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HISTÓRIAS E LENDAS DE CUBATÃO - VILA SOCÓ - (19)
A tragédia, em A Tribuna de fevereiro/1984-B

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Uma das maiores tragédias de Cubatão, senão a maior, foi o incêndio de um oleoduto da Petrobrás que passava sob uma favela, Vila Socó, destruída pelas chamas com a morte de cerca de uma centena de pessoas, em 24/2/1984. No domingo, 26 de fevereiro de 1984, o jornal santista A Tribuna publicou extensa matéria sobre a tragédia. As imagens das páginas foram tratadas pelo jornalista Allan Nóbrega, que em 24/2/2014 cedeu cópias a Novo Milênio. Esta é a página 2 dessa edição (ortografia atualizada nesta transcrição):
 

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Página 2 do jornal A Tribuna de Santos, de 26 de fevereiro de 1984

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A tragédia que estava prevista

A tragédia consumou-se na Vila Socó, em Cubatão, matando dezenas de seres humanos, mas desta vez as autoridades responsáveis não poderão jamais atribuir ao acaso ou a fatos imprevisíveis um dos mais graves acontecimentos já ocorridos em toda a Baixada Santista. Autoridades federais, estaduais e municipais, bem como dirigentes da Petrobrás, sabiam do risco a que estavam expostos os moradores da favela sobre palafitas que se tornou o símbolo da crise habitacional que assola toda a a região. Ninguém, diante do quadro dantesco dos corpos de homens, mulheres e crianças calcinados pelas chamas, poderá atrever-se a minimizar a responsabilidade que lhes cabe, por inteiro, por essa hecatombe que deixa por demais evidente o menosprezo pela vida de milhares de trabalhadores.

Afinal, a operação de um complexo de indústrias de alta periculosidade, como o de Cubatão, exige, acima de tudo, parâmetros de segurança de alto nível, inspeção constante não só das unidades que o compõem, como também do sistema de dutos subterrâneos de produtos químicos que cruza toda a cidade. Sem isso, todo o núcleo urbano acabará por se transformar num barril de pólvora, o que parece já ter acontecido. O acidente verificado no oleoduto, que liga a Refinaria Presidente Bernardes ao terminal de São Sebastião, ocorrido em Bertioga, e outros vazamentos que se tornaram corriqueiros e impunes na região da Serra do Mar, já deixavam claro que não são satisfatórias as condições dessas tubulações. Se, até agora, procurava-se quantificar o vulto dos prejuízos ecológicos infligidos à região de Bertioga, a tragédia de Vila Socó não pode ser mensurada, pois é impossível aferir quanto vale a vida de cada uma das pessoas imoladas.

Outro aspecto altamente preocupante foi a extrema morosidade com que foram tomadas medidas efetivas para salvaguardar a população de Vila Socó. O forte odor de gasolina foi sentido por todos durante a tarde, e no começo da noite moradores chamaram técnicos da Petrobrás, que estiveram no local e não deram maior importância ao fato. Pelo menos não convocaram equipes de segurança, para tentativas de controle da situação, que, como ficou óbvio depois, era de extrema gravidade. Talvez a tragédia não assumisse a dimensão de catástrofe que tanto nos horroriza, se tivesse havido o mínimo de prudência indispensável a uma área tão perigosa, cruzada em toda a sua extensão por dutos condutores de produtos de facílima combustão.

Ainda aqui, há que se verificar a insensibilidade dos que operam unidades industriais de vulto, em relação à comunidade. A crise econômica e social que vivemos está a calejar a todos, levando-nos a fechar os olhos a situações extremamente injustas. E a alegação da Petrobrás, de que sempre advertia sobre os riscos que representava a ocupação de Vila Socó por barracos, nada acrescenta em favor da empresa ou das autoridades em relação à tragédia. Se trabalhadores lá vivem é porque não têm condições financeiras para mudarem-se para outros locais mais seguros e menos poluídos. Mesmo na hora de luto por que passamos é preciso pensar no problema dos que ficaram desalojados e cuidar de encontrar terrenos onde possam erguer novas moradias. É o mínimo que a sociedade lhes deve, neste momento constrangedor para todos.

Cubatão

Vicente Cascione

Neste sábado à tarde, na Redação do jornal, plena de companheiros, há um sentimento unânime de indignação e de dor.

Centenas de fotos espalhadas sobre a mesa, revelam a dimensão da tragédia.

Venho à velha máquina de escrever, com este aperto na garganta, e na alma trago a ira, aguda neste instante, de meu inconformismo, de sempre, diante da incompetência de sempre, da incúria de sempre, do desleixo de sempre, do desgoverno de sempre, da falta de vergonha de sempre, do despudor de sempre, das omissões de sempre, da imprevidência de sempre, da desídia de sempre, da negligência de sempre, da insensibilidade de sempre, do desrespeito pela vida humana, de sempre, da falência das instituições de sempre.

Este é o País em que a maioria incompetente governa, decide, legisla, manda, desmanda, comanda, em todos os setores, tendo à sua mercê a cobaia em que se transformaram a Nação e seu povo, aos quais nada lhes vale. Até mesmo aquele Deus brasileiro, único solidário com que contavam, tornou-se impotente diante da legião de canalhas que está a levar tudo à extinção.

Nesta tragédia prevista e adivinhada – e este jornal repetidamente bradou, advertindo, diante dos cegos e surdos – renovaram-se os fatos de sempre. Famílias dizimadas, pessoas que perderam entes queridos às dúzias, às grosas. Heróis, em esforço sobre-humano, na inútil tentativa de salvamento. Técnicos, entre aspas a dar explicações e desculpas repugnantes. Chefes buscando fugir às responsabilidades. Autoridades, entre aspas e entre pelotões de segurança, a vistoriar o que resta dos escombros. E a solidariedade fraterna que aparece sob o impacto de campanhas ou de momentos de dor, e que desaparece no dia-a-dia de uma sociedade sofrida, egoísta, agressiva e desesperançada.

Amaldiçoada Cubatão, estigmatizada Cubatão, abandonada à própria sorte, esta Cubatão inflamável, intoxicada, envenenada, onde habitam o medo, a miséria, as mazelas e as angústias.

Amaldiçoada Cubatão, em que o ar se tinge de cores funéreas, na dança das nuvens mortais, que as mãos assassinas libertam pela boca aberta das chaminés.

Amaldiçoada Cubatão das vilas paupérrimas, dos casebres edificados sobre o lodo, onde brincam crianças, como meus filhos, e para as quais negou-se o futuro.

Amaldiçoada Cubatão, em que as serras crestadas, em carne viva, agonizam e morrem.

Amaldiçoada Cubatão, das soluções adiadas, das embromações e do abandono.

Quantas tragédias ainda se escondem, na espreita, na perspectiva de cada madrugada?

Mesmo esta catástrofe, que se anunciava desde horas antes, não foi evitada.

Por que não se requisitou o concurso do Exército para que, em operação rápida e eficiente evacuasse toda a Vila?

Onde estão as tais comissões de Defesa Civil?

Por que tanta demora, tanta irresponsabilidade, tanta incompetência, tanta indiferença?

Morreram pessoas pobres, anônimas, cuja vida não tem valor no já tão barato mercado da vida humana, neste País.

Vejo estas criancinhas atônitas, assustadas, sobre os degraus do ginásio. Olhinhos abertos, rostos marcados pela dor, violados em sua inocência. Estes olhos não esquecem. Não esqueço estes olhos.

Estas crianças que nada têm e que convivem com a dor, a miséria, o sofrimento e as privações têm em seus corações a semente do ódio santo que um dia as conduzirá a marchar sobre os cadáveres dos que somente lhes impuseram,na vida, a pena de viver.

Minha repulsa, diante de todos os culpados, que todos conhecemos, apesar de se manterem, como sempre, ocultos, oficialmente, sob o sórdido manto da impunidade.

Minha ira, diante de todas as tragédias em gestação, no ventre espúrio da incompetência, que os incompetentes fecundam, neste triste país.

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