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HISTÓRIAS E LENDAS DE CUBATÃO - VILA SOCÓ - (19)
A tragédia, em A Tribuna de fevereiro/1984-C

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Uma das maiores tragédias de Cubatão, senão a maior, foi o incêndio de um oleoduto da Petrobrás que passava sob uma favela, Vila Socó, destruída pelas chamas com a morte de cerca de uma centena de pessoas, em 24/2/1984. No domingo, 26 de fevereiro de 1984, o jornal santista A Tribuna publicou extensa matéria sobre a tragédia. As imagens das páginas foram tratadas pelo jornalista Allan Nóbrega, que em 24/2/2014 cedeu cópias a Novo Milênio. Esta é a página 4 dessa edição (ortografia atualizada nesta transcrição):
 

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Página 4 do jornal A Tribuna de Santos, de 26 de fevereiro de 1984

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Vila Socó literalmente arrasada

Um vazamento de 700 mil litros de gasolina do oleoduto da Petrobrás que passa por dentro da área urbana de Cubatão provocou ontem, por volta da zero hora, um incêndio que destruiu mais de dois mil barracos da Vila Socó, uma favela com perto de 10 mil habitantes. Morreram mais de 60 pessoas até à noite de ontem, 300 eram dadas como desaparecidas e, dos 33 internados nos hospitais, metade tinha poucas chances de sobreviver. O incêndio teria sido acidental, embora haja testemunhas de que um forte cheiro de gasolina tomou conta da favela, que fica na altura do quilômetro 57 da Via Anchieta, desde a manhã de sexta-feira. A Petrobrás foi acionada e há versões de que seus técnicos não quiseram chamar os bombeiros, como desejava a Polícia Militar, por entenderem que primeiro deveriam comunicar o fato ao engenheiro residente da Tedep, em Santos.

Essa versão está sendo investigada pela Polícia. Esses técnicos constataram o vazamento às 23 horas e bloquearam o registro que tem vazão de 350 metros cúbicos por hora. Pouco adiantou, porque a área estava impregnada do combustível. Às 23h30 ou à meia-noite – segundo versões – houve uma pequena explosão e o mangue onde se assentavam os barracos foi lambido pelas chamas. Em questão de segundos morreram, principalmente, centenas de velhos, mulheres, crianças e animais, que não puderam fugir a tempo.

Dois policiais militares foram, ao lado dos bombeiros – que carregavam corpos calcinados com um respeito compungitivo – os heróis dessa tragédia, avisando os moradores para que abandonassem os barracos minutos antes da explosão. O incêndio lambeu uma área de dois quilômetros por 100 metros e podia ser pior, se tivesse atingido também outros condutores de gás e diesel, que passam pelo local. Nesse caso, haveria o risco de estender-se por outros locais da Baixada Santista, em lugar de ficar circunscrito à favela.

As primeiras vítimas foram sepultadas ontem, após missa rezada por d. David Picão na capela do cemitério de Cubatão. O prefeito José Osvaldo Passarelli decretou luto oficial no município e estado de calamidade na área atingida.

Famílias inteiras foram encontradas abraçadas, mortas no meio do mangue. A cidade está recebendo votos de pesar e solidariedade de todo o Estado. O presidente da Petrobrás, Shigeaki Ueki, admitiu que a empresa, tendo culpa, indenizará os familiares dos mortos, liberando inclusive verba para reconstrução de barracos em outros locais a serem estabelecidos. Vila Socó será extinta, agora que morreu. Porém, a Petrobrás ressaltou que a "adoção de efetivas medidas de segurança" na área de Cubatão sempre foi dificultada pelo fato da região estar "sujeita a diversas jurisdições (federal, estadual e municipal)".

A vila explode e surgem tochas vivas no escuro

Quando os 200 bombeiros – auxiliados por funcionários da Petrobrás, Cosipa, Union Carbide e unidades de Santo André e São Bernardo – conseguiram conter as chamas de mais de dez metros de altura que tomavam uma área de mais de cinco mil metros quadrados – exatamente onde havia o mangue – descobriu-se o horror.

Muitos sobreviventes falam de crianças correndo em meio às chamas, lançando-se no mangue. Tochas vivas. Outros informam: naquele barraco tem duas mulheres grávidas. Mortas. E noite iluminada por uma chama que resiste junto aos tubos. Tratores de esteira e caminhões da Prefeitura de Cubatão fazem um dique. Tentam isolar o fogo exatamente no ponto em que o vazamento se originou: a dois passos do Parque Infantil Estado de Mato Grosso.

Há centenas de pessoas trabalhando no local. A Comissão de Defesa Civil da Prefeitura foi acionada pelo prefeito José Osvaldo Passarelli. O comandante do 21º BPMI, tenente-coronel Nélson Afonso Prado, chamou o Plano de Auxílio Mútuo das Indústrias. A Petrobrás manda carros e técnicos.

Já se sabe que o oleoduto estava bombeando gasolina, e todos acusam a Refinaria Presidente Bernardes de ser a responsável pela tragédia.

Onde estão as vítimas? Perto de 100 pessoas são levadas ao Pronto-Socorro Municipal e dali seguem para o Hospital de Cubatão. Pelo menos 30, até às 9 horas da manhã, tinham ido para a Santa Casa de Santos.

Ironia trágica: só a Santa Casa de Santos tem uma unidade de queimados, instalada pela Refinaria Presidente Bernardes – Petrobrás.

Incansável, o tenente Paulino transporta pessoas a quem os médicos dão poucas horas de vida. Menos de 100 são levados para os hospitais. Mas as pessoas começam a se perguntar: onde está fulano, beltrano. É noite escura e só se vê entre os barracos o fogo se extinguindo, tudo iluminado pela grande chama da tocha em que se transformou o ponto de vazamento. Há muitos desaparecidos.

A constatação é triste, desespera a multidão dos vivos contida entre as cordas armadas pela Polícia Militar a 300 metros da grande chama. Muitos gritam que querem ver parentes.

Começa a amanhecer.

O prefeito José Osvaldo Passarelli consegue, de madrugada, avisar a Comissão de Defesa Civil do Palácio dos Bandeirantes. O vereador Armando Campinas Reis anda entre os escombros, à procura de alguns conhecidos que, por volta de uma da madrugada, ele vira correr entre as chamas.

Os moradores de Cubatão, quando a escuridão vai embora, constatam que metade da Vila Socó simplesmente tinha desaparecido. Enquanto um grupo de bombeiros luta para isolar o vazamento, o coronel Nilauril ordena a primeira "operação pente fino".

Os bombeiros começam a trazer pedaços carbonizados de pessoas, enquanto se nota, com horror, cabeças, troncos, braços, aparecerem no meio do mangue. Um bombeiro traz numa caixa pequena de cerveja, calcinada, a primeira criança.

Com o sol, um esquadrão vai colhendo os corpos

"Meu Deus, agora vem o pior", murmurou o major Norival, apoiando-se num caibro. O sol nascia, mostrando dezenas de corpos e restos de corpos fincados no mangue em cinzas. "Repartam a área, vamos recolher", determinou o major aos oficiais do Corpo de Bombeiros. "Não pode escapar nenhum". Um esquadrão começa a recolher os mortos.

O povo começava a voltar para a vila. Corpos em movimento, ombros caídos, olhares perdidos. Não foi um pesadelo: a vida praticamente não existe mais. Só restavam geladeiras, botijões de gás e bicicletas retorcidas, tralhas que alguns, com carinho, tentavam resgatar, como quem sacode o pó de um vestido. Pequenas lembranças de um lar perdido.

Na pinguela tosca, alguns corpos próximos de páginas soltas de uma revista erótica. Em pé, resistindo, a placa anunciando: "Vende-se chup-chup de frutas". As vidas perdidas – entre mortos e vivos – não tinham sabor. Gente e cachorros, muitos cachorros vira-latas, perambulavam nas cinzas, queimando pés e patas nas brasas. Mas ninguém ligava.

A fuga travada – As formas paradas mostravam frenéticos movimentos da fuga: à margem da vila, no pé do córrego, o corpo da mãe embalando o corpo do filhinho. Outro pequeno logo atrás, mais adiante outro mais. O fogo lambera a todos.

Já eram 7 horas e o PM Pessoa não obedecia à ordem de ir para casa. Com o braço direito enfaixado, não parava de avaliar: foio o pior acidente de sua carreira de 27 anos. Ele estava de plantão no Jardim Casqueiro quando tudo começou. Correou para a Vila para ajudar. Mas o fogo o apanhou pelo braço. Agora, pensando em seus oito filhos em casa, lamentava: "Se eu tivesse salvo pelo menos uma criancinha, estava feliz".

Na Via Anchieta, rostos sonados disputavam as janelas dos ônibus de turnos, sem acreditar no que viam. Do outro lado da vila, junto da Avenida Bandeirantes, mais levas de trabalhadores, nos trens da Rede Ferroviária Federal, surpreendiam-se com o fogo ainda vivo a 20 metros da linha férrea.

O prefeito de Cubatão, José Osvaldo Passarelli, definia sua primeira impressão, de pouco ante da meia-noite: "Tive uma impressão catastrófica, de agonia total". E o comandante Nilauril, dos Bombeiros, relembrava: "Parecia o incêndio de Roma".

"Meu barraco se salvou, mas que adianta se a população morreu?", lamuriava Cristino Mendes da Silva, que conseguiu escapar alertado por dona Maria Isabel, sua mulher, e agora colocava seu barraco nº 361 à disposição do vizinho, José Francisco Filho.

José acabava de chegar à sua casa, que não existia mais. Ele passou a noite toda trabalhando na Cosipa, mas era informado que sua esposa, que espera nenê, estava salva.

"Maria, lá foi nosso barraco", protestava com voz contida o senhor de meia idade que passava com a mulher. "Tem nada não, Tonho. A gente batalha outro. Tamo com vida", confortava a mulher.

As histórias fantásticas já eram voz corrente na procissão de gente simples, muito simples, que tentava chegar próximo às cinzas e era afastada pelos policiais. "Agora não adianta mais nada, vocês não têm o que fazer aqui. É trabalho para os bombeiros", ponderavam os policiais que, a essa altura, já estavam visivelmente abatidos.

Alguns perdiam o controle emocional: "Cai fora!, eu já falei. E daí que você tinha irmãos aqui? É terrível, eu sei, eu também estou sofrendo, mas não adianta ficar aqui". Um PM empurrava, irado, um visitante teimoso, chegando mesmo a dar-lhe um tapa: "Pode me representar, meu nome é Bizarro!"

Sete horas. As poucas famílias que não perderam seus barracos já começavam a mudar. Uma preocupação inexistente para Venício Orásio Pereira, que sentia necessidade de contar para os outros a epopeia de sua fuga:

A mulher de Venício assistia televisão quando sentiu o forte cheiro de gasolina. Tratou de acordar o marido: "Velho, vem aqui, tem um negócio na maré que arde o nariz". Venício não ligou, mas diante da insistência, e sentindo o cheiro também, levantou-se. Chegou na porta, e gritou: "Lá vem fogo!, passa a mão nas crianças".

Venício, a mulher, as cinco filhas, dois genros e seis netos saíram numa corrida embalada. "Eu ia empurrando as crianças e o fogo vinha atrás. Tive que me jogar no mato de desespero do calor. Uma filha e um neto se queimaram".

"Agora estamos sem eira nem beira. Vamos morar debaixo da ponte. Mas não faz mal. Nasci nu", ponderava Venício, quando chegou a filha que mora em Santos. Pai e filha se abraçaram e choraram juntos. E passaram a falar dos amigos mortos.

Na pinguela, perdido e pisado, um diploma: "Ao meu pai, que seus dias sejam de alegria, que sua vida seja de felicidade. Com amor e carinho. Agosto. O seu filho Ediraldo Alves Menezes".

As tropas da Polícia Militar conseguiram isolar, às 7h30, centenas de pessoas na área que sobrou da vila. O povo comentava, protestava, chorava. Mais um saqueador era detido, apanhava e era arrastado pelos policiais.

Exaltado, um homem culpava os bombeiros. O comandante Nilauril, descontrolado, se encarregava pessoalmente de agarrá-lo, e devolver as ofensas: "Eu não admito que denigram minha corporação!", berrava o comandante, enquanto, com o cinto na mão, surrava o homem às vistas do povo e dos jornalistas. O trauma não tinha medida. A emoção da dor era mais forte que o sol, a essa altura já forte, aumentando o cheiro de carne queimada.

Fotos:

O guerreiro, impotente, recupera os restos que seu maior inimigo deixou para trás

Na água imunda que os sobreviventes evitavam, os corpos destruídos de possíveis amigos

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