vegetação de ambas as margens cobre por tal forma o estreito rio, que a capital parece, para quem dela se aproxima, ser atingida através de um túnel de verdura. Caranguejos vermelhos dormem nas praias lodosas, e tribos incontáveis de aves pernaltas trabalhosamente procuram seres vivos com que se alimentem em todos os esconderijos da vasa.

No fim dessa avenida de árvores em forma de galeria, e na encosta de um vale estreito, surge Paraíba caiada de branco e, ao aproximar-se o nosso vapor, os sinos de uma catedral que se ergue na sua parte mais alta, convida os crentes para o ofício solene dos mortos.

Rio Grande do Norte

Natal, ou Rio Grande do Norte é, pelo contrário, construída sobre terras baixas próximas do mar. O vapor não chega até ela, mas ancora a duas ou três milhas de distância da praia. Os passageiros, com suas bagagens, são entregues, na falta de outras embarcações, a uma frágil jangada que se aproxima bamboleante, à mercê das ondas. Cada onda varre-a em todas as direções.

A caminho do seu posto, viaja um comandante militar, que acaba de ser separado do tosco barro humano de bordo, e ali está de pé, sobre as ondas, brilhante de dourados e acessórios e ainda tornado mais imponente com as suas botas, as quais, a cada mergulho da embarcação, enchem-se d'água no salso elemento.

Ceará

Dificilmente se poderá dizer que Ceará possui um porto: e apenas um ancoradouro. É uma cidade situada em terreno relativamente plano, poucos pés somente acima do nível do mar. As escarpas e altas montanhas de Ibiapaba, a quatro ou cinco léguas de distância, pitorescas como as do litoral próximo ao Rio Hudson, e visíveis a cem milhas do mar (embora não assinaladas nos mapas), formam um fundo encantador. Suas encostas são guarnecidas de cafezais e, vistas pela luneta de alcance, o seu perfil é entrecortado de palmeiras.

Aqui o tipo de desembarque é muito diferente do de Natal. Um bote transporta os passageiros até a orla da praia. Uma espécie de cadeira municipal (padiola), bastante espaçosa para acomodar um par de pessoas, não muito gordas por se alimentarem de carne, conforme os hábitos locais, é conduzida nas costas de quatro corpulentos escravos com água até o pescoço, sendo que as ondas, quando eles avançam em direção ao navio, passam-lhes por cima por todos os lados. Na forte correnteza que precede o quebra-mar, a cadeira recebe a preciosa carga de seres humanos e dinheiro, e é imediatamente levada para a praia.

Aracati, na província do Ceará, e Parnaíba, na do Piauí, são principalmente mercados de gado. Há também grande diferença nas produções das províncias do norte. Pernambuco e Alagoas são produtores de açúcar, Paraíba exporta principalmente algodão. Ceará mistura ao açúcar o café, e é notável pela sua carne.

Paraíba e Piauí apresentam uma civilização primitiva, e produzem couros, sebo, carne e algum arroz nas baixas planícies regadas pelos seus rios. Maranhão, além de sua grande exportação de algodão, arroz, e sal, fornece também produtos medicinais, retirados das raízes fortificantes, das cascas e dos bálsamos de suas matas. Pará é merecedor da gratidão mundial pelo seu cacau e sua borracha.


A padiola

Imagem: reprodução da página 266 do 2º volume da edição de 1941, da Cia. Editora Nacional

Litoral do Nordeste

Nota-se também certa diferença no aspecto do litoral. Deixando-se Olinda, não mais se veem elevações do solo, exceto as montanhas que ficam por detrás da cidade do Ceará, até que se contorne a escarpada barreira arenosa de São Marcos na entrada do Maranhão.

Depois da Paraíba do Norte, a vista se cansa em ver as tristonhas praias e montículos de areia branca, sem árvores ou qualquer outra espécie de vegetação, salvo aqui e ali uma fila de verdes coqueiros nos pequenos vales, ou cactos de aspecto colunar que de quando em vez assomam nesses contínuos desertos como que para mais caracterizar a sua total desolação. Entretanto, conforme já foi notado, não há Saara no Brasil, embora frequentemente se sofra muito com as secas nessa porção do Império.

Conforme se pode distinguir de bordo, ardentes areais se estendem até perder de vista. Tal o caráter do terreno por centenas e centenas de milhas. Lentamente, porém, vai se modificando em direção ao Norte. As areias brancas depositadas se adornam, com grandes intervalos, de alguma vegetação; depois, os intervalos vão diminuindo até que, no Maranhão, todo o litoral é coberto pela beleza, esplendor e pujança da vegetação tropical.

A alvenaria de construção marinha do recife de Pernambuco emerge em várias trechos do litoral, em intervalos que variam de cem a mil jardas de extensão. Apenas no Ceará parece penetrar na terra firme, pela ponta arenosa de Mucuripe. O oceano, com a sua voz baixa e rouca de habitual melancolia, quebra-se frequentemente de encontro a ele.

Petitinga, um triângulo de verdura no meio da vasta desolação dos cômoros de areia, é famosa pelas cascas de tartaruga (rivalizadas apenas pelas dos mares do Sul) que se podem caçar entre as suas rochas disjungidas. Os hábitos da pequenina povoação são parecidos com os dos beduínos. O comércio regular muitas vezes é suspenso para pilhar um navio carregador de farinha que deu à costa pela ação dos temporais ou das correntes. Então todos os habitantes viram salvadores e o salvamento se recompensa com o valor da carga.

O trecho da costa nas proximidades do Cabo de São Roque é perigoso para as embarcações que viajam muito junto do litoral, por causa dos recifes imersos e das fortes correntes, com velocidade de três ou quatro milhas por hora, as quais, depois de terem atravessado o oceano desde a costa da África, batem de encontro ao Brasil, não longe da Bahia, e desviam-se para o Norte até atingirem a embocadura do Amazonas, depois do que continuam na sua rota até se tornarem nossa conhecida sob a denominação de Gulf Stream.

Constitui um sério obstáculo tentar desembarcar ao Norte do Cabo de São Roque, porquanto pela ação, quer do vento, quer das correntezas, é difícil contornar o cabo sem se ser impelido para o mar alto. Antes do uso do vapor, as notícias do Norte do Brasil eram muitas vezes recebidas no Rio de Janeiro via Europa. Southey refere o caso de um navio que partiu do Maranhão na direção Leste, no ano de 1656, levando tropas a bordo para certas emergências e que, depois de estar ausente cerca de cinquenta dias — tempo suficiente para consumir suas provisões — achou-se na necessidade de regressar e, em doze horas alcançou o porto donde havia saído.

Clima do Nordeste

Oito graus de latitude e mais de 1.500 milhas de litoral medeiam entre Pernambuco e Pará, sobre a foz do Amazonas. O clima de todas essas regiões é muito igual, sem diferenças apreciáveis ligadas às variações de estação. O termômetro na sombra varia de 82º a 90° (F), raramente indicando uma variação de mais de cinco graus. Tão igual, realmente, é a temperatura do litoral Norte do Brasil, que não admira que o termômetro leve seis meses para lentamente subir os graus que vão de 82 até àquele máximo, para em seguida voltar com igual lentidão àquela mesma temperatura.

A quantidade e a distribuição das chuvas são, porém, muito desiguais, e suas épocas respectivas variam nos diferentes pontos da costa. Em Pernambuco, as chuvas se prolongam somente por três meses, caindo em pequena quantidade, ao passo que, no Pará, observações exatas registram menos de sessenta dias no ano apenas sem chuva. Todavia, o leitor não deve supor que o céu se apresenta constantemente coberto de nuvens: o sol se deixa ver tanto como em Nova York.

A estação chuvosa em Pernambuco termina quase quando no Maranhão começa. Nesta zona as chuvas tropicais, embora menos constantes do que no Pará, se manifestam em toda a sua força. Chuvas leves e passageiras anunciam a aproximação dos fortes aguaceiros. Vão dia a dia aumentando, até que, na plenitude da estação, nuvens negras, num céu claro, acorrem de repente de todos os pontos do horizonte para o zênite, desabando as águas que armazenam numa forte pancada d'água, acompanhada de violentos relâmpagos e trovões, que inunda como um dilúvio a terra.

Nessas épocas, embora as chuvas se continuem às vezes incessantemente durante o dia, há uma certa periodicidade das pancadas d'água, às dez da manhã e às três da tarde, que duram um par de horas, com intervalos de céu azul. Tão grande é essa precisão que todos os compromissos do dia são referidos a esses curtos períodos de temporal.

A estação chuvosa no Maranhão se prolonga por perto de seis meses e, durante esse período de tempo, caem nada menos de 230 polegadas de chuva! Assim o descreve um residente inglês. Que veracidade dar a tais dados, não sei. O resto do ano é sem chuvas. Assim mesmo, a vegetação não fenece. As plantas contém em si poderes de adaptação às grandes variações de estação, e retiram e absorvem a transparente umidade que as brisas trazem do mar, mantendo o seu grau comum de crescimento.

Maranhão

Agora, passando do tempo para alguma coisa de mais estável, dizemos que a cidade de São Luiz do Maranhão se coloca como a quarta cidade em importância do Império, e é a capital da rica e importante província do mesmo nome. O estuário em que se ergue foi descoberto por Pinzon em 1500. Apesar de o Maranhão já ser uma capitania desde 1530, os franceses, em 1612, foram os primeiros a fundar aí colonização permanente e, em homenagem ao santo padroeiro e à família real da França, denominaram a cidade São Luiz e à baía Santa Maria.

O território da província é de superfície pronunciadamente irregular, se bem que não contenha uma só cadeia de montanhas. É regado por grande número de rios, de todos os tamanhos. Em grande extensão, é coberto de florestas, em que abundam valiosas madeiras e preciosas plantas medicinais. O solo é especialmente adaptado à cultura do arroz, que produz em grande quantidade. O algodão dá muito melhor que a cana-de-açúcar.

Os frutos indígenas são numerosos e ricos e, nas terras distantes do interior, encontram-se muitas nozes e cocos comestíveis, entre os quais nenhum é mais curioso do que o fruto triangulado da castanha do Pará (Bertholetia excelsa), ou a sapucaia (Lecythis ollaria). Esta última é uma cápsula do tamanho da cabeça de uma criança, cheia de pequenos grãos oleosos e comestíveis. Com essa cápsula, fazem-se bonitos vasos e açucareiros. Os abacaxis e as bananas, de várias espécies, merecem ser citados pela sua excelente qualidade.

Riquezas minerais não foram encontradas nessa porção do globo. Leves camadas do velho arenito vermelho fornecem um excelente material de construção muito empregado; ouro, chumbo e antimônio foram descobertos, mas até agora não se tirou dessas descobertas nenhum proveito prático. Nas águas desta província abundam peixes, e rebanhos de carneiros, bois e cavalos se multiplicam rapidamente nas plantações do interior.

São Luiz do Maranhão dizem ser mais bem construída, em conjunto, do que qualquer outra cidade do Brasil. Apresenta-nos um asseio e um ar de iniciativa que raramente se veem nas demais cidades do Império. Além disso, no seu perímetro urbano, notam-se poucas choupanas e casebres. Nenhuma das igrejas possui dimensões fora do comum ou suntuosidade, porém muitas residências particulares são de primeira ordem.

O estilo das construções é ao mesmo tempo elegante e durável. As paredes são maciças, sendo compostas de pequenos fragmentos de pedra ligados por cimento. Embora a cidade não ocupe larga área, o terreno que ocupa apresenta muitas desigualdades. Está construída sobre dois morros e, por conseguinte, abrange um vale. A subida e a descida das ruas são, em alguns trechos, muito íngremes. Poucas carruagens estão em uso, só havendo na cidade uma única estrada carroçável em toda a redondeza. Essa estrada conduz até pequenas distância longe do centro da cidade.

A cadeira é pouco conhecida aqui como meio de transporte. A rede é geralmente usada como meio de fácil locomoção. É muito comum, tanto no Maranhão como no Pará, ver senhoras dando seu passeio nessas redes. Os homens não costumam aparecer nas ruas em semelhante meio de condução, embora se diga geralmente que gostam muito de se balançar em suas redes em casa.

O sr. John U. Petit, que residiu durante muitos anos na cidade do Maranhão, bondosamente me forneceu algumas de suas preciosas notas; a sua descrição do Maranhão é tão viva, fiel e descritiva que a transcrevo na íntegra:

As ruas laterais, que cruzam as duas ruas principais, descem abruptamente até o estuário, uma de cada lado. As chuvaradas deixam cair as suas torrentes ao longo das pedras e lavam totalmente a cidade, impossibilitando a falta de asseio público. A Rua do Quebracostas deve a sua denominação ao fato de ser bastante íngreme.

O meu primeiro desembarque se deu à tardinha, após a cessação das chuvas diárias. Já o sol se estava pondo, e as nuvens, semidispersas, apenas aqui e ali apareciam fugitivas e fantasticamente distribuídas, ora formando como que píncaros escarpados ou montanhas, ora paisagens de campos distantes, ou lagos azuis, com margens de cores verde e alaranjado.

A umidade dominante da estação, se bem que não vista ou sequer sentida, evidencia-se pelos seus efeitos. Tudo em que se pega, parece pegajoso. A estação úmida é a idade de ouro do mofo. E não ficam as coisas apenas úmidas, senão que também deterioradas. O mofo se desenvolve em tudo aquilo que lhe permite pousar. Uma nódoa de gordura num casaco, um colarinho usado, tornam-se pujantes de vegetação após estarem expostas à umidade de uma noite.

Albino vem oferecer-vos uma xícara de café, e a gente o toma balançando-se na rede, quando a madrugada vem nascendo e os passarinhos de peito aveludado cantam na alta fronde de uma árvore de fruta-pão, ou colibris madrugadores estão sugando néctar no próprio seio das rubras flores da romã. Albino então tenta dar lustre às nossas botas. Mas apenas a gente se deita de novo na rede e dá alguns balanços quando, presto, as botas já estão cobertas com um verdadeiro mapa de limo esverdeado, como um objeto antigo azinhavrado.

O velho baú preto, venerando, de couro, companheiro de viagens por tantos países, tão conhecido dos exploradores alfandegários, — ali está agora modestamente encostado à parede, com sua tampa aberta, embora não deseje que ninguém olhe para dentro dele; sob a influência da umidade, fica a princípio branco, depois pardo, em seguida amarelo e finalmente verde, com seus ares de coisa velha. Mas, isso só fere a vista por poucos instantes: ao primeiro raio de sol, o mofo desaparece, como as efêmeras que vivem toda uma vida e morrem atravessando uma réstia de luz.

Nas ruas principais, as casas da cidade do Maranhão são construídas de compacta alvenaria. Têm geralmente dois, três e quatro andares, com paredes de dois e meio a três pés de espessura, que são as que melhor resistem à ação do calor de fora. Maranhão é uma cidade que quase chegou a estar completa, pois apenas uma casa se construiu, faz algum tempo, na Rua de São João.

Uma fila de burros e mulas transporta o arenito vermelho e ferruginoso, tirado em Bomfim, até a Praça do Palácio, em cestos, com um relutante escravo empurrando-as por trás. A cal é trazida em outros cestos, na cabeça de escravos, da praia do outro lado do mar e, para misturar a argamassa, algumas mulheres pisam em cima, empregando vasilhas d'água retirada da abundante fonte que existe além da Praia do Caju.

Os habitantes da cidade são abastados: proprietários de plantações e de numerosos escravos que estão nas fazendas do interior. Feitores aí os fiscalizam, e os senhores recebem os seus lucros anuais sem ter o trabalho de ir buscá-lo, gastando rapidamente o dinheiro na abundância, e às vezes mesmo dissipação da cidade.

Com esse recursos fáceis, os filhos dos moradores da cidade são muito bem-educados, na mais brilhante, pomposa e pouca prática das instruções — em casa ou, menos frequentemente, no estrangeiro. As damas mais do que os cavalheiros são igualadas àquelas que aprendem as artes de agradar e conquistar em Lisboa, Madrid e Paris. Essa alta classe constitui um ambiente social em que Roger de Coverley viveria satisfeito.

Antes de meia-noite, as ruas ficam silenciosas que nem o pátio de uma igreja, e só um transeunte em atraso é que encontra ainda nelas a patrulha de ronda com um mosquete ao ombro, tendo na ponta uma baioneta, e que pergunta pela contrassenha: em resposta, fica satisfeita em ouvir, pronunciado baixo, um Amigo, o que quer dizer que é das relações particulares do imperador, e só assim pode ter licença de ir embora.

Abaixo da classe dos cidadãos abastados, que moram em grandes casas construídas de pedra e tendo balcões em suas janelas, e varandas em cima, que impedem a invasão dos raios solares, segue-se em primeiro lugar a grande classe dos donos de lojas e artesãos. Para esses há várias escolas. A cidade tem também várias instituições de caridade: um asilo para órfãos, casa dos expostos, hospital para leprosos, hospitais para doentes comuns, e misericórdias, com suas portas abertas a todos os filhos da miséria.


Uma rede

Imagem: reprodução da página 275 do 2º volume da edição de 1941, da Cia. Editora Nacional

"Brasileiros"

Os portugueses constituem um elemento importante na população de todas as cidades. São robustos, ambiciosos, confiantes em si e econômicos. Não criam riquezas, porém sabem adquiri-las. O brasileiro olha para eles com habitual aversão. Isso se originou nos tempos da dependência colonial em relação a Portugal, quando os cortesãos que acompanharam dom João VI tomavam conta de todos os ambicionados lugares da Igreja e do Estado, com exclusão dos naturais do país. O governo era então terrivelmente injusto e opressor. Os portugueses favorecidos com tais nomeações eram geralmente decaídos da fortuna, que a vinham refazer no Brasil. A história das capitanias não passa da repetição das velhas histórias das pilhagens e rapacidades dos procônsules romanos.

A essa profunda causa de ódio, se adicionou outra, com a crescente onda de imigrantes portugueses, que monopolizaram, com o seu vigor e simplicidade, o comércio e as mais difíceis profissões manuais, em que os brasileiros raramente fazem boa figura. A maior parte dos imigrantes vêm aventurar fortuna e conseguem habilitações e situações que levam muitos à abastança.

Aporta ao Brasil um navio carregado de portugueses moços, dispostos a fazer fortuna. Trazem todos um grande baú capaz de servir para uma família inteira. Na inspeção da alfândega, dois deles ficam segurando a tampa: na imensa caverna que se descobre assim, podem-se ver, misturados, um par de ceroulas, uma camisa, agulhas e carretéis de linha, além das mercadorias do comerciante em trânsito: duas ou três réstias de cebolas.

Em dez ou doze anos, o rapaz tornou-se um homem, que embarca de novo o seu baú para regressar a Portugal. Mas agora este foi reforçado com ripas para o fundo não ceder. Pequenas caixas e sacos de viagem empilham-se junto dele, como se fossem os filhos do velho baú, o qual, não tendo asas, mas sentindo-se maternal, cobre-os com a sua sombra. Antes de embarcar, o infatigável português pagou suas dívidas em boa moeda sonante. Tal a pitoresca e às vezes exagerada representação, com a qual os brasileiros, descendentes em linha reta de antepassados comuns, se vingam dos seus mortais competidores, os portugueses.

A classe dos brasileiros propriamente ditos, que se originam dos antigos colonos portugueses, e abarcam todos os postos do funcionalismo civil, do oficialato do exército e da marinha, o clero, e as altas classes da cidade e do interior, abrange cerca de um terço da população. A população portuguesa atinge a um sexto. Abaixo desses, constituindo cerca de metade dos habitantes do país, há as diferentes variedades de negro, mulato, mestiço e índio.

As necessidades deste último são poucas e baratas: uma habitação construída sobre terra pura, trançada de folhas de palmeira em cima e dos lados, com redes penduradas em diagonal no interior das mesmas, para os moradores se balançarem ou dormirem, e com um vestiário que só excede o dos jardins edênicos por contar com uma camisa e um calção; fora disso, o mar e a terra, igualmente generosos, enchem a sua mesa fartamente.

Os indivíduos de uma classe facilmente passam para outra. Pessoas de tratamento perdem a sua situação e tornam-se vagabundos; ao passo que, vencendo os mais suaves obstáculos no que respeita a cor, operam-se mudanças na sociedade, e em tudo mais, e veem-se pessoas das classes subordinadas conseguirem pelos seus próprios esforços elevar sua posição social.

Um furor musical se nota por toda parte. O piano e a harpa são elementos comuns nos salões. Mas o violão — como nas casas de campo de Portugal — é a alegria de todas as habitações pobres do Brasil; enquanto que os seus parentes mais humildes — o banjo e a marimba — igualmente um objeto de propriedade dos negros, e para eles é todo o seu derivativo.

O escravo, de cabeça desprotegida, descalço e sem camisa, fere as cordas desse violão primitivo — a marimba — nas noites de luar, em frente à porta do seu senhor, diante de um bando de escravas dolentes, cujos corações ele fere, como um segundo instrumento, tornando-as cativas pela magia de sua arte. As melodias das plantações norte-americanas (os temas originários da África que se cantam na Virgínia e no Tennessee, já de há muito cediças nos Estados Unidos) são, como a varíola, contagiosas para todas as classes sociais.

Uma dúzia de pretos, carregando umas como pipas de barro, suspensas ao ombro por meio de bambus, cantam, em tom menor, o destino do Poor Old Ned. Na Rua de Santana, por trás de uma rótula, ouve-se uma voz musical cantarolando Susannah, not to cry [A60]. Pianos aristocráticos ressoam às notas da Rosa de Alabama e Senhoritas de Búfalo, com mais música do que prosódia.

Por dentro e por fora, São Luiz do Maranhão é uma agradável cidade. Amabilidade, afabilidade e bondade são quase gerais. Não distingue posições sociais. Uma pronta e expansiva hospitalidade acolhe o estrangeiro em todas as portas.

É um prazer recordar de memória o panorama da capital maranhense, com a sua baía, salpicada de pequenas ilhas cobertas de vegetação, e grandes bastante em certos pontos para não permitir que se veja o litoral do lado oposto e desdobrando-se até o ponto de junção de seus dois grandes estuários; pitorescas embarcações de pesca, montarias e canoas, descansando nas praias; delicados e espigados coqueiros franjando o perfil da cidade da mesma forma por que se distribuem irregularmente nas elevações que se projetam para dentro da baía; bananais e laranjais trepando pelas encostas; perfumes redolentes das flores silvestres que enchem o ambiente; (mirantes que se elevam em vários pontos pretensiosamente alteando-se por sobre o conjunto geral dos telhados vermelhos; e a alta torre da catedral e os numerosos campanários de dezenas de pequenas igrejas lançando as suas agulhas para o céu.

"
As andorinhas", escreve o dr. Johnson, "dormem durante todo o inverno. Grande número delas, aglomeram-se em voos circulares, para depois, formando um só bando, mergulharem n'água e ficarem descansando numa das margens.

"O primeiro presente do Maranhão ao visitante de abril é a sua velha e querida amiga, a andorinha. Ela constrói seu ninho sob as telhas dos beirais. Frequentam as torres das igrejas aos milhares, como se fossem uma ave sagrada. Quando o sol vai tombando e envia os seus raios amortecidos, e antes que elas procurem o pouso para dormir, no alto do céu veem-se bandos de andorinhas girando em grandes círculos.

"Às vezes seus inimigos, os abutres, na mesma hora da tarde, mantêm-se na altura com toda a sua família, voando após um dia vergonhosamente passado entre as carcaças. Os esquadrões de andorinhas os atraem nas regiões azuis do céu, e os abutres, ora se divertem em longos voos sobre a terra, ora pairam preguiçosamente acima dos telhados, descrevendo zigue-zagues ao longo das avenidas aéreas, entre os grupos de palmeiras, figueiras e laranjeiras, ou partem rápidos, velozes e diretos como uma flecha, em perseguição de uma alegre borboleta, cujas asas coloridas e corpo aveludado — tanto é verdade que o resplendor não protege da morte — não escaparão à sua sanha.

"Daqui a meia dúzia de semanas, a andorinha que está pousada nos bordos das telhas vermelhas, ensinando com carinhosa arte, os seus filhotes a voar, poderá, na sua pátria, sob os céus do Norte, deslizar por sobre os perfumosos campos de trevos, os dourados trigais, ou sobre os pomares floridos e os bosques de nogueiras, de quando em vez lavando o seu alvo colo num pequeno lago, ou galgando as alturas por cima dos morros perseguindo a sombra das nuvens caprichosas.

"Assim deliciosamente se ocupam as andorinhas durante os nossos frios invernos, e quando chega a época das migrações, elas se hospedam em quantidades incontáveis nos telhados das casas, preparando o seu longo voo, com que anunciam, juntamente com outros precursores, às terras do norte, ainda empardecidas pelos tons da morte anual, que a célere primavera vem chegando com o seu poder de ressurreição. O dom mais precioso com que o homem mitiga a sua faina terrestre é o encanto das belezas naturais, suas formas mudas, se bem que divinamente falantes, e seus alegres pássaros, mais que harmoniosos em seus delicados cantos.

"O belo aspecto da pequenina povoação de Alcântara, com suas casas brancas a umas seis milhas de distância, às margens da baía, e que conta uns cinco mil habitantes, dá-nos vontade de visitar o continente. Alcântara é conhecida pela sua produção de sal, retirado, como em algumas ilhas da Índia Ocidental, dos tanques naturais, contendo água do mar, quando a maré recua. Algumas milhas acima da costa, está a povoação de Guimarães, no centro de uma região abundante em algodão, arroz e mandioca."

"As duas baías gêmeas de São Marcos e São José, que ficam justamente por trás da Ilha do Maranhão, são atingidas, para quem vem do interior da província, por vários rios — o Pindaré, o Mearim, o Itapicuru — pouco maiores que o Mohawk ou o Wabash. Da mesma forma que Alcântara nos tenta para visitar as suas praias, esses rios nos convidam a subir suas margens cobertas por manguezais até atingir às suas nascentes.
"


A marimba

Imagem: reprodução da página 276 do 2º volume da edição de 1941, da Cia. Editora Nacional

Mangues

"
Os mangues se encontram ao longo de todas as margens banhadas pelas marés no norte do Brasil e, na preamar, ficam eretos sobre as ondas, com água até o meio, somente com os seus ramos, suas folhas verde-mar, e algumas raras flores esbranquiçadas de fora. Por trás dos mangues, nas praias mais altas veem-se fileiras de altivas palmeiras.

"As leis do mundo vegetal são desrespeitadas pela maneira por que os mangues se desenvolvem. Do seu caule superior, com meia dúzia de polegadas de diâmetro e seis pés de altura, eles emitem galhos horizontais. Estes, por sua vez, emitem para baixo sucçores que criam raízes no lodo, e logo atingem o mesmo desenvolvimento do caule materno; por sua vez, emitem esses outros galhos e mergulham outros caules sucçores, até que a árvore primitiva se transforma numa vasta rede vegetal, bastante forte para lutar contra as tempestades.

"Nesses dédalos sombrios, onde não penetra o passo humano, a sericoia — a galinhola dos trópicos — guarda os seus filhotes. As ostras trepam pelas raízes e, na vazante da maré, essas apresentam o curioso espetáculo de moluscos bivalvos crescendo em plantas. O mangue contém, abundantemente, o princípio ativo do tanino que, em forma de extrato concentrado, pode constituir um valioso artigo de comércio."

A "montaria"

A montaria a que acima nos referimos é assim descrita pelo dr. Kidder:

"
No rio, em frente a Varadouro, pode-se ver grande número de embarcações mercantes. Nenhuma delas, porém, apresenta-se mais pitoresca do que a montaria — essa espécie de bote achatado muito em uso nos rios dessa região. No primeiro exemplar que vi, contei dez índios remando rapidamente contra a corrente. Cada qual tinha nas mãos um remo de pá, mais ou menos do tamanho e da forma de uma pá oval, perpendicularmente colocado em relação aos bordos da embarcação, e quando todos a um só tempo batem n'água, a montaria ganha forte velocidade".

Dissemos adeus à asseada, alegre e hospitaleira cidade de São Luiz e navegamos em direção ao Pará
[A61].


Paisagem na Província do Piauí

Imagem: reprodução da página 280 do 2º volume da edição de 1941, da Cia. Editora Nacional


Notas do Autor

[A60] A larga difusão das chamadas melodias etiópicas dos Estados Unidos é quase inacreditável. Em 1840, eu estava me dirigindo a 1 hora da madrugada, de Charing Cross para o lado de Surrey, em Londres, e ouvi um grupo de jovens ingleses cantando, com todas as suas vozes, O' Sussanah, etc. Certa vez, passando pelo morro da Glória, no Rio de Janeiro, ouvi as notas da mesma melodia, cantadas por um morador de uma casa de campo brasileira.

Porém o mais extraordinário caso foi o que assisti em 1850, em Terracina — a antiga Anxur, não distante das Três Tavernas mencionadas nos Atos dos Apóstolos, XXVIII.15. Era uma meia-noite italiana e, enquanto estava ouvindo o som das ondas do Mediterrâneo, quebrando-se no cais em rumas de Terracina, e pensava no longo passado de Roma, fui despertado por uma voz clara (que ressoou nas minas que me rodeavam), lançando no silêncio da noite as notas de Old Uncle Ned.

Bruscamente desapareceram os meus pensamentos na Itália, em Roma, e transportaram-me bem longe, para lá do oceano. Depois descobri que o seresteiro era um yankee de Boston, que perambulava por esses quietos recantos, e que fora tão singularmente afetado por essas associações sagradas e clássicas que dera saída ao Ancient Unde Edward, como estando mais de acordo com emoções despertadas pela antiguidade — clássica e sagrada — de Terracina.

[A61] Nota de 1866: — Depois que esse capítulo foi escrito, J. C. F. visitou toda a costa do Rio de Janeiro até o Pará, e as cidades de Bahia e Pernambuco quatro vezes em muitos anos.

Sentir-se-ia satisfeito em enumerar os muitos melhoramentos que ai se realizaram, em viação férrea, etc., mas a falta de espaço não o permite.

Não pode, entretanto, esquecer as muitas recepções calorosas que recebeu, principalmente em Pernambuco, dos srs. Swift, Hitch & Rolins (sócios de Henry Forster & C.) de S. P. Johnson, do barão do Livramento, um brasileiro cheio de entusiasmo, do sr. Tasso, e da família Sá e Albuquerque, em Gararapes; também não pode deixar de recordar-se das gentilezas de dois eminentes estadistas brasileiros, o visconde de Camaragipe e o visconde da Boa Vista, assim como do dr. Vasconcelos, diretor do Jornal do Recife.

Notas do tradutor:

[T88] Fanáticos da comarca de Flores, próximo a Piancó, termo de Pajeú, Pernambuco, episódio ocorrido em 1837-38, e que serviu de tema à novela O Reino Encantado de Araripe Junior, também referido em Os Sertões de Euclides da Cunha, p. 143, 11ª ed.