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HISTÓRIAS E LENDAS DE S. VICENTE - BIBLIOTECA - Na Capitania de S.V.
Washington Luís e a capitania vicentina (4)

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Além de governador paulista e presidente do Brasil, Washington Luiz Pereira de Souza foi escritor e historiador, sendo responsável pela construção dos monumentos históricos do Caminho do Mar, na subida da serra entre Santos e São Paulo, em 1922, para comemorar o centenário da Independência do Brasil.

Uma das suas mais importantes obras foi esta, Na Capitania de São Vicente, publicada em 1956 (um ano antes da morte do autor) pela Livraria Martins Editora, da capital paulista. Com 341 páginas mais 7 introdutórias, a obra foi impressa pela Empresa Gráfica Revista dos Tribunais, também de São Paulo.

O exemplar de número 956 foi cedido a Novo Milênio para digitalização, pela Biblioteca Pública Alberto Sousa, de Santos, através da bibliotecária Bettina Maura Nogueira de Sá, em maio de 2010. Páginas 31 a 46, com ortografia atualizada:

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Na Capitania de São Vicente

Washington Luís

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Comparação de letras, citada pelo autor na Nota 2

Imagem publicada na página 30-A da obra

 

Capítulo III - Capitanias Hereditárias

Ainda Martim Afonso de Sousa navegava com sua esquadra expedicionária pelas costas da América do Sul e já o rei de Portugal, d. João III, deliberava a distribuição do Brasil em capitanias hereditárias, por alguns de seus vassalos, e tal lhe fizera saber em carta de 28 de setembro de 1532, de que fora portador João de Souza.

Martim Afonso estava no porto de S. Vicente, e aí esteve um pouco mais de 13 meses, à "espera de recado da gente que mandara ao sertão a buscar ouro", quando lhe chegou notícia dessa deliberação.

Tendo aportado a 22 de janeiro de 1532 ainda aí se conservava a 4 de março de 1533, data em que concedeu uma sesmaria a Francisco Pinto (Apontamentos Cronológicos de Azevedo Marques).

Retornou a Lisboa em meados de agosto de 1533 [1] para dar conta ao rei do resultado de sua expedição. Sem dúvida d. João III, tomando conhecimento desse resultado, e dele se contentado, nomeou Martim Afonso capitão do mar da Índia, a 19 de dezembro de 1533, para onde ele partiu a 14 de março de 1534.

Antes da partida para a Índia, antes de receber a doação da capitania de S. Vicente, já Martim Afonso havia passado procuração a sua mulher, d. Anna Pimentel, em 4 de março de 1534, para cuidar e tratar de todos os seus negócios.

Com o sistema adotado, feito depois dessa partida, conforme se verifica pelas datas das cartas de doação e de foral, expedidas no correr e depois de 1534, repetia-se, no Brasil, o que se havia feito na ilha da Madeira e no arquipélago dos Açores, mas não se levando em conta que as situações dessas possessões eram bem diferentes. Naquelas ilhas desabitadas, não havia a combater selvagens cruéis e antropófagos, nem nelas havia minas de ouro cobiçadas por outros países, contra os quais haveria que pelejar.

Aquelas ilhas pequenas estavam próximas ao Portugal continental, tornando-se habitual a freqüência e mais fácil a sua defesa; o Brasil enorme estava situado num continente imenso, a grandes distâncias marítimas, tornando dificílimas as comunicações raríssimas com a metrópole, num tempo em que "os mares começavam a ser navegados".

***

Não tem aqui cabimento o exame para se classificar ou não como feudal o regime das capitanias hereditárias. O feudalismo, que ficou marcado com a invasão dos bárbaros e a dissolução do império romano, foi se fazendo aos poucos e se transformando lentamente através de toda a idade média.

As capitanias hereditárias foram estabelecidas por diplomas assinados por d. João III, rei absoluto de Portugal, e neles se acham os seus elementos constitucionais.

A Capitania de S. Vicente foi doada a Martim Afonso de Souza, em duas cartas régias, ambas datadas de Évora, e que se podem ler no Registro Geral da Câmara da Vila de S. Paulo, nas páginas 385 e 397 do volume I. A primeira em data – 6 de outubro de 1534 – chamada Foral, discrimina quais os direitos, foros e tributos que o capitão-donatário auferiria nessas terras e quais os que o rei reservava para a coroa dos seus reinos. São eles os seguintes:

1º – dar e repartir em sesmarias as terras, conforme as Ordenações do Reino, a quaisquer pessoas, contanto que cristãs, livremente e sem foro algum, salvo o dízimo à Ordem do Mestrado de Nosso Senhor Jesus Cristo que, diga-se logo, pertencia ao rei, não podendo, porém tomá-las para si, nem para sua mulher, nem para o filho herdeiro.

2º – reservar para o rei o quinto (a quinta parte) de qualquer sorte de pedrarias, pérolas, aljôfar, ouro, prata, coral, estanho e chumbo, que os sesmeiros encontrassem na capitania, sua costa, rios e baías, pertencendo ao donatário a redízima.

3º – reservar para o rei, ao qual pertenceriam exclusivamente, todo o pau-brasil e também qualquer especiaria ou drogas, quaisquer que fossem.

4º – reservar para a Ordem de Cristo o dízimo de todo o pescado da capitania, não sendo à cana; isto é, de cada dez peixes um, ficando-lhe a meia redízima, isto é, de cada vinte peixes um.

5º – permissão para mandar trazer de quaisquer cidades, vilas e lugares do reino – a não ser escravos e outras coisas proibidas – qualquer sorte de mercadoria e livremente vendê-las, mesmo para fora do reino, sem pagar direitos, salvo as cisas.

6º – dar permissão aos estrangeiros de lá comerciarem pagando as dízimas e redízimas, posto que já tivessem pago em outros portos dos reinos.

7º – entrada livre de artilharia, salitre, enxofre, chumbo e coisas de munição de guerra desde que introduzidos por cristãos súditos do rei de Portugal.

8º – interdição de carga e descarga de navios, salvo com licença do donatário.

9º – interdição de comércio direto do gentio da terra com estrangeiros, devendo ser feito por intermédio do donatário.

10º – comércio livre com as outras capitanias.

11º – autorização para os alcaides-mores perceberem os direitos, e tributos estabelecidos nas ordenações.

12º – autorização para perceber direitos de passagens nos rios, onde houvesse necessidades de estabelecê-las.

13º – obrigação dos tabeliães nomeados pagarem quinhentos réis anuais pelos seus ofícios.

14º – obrigação de todos os moradores servirem nas guerras com o capitão, quando necessário. E pouco mais.

Na segunda carta régia – datada de 20 de janeiro de 1535, posterior de mais de 3 meses ao Foral – de seu próprio moto, certa ciência, poder real e absoluto – fez mercê e irrevogável doação, de juro e herdade, a Martim Afonso de Souza, para ele, seus descendentes e sucessores para todo o sempre de cem léguas de terras na costa do Brasil separadas em duas partes a saber: a primeira de 55 léguas começando a 13 léguas ao Norte do Cabo Frio até o rio Curparê (hoje Juqueriquerê); a segunda parte começando no rio de S. Vicente até doze léguas ao Sul de Cananéia; nessas divisas indicadas deveriam ser postos padrões, com as armas reais, e deles correriam linhas diretas entrando para Oeste pelo sertão adentro e terra firme, tanto quanto fossem as conquistas do rei de Portugal, abrangendo no mar as ilhas adjacentes até dez léguas.

Sobre essas terras, que incluíam a baía do Rio de Janeiro, teriam Martim Afonso e seus descendentes jurisdição cível e criminal, conforme abundantes cláusulas que procurarei resumir adiante. Nessas terras, porém, ficavam encravadas dez léguas de costa, desde o rio Curquerê, até o braço Norte do rio de S. Vicente, doadas a Pero Lopes de Souza. As linhas diretas, que dos padrões partiriam para o sertão a Oeste, iriam até encontrar a linha indecisa Norte-Sul, a do tratado de Tordesilhas, a qual saindo da ilha Marajó iria fenecer pouco mais ou menos na ilha de Santa Catarina.

Nessa carta de mercê e doação se repetia a concessão de direitos e tributos que ficavam pertencendo ao rei e os que eram outorgados ao donatário, acrescentando-se, porém, que este poderia:

1º – pôr ouvidor para conhecer das ações novas até dez léguas de sua sede, e dos agravos e apelações de toda a capitania, e para estar presente às eleições de juízes e oficiais, alimpar e apurar as pautas e passar aos respectivos oficiais as cartas de confirmação de seus cargos, podendo pôr meirinhos e escrivães e mais oficiais necessários.

2º – criar e prover tabeliães do público e judicial que julgasse necessários.

3º – fazer vilas em todas as povoações, "as quais se chamarão vilas e terão termo, jurisdição e liberdades e insígnias, segundo forma e costumes do reino de Portugal, nas povoações, porém, que estivessem ao longo da costa e dos rios navegáveis; nas outras povoações pelo sertão e terra firme não poderia criar senão tendo seis léguas de termo para cada uma delas, e depois destas criadas não poderia fazer outras sem licença do rei" (Notar a data deste poder).

4º – arrecadar para si todas as rendas das alcaidarias-mores que fossem criadas.

5º – possuir exclusivamente todas as moendas de águas marinhas de sal, e só a ele cabendo dar licença para fazer tais moendas, concertando os foros e tributos, que lhe pertenceriam.

6º – concessão de vinte léguas ao longo da costa, livres e isentas de quaisquer direitos ou tributos, porém separadas em quatro ou cinco partes onde as escolhesse.

7º – permissão para mandar para Lisboa, dos escravos que resgatasse, 48 peças anuais, livres de direitos.

Regulava ainda a ordem de sucessão na capitania, as armas que deveria ter o donatário e estabelecia o nome Souza que deveria usar o donatário; e mais que a capitania não podia ser despedaçada, ou separada, conservando-se sempre íntegra, estabelecendo que nela não poderia entrar em tempo algum corregedor, nem alçada, nem outras justiças, ainda que as ordenações fossem contrárias e ficando suspensa a lei mental, e tudo isso para todo o sempre.

As outras cláusulas são pouco mais que desenvolvimentos longuíssimos das concessões já feitas no Foral, nelas estabelecendo penas.

As repetições "para todo o sempre", "derrogação das ordenações", "suspensão da lei mental", pouco valor tinham, como tudo o mais, pois que poderiam ser revogadas a qualquer tempo, visto como ao rei absoluto, que fazia a lei, cabia revogá-la quando assim julgasse que convinha assim fazer.

Apesar das informações colhidas por Martim Afonso de Souza, a geografia da costa do Brasil ficara ainda tão mal conhecida, que d. João III, querendo dar as maiores porções aos irmãos Souza, como ele anunciara, deu-lhes bem menor superfície de terras no Brasil, do que aos outros donatários.

É fácil de verificar.

As capitanias doadas constavam de 50 léguas de frente nas costas do mar e com os fundos até onde chegassem as chamadas conquistas de Portugal no Brasil.

Ora, desde o Cabo de S. Roque até o Cabo Frio, a costa do Brasil corre sensivelmente de Norte a Sul, infletindo-se ligeiramente para Oeste; aí, tendo-se o rosto para África, poder-se-iam marcar 50 léguas de frente para cada capitania com os fundos até às conquistas de Portugal, isto é, até a linha do tratado de Tordesilhas.

Mas do Cabo Frio para o Sul essa costa dobra-se visivelmente para o Oeste de modo que nas doações feitas a Martim Afonso e, aí, a Pero Lopes, poucas léguas se poderiam contar de Norte a Sul, só podendo ser medidas, quase na totalidade, na costa para o Oeste, o que, por conseqüência, estreitava e diminuía a capitania de Martim Afonso, na sua primeira porção, limitando-a ao Norte com terras doadas a outros e logo encontrando a Oeste a linha do tratado de Tordesilhas. Menor frente e menor fundo.

Na segunda porção, por essa mesma e maior inflexão da costa para o Oeste, mais depressa ainda essa capitania esbarraria com a linha de Tordesilhas. E ainda tinha ela encravadas, entre o Rio de Juqueriquerê e o Rio S. Vicente, dez léguas de costa, que constituíam a capitania de Santo Amaro, doada a Pero Lopes de Souza e que pouca coisa era, apenas uma orla marítima encontrando à pequena distância, a Leste, a Norte, e a Oeste, a capitania de Martim Afonso.

Um simples, mesmo despreocupado olhar sobre a carta geográfica do Brasil, onde se tracem as capitanias hereditárias, conforme a distribuição feita por d. João III, mostra que a Capitania de S. Vicente seria uma das menores, como mostra a carta junta.

Bem pouca coisa, em superfície, comparada com as outras capitanias, foi o que recebeu o comandante da expedição de 1530. Mas a verdade é que d. João III bem pouca coisa deu aos donatários; pois que as cartas de doações e os forais foram apenas papéis de chancelaria, onde se determinava a obrigação de ocupar e povoar terras em poder de selvagens cuja única aspiração, cujo fim único na vida era fazer guerra bravia e tão cruel, que os vencidos não eram escravizados, nem lhes era dada a morte simplesmente, mas eram aprisionados para serem devorados.

Essas doações pouca coisa ou nada representavam, pois que a posse e ocupação das terras doadas só se fariam a ferro e fogo, pela força, que os donatários não possuíam. As cartas de doação não foram mais que uma espécie de autorização para, em terra, conquistar senhorios para o rei de Portugal no achamento de Cabral e tudo à própria custa dos donatários. Foi em suma, uma espécie de grilo, na moderna acepção paulista, quando se povoou, nos princípios do século 20, o sertão desde os rios do Peixe e Aguapeí ao Paranapanema, território então figurado nos mapas do Estado de S. Paulo da época, como terrenos pouco conhecidos e habitados por selvagens.

Pode-se mesmo afirmar que os célebres grilos paulistas, nos princípios do século 20, tinham mais eficiência que os concedidos por d. João III, no século 16. O Estado de S. Paulo já se havia constituído com as fronteiras da antiga província imperial, que aí se limitavam pelos rios Grande, Paraná e Paranapanema.

Essa zona se compunha de terras devolutas, que, segundo a Constituição da República, pertenciam ao domínio do Estado. Este nenhum interesse tinha em conservá-las; ao contrário desejava vê-las cultivadas, sob posse e domínio privados, e sobre tal legislou. As estradas de ferro Sorocabana, Paulista e Noroeste por elas já avançavam, ligando-as a centros populosos e consumidores, com polícia, justiça, enfim tendo todo o próximo aparelhamento da civilização em função.

Os donatários poucos recursos tinham ou não tinham recursos de espécie alguma. Não podiam equipar esquadras que dos corsários defendessem suas doações, nem mesmo podiam organizar forças militares que as assegurassem dos ataques aborígines. Tampouco dispunham do poder absoluto para obrigar colonos a se transportar para terras brutas ou para nelas permanecer, cultivando-as. D. João III não deu assistência material, nem a poderia dar, aos donatários, para essa obra formidável de povoamento e colonização, que ainda hoje, quatrocentos anos depois, ainda não se fez completamente, por causas que direi adiante.

Nessa terra bruta, que era o Brasil de 1534, habitado por selvagens nus e antropófagos, que só pescavam o peixe para a comida do dia, que não cultivavam, que não comerciavam, que ignoravam as relações civis da sociedade; nessa terra com transportes marítimos raríssimos, demorados e perigosos, banhada por mares infestados de piratas e corsários, nessa terra as mesquinhas dízimas e redízimas sobre coisas inexistentes, direitos de passagens em rios, os somíticos quinhentos réis anuais dos tabeliães, tudo somiticamente contado, recontado, descontado, nada seduzia o donatário, desiludido de descobrir metais preciosos, e muito menos nela se reteriam colonos.

Pedro Taques e Frei Gaspar afirmam nos seus escritos que na esquadra de Martim Afonso vieram muitos fidalgos, que permaneceram. Se vieram, pertenciam à pequena fidalguia de fresca data, nobilitados pelos reis de Portugal pelos seus feitos heróicos, entre os quais estaria a temeridade de ficar, então, nas selvas do Brasil.

Nenhum deles, a não ser o comandante e seu irmão, pertencia à nobreza de linhagem portuguesa. Muitos seriam nobres por serem aparentados com pessoas que exerciam cargos, cujo exercício conferia nobreza. E, se vieram, não permaneceram, como os Góis, os Pintos.

Algumas pessoas, que vieram na esquadra, ficaram sem dúvida em S. Vicente. Mas seriam em pequeno número, como já observei, e não eram fidalgos. O rei premiava e armava fidalgos, como mais tarde a monarquia brasileira fazia comendadores e a República criava coronéis da Guarda Nacional.

Não é demais notar que, salvo algumas exceções, não eram esses fidalgos menos broncos, nem mais sensuais que os homens que, na idade média partiam em cruzadas para conquistar do muçulmano o túmulo de Cristo. Lá iam alguns por motivo de fé religiosa, mas outros acobertavam a cobiça ou o espírito de aventura com essa fé religiosa para devastar cidades.

Aqui eles partiriam para o sertão a procurar braços para seus trabalhos, e, afastando as fronteiras dos senhorios de seus reis, fundavam cidades, concorrendo para a civilização de um continente. E estes aqui, duros e rijos, constituíram, pela mestiçagem, como adiante procurarei demonstrar, uma raça forte.

Se aqui tivessem ficado os fidalgos de linhagem, imbuídos de preconceitos de cor e de raça, amolecidos pelo viver na corte, ou habituados a serem obedecidos nos seus morgadios, não haveria Brasil.

Só essa gente rude, que ficou para mestiçagem, poderia deixar aos seus descendentes o nome de bandeirantes. Só os seus descendentes imediatos, os meio-sangues, os mamelucos, como injusta e desprezivelmente eram então conhecidos, poderiam afrontar e vencer as agruras do sertão.

O verdadeiro valor da gente de S. Paulo nasce com os bandeirantes, com eles se enriquece nas minas de ouro, mais tarde descobertas, e depois se fizeram os nobres de hoje, que contam 400 anos na sua ascendência.

Penso mesmo que essa descendência só é nobre por proceder daqueles que, antes nada tendo e nada sendo, vieram, desesperados por qualquer motivo, para aqui permanecer, conquistar, semear, apascentar gados, povoar a terra, e assim constituíram os antepassados valorosos de que se orgulham aqueles de que S. Paulo se orgulha. É desses que se deve contar a nobreza paulista, e não dos camareiros da casa real, dos escudeiros, dos infantes ou dos criados dos duques e barões, que aqui não ficaram.

Nesse tempo os fidalgos não povoavam. Desprezando o comércio, a indústria e a lavoura, procuravam o exército, a armada ou o clero. Eram generais, comandantes de navios ou bispos.

As poucas pessoas que vieram para as capitanias, nesse período, foram náufragos, degradados, fugidos de bordo, que se embrenhavam nas selvas e muitos deles tomavam os costumes dos canibais estúpidos, ou eram aventureiros à procura de novas aventuras.

O padre Manuel da Nóbrega, pouco depois, em 1549, ainda escrevia ao padre Mestre Simão, que "o que vinha em clérigos era a escória do reino" (Cartas Jesuíticas, vol. 1º, pág. 77). Pode-se imaginar o que seria o resto.

Não estudei detidamente a ação dos donatários em as outras capitanias. É sabido, porém, que alguns não procuraram sequer conhecer as suas terras, como João de Barros; Aires da Cunha naufragou antes de lá chegar. Fernão Álvares de Andrade nem tentou, e se tentou, não chegou a obter foral das suas; Pero Lopes de Souza morreu pouco depois da doação, nada tendo empreendido; outros inteiramente descorçoados abandonaram as suas. Francisco Pereira Coutinho morreu assassinado na Bahia pelos índios que o devoraram. Todos, diante das dificuldades imensas e dos obstáculos insuperáveis encontrados, com exceção de Duarte Coelho em Pernambuco, iam largando as terras das costas do Brasil.

Como todos os outros donatários, Martim Afonso de Souza, no tempo da doação, não dispunha de recursos para empreender por conta própria uma obra de colonização no Brasil, bruto e selvagem.

Em S. Vicente, nada fez pela sua capitania, quer usando dos recursos da fazenda real, quando nessas terras esteve como comandante da esquadra expedicionária, quer depois quando donatário. Jamais a ela voltou.

Alonso de Santa Cruz, como disse no Capítulo III, informa que os portugueses, quando viajavam para Calicute e Málaca, costumavam meter-se em altura de 35 a 40 graus, para com facilidade dobrar o Cabo da Boa Esperança.

Martim Afonso de Souza fez essa viagem quatro vezes, indo e voltado como capitão do mar (1534 e 1539) e indo e voltando como governador da Índia (1541 e 1546), tendo, na primeira viagem arribado na Bahia; jamais tocou em S. Vicente, sua capitania, mostrando assim nenhum interesse por ela.

A indiferença pelas cem léguas de costa, que lhe foram doadas no Brasil, foi tão grande, que sabendo que o conde da Castanheira nelas queria uma parte, comunicou-lhe de Diu a 14 de dezembro de 1535: "Pero Lopes me escreveu que vossa senhoria queria um pedaço dessa terra do Brasil, que lá tenho; mande-a tomar toda ou a que quiser, que essa será para mim a maior mercê e a maior honra do mundo" (História da Colonização Portuguesa no Brasil, vol. 3º, pág. 107).

Porém, há ainda mais, ou ainda há menos. Martim Afonso de Souza, na Breve e Sumaríssima Relação dos seus serviços (já citada) que prestou ao rei de Portugal, durante 41 anos, deveria se referir aos que empreendeu na Capitania de S. Vicente.

Era natural, lógico e mesmo indispensável que numa justificação de trabalhos, feita para obter remuneração, graças, favores, benefícios, alegasse os serviços prestados na fundação das vilas de S. Vicente e de Piratininga na costa do Brasil, na nomeação nelas de tabeliães, na concessão de sesmarias a numerosos fidalgos da sua esquadra, segundo Taques e Frei Gaspar, que em S. Vicente teriam ficado para a colonização dessas terras e segurança nelas dos grandes senhorios de d. João III.

Nada diz ele sobre S. Vicente nem mesmo se refere ao nome dessa Capitania [2] que já lhe pertencia ao tempo da apresentação do memorial.

Nessa descrição de serviços nas costas do Brasil apenas escreve:

"por el-rey ter novas que no Brasil havia muitos franceses me mandou lá em uma armada, onde lhes tomei quatro naos, que todas se defenderam muito valentemente, e me feriram muita gente e assi nisto como no descobrimento de alguns rios, que me el-rei mandou descobrir, tardei perto de tres anos, passando muitos trabalhos e muitas fomes, e muitas tormentas, até por derradeiro me dar uma tão grande, que se perdeu a nau em que eu ia, e escapei em uma tabua, e mandou-me el-rei vir de lá a cabo de tres anos."

Sobre vilas, sobre colonização por fidalgos, sobre conquistas e posse de terras, sobre criação de vilas nada, absolutamente nada, diz ou alega. Sobre a sua capitania não escreve uma só palavra.

A ignorância sobre São Vicente foi tão grande, que nesse memorial, que se diz escrito pela própria letra de Martim Afonso, a capitania que lhe foi doada é indicada como a Capitania de Tamaracá! Nem mesmo o nome de São Vicente é referido.

O descaso, o desprezo que Martim Afonso sempre demonstrou pela sua donataria, permitiu, ainda durante a sua vida, fosse nela fundada, na baía de Guanabara, a França Antártica, mais tarde transformada em capital da colônia com o nome de São Sebastião do Rio de Janeiro, numa capitania real, que o rei aí criou, sem compra, sem indenização, sem reversão expressa à coroa.

Não estava no seu temperamento, nem nas suas aspirações, nem nas suas posses, trazer colonos para, entre antropófagos, vagarosamente lavrar terras incultas e, então, sem esperanças de remuneração imediata.

Os poucos, pouquíssimos feitos, que benevolamente se atribuem a esse donatário, na terra de São Vicente, são contestáveis.

Assim, para a cana-de-açúcar, que dizem fora importada por Martim Afonso de Souza da ilha da Madeira para ser plantada em São Vicente, deve-se entender, ter sido trazida espontaneamente por algum colono ousado e destemido, (e, talvez, tivesse vindo de algum lugar bem mais vizinho a S. Vicente), pois que não é indicado nenhum fundamento autêntico para essa providência.

Pigafetta, que acompanhou a Fernão de Magalhães, e dessa viagem fez o relato, escreveu que a esquadra de circunavegação chegou ao Rio de Janeiro a 13 de dezembro de 1519, aí estacionando treze dias, tendo tido contato com os indígenas. Pigafetta escreveu que "ficou estranhamente impressionado pelos novos frutos", que aí viu: os "ananases", que são parecidos com grandes pinhas redondas e têm gosto muito doce, magnífico, e as "batatas" a que encontrou sabor semelhante ao da castanha e a "cana-de-açúcar", "a cana doce".

Já em 1519, a cana-de-açúcar era conhecida na costa do Brasil, e, parece, que os selvagens já a apreciavam. É apenas uma reportagem de Pigafetta, mas suficiente para mostrar que não seria preciso ir à ilha da Madeira para trazer a S. Vicente a cana-de-açúcar (Stefan Zweig – Fernão de Magalhães, trad. de Maria Henriques Oswald, F. K. L. pág. 140, 2ª ed. da Livraria Civilização).

Martim Afonso de Souza e seu irmão Pero Lopes de Souza, ao que parece, fizeram um contrato com João Venist, Francisco Lobo e Vicente Gonçalves para formação de um engenho para fabricação de açúcar, ato agrícola comercial, para o qual os dois Souza entraram apenas com as terras, entrada tão vã, como a doação da capitania por d. João III, igual à que os papas fizeram às nações ibéricas, quando por elas distribuíram o mundo a descobrir [3].

Atribui-se-lhe também a providência de proibir que os colonos subissem ao planalto e que fossem ao campo.

Não se compreende o motivo de tal proibição. Evitar que descobrissem o caminho das minas tão cobiçadas? Isso é pueril, pois que redundava apenas na impossibilidade de alargar a conquista do interior, pela ocupação do planalto, "de bons ares e de bons campos", próprios para produção de mantimentos e criação dos gados, de que o litoral tanto precisava para poder subsistir. Além de pueril, seria contraditório ou incoerente fundar uma povoação no campo, como afirma Pero Lopes, a 9 léguas do mar, e proibir que a esse campo fossem os colonos.

Aliás essa proibição não se encontra em nenhum documento colonial. A provisão expedida por d. Ana Pimentel, mulher e procuradora de Martim Afonso, em 11 de fevereiro de 1544, da qual alguns cronistas deduziram a revogação dessa proibição, a esta não se refere, nem do seu contexto se infere que ela tivesse havido. Ao contrário, é nessa provisão que se acha a proibição de ir ao campo no tempo em que os índios andassem em sua santidade (?), dependendo a ida de licença do capitão loco-tenente, licença, da qual sempre prescindiram os colonos para entrar ao sertão [4].

Os franceses traficavam pau-brasil e papagaios com os indígenas em Cabo Frio, iniciando "um comércio que ia tomando pé". Por motivo das guerras religiosas na França, alguns deles vieram fundar na baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, a França Antártica, apossando-se do território que o rei de Portugal considerava seu, segundo o Tratado de Tordesilhas e que doara a Martim Afonso; fizeram o forte Coligny, deram o nome de Villegaignon a uma ilha, tentaram fundar a cidade de Henriville, estabelecendo a religião reformada calvinista, tudo dentro da donataria de Martim Afonso, pois que a Capitania de São Vicente começava a 13 léguas ao Norte de Cabo Frio.

Martim Afonso, valente e destemido soldado português, católico, donatário da capitania por mercê de d. João III, não tomou uma decisão, não deu uma ordem, não disse uma palavra, não fez um gesto sequer para auxiliar seu rei, para defender a sua fé, para conservar as suas terras. Pelo menos os cronistas, sempre reverentes, e as crônicas locais, sempre generosas para com ele, nada dizem a respeito.

A defesa do Rio de Janeiro foi feita pelo rei por intermédio do governador-geral Mem de Sá.

Martim Afonso de Souza "veio e viu que não havia o que vencer". Militar, capitão-mor de esquadra, fidalgo ambicioso, entendeu que não podia ficar a conquistar indígenas boçais ou a povoar terras que não tinham ouro, prata e pedras preciosas.

Partiu para as Índias Orientais e nunca mais se preocupou com a Capitania de S. Vicente.

Lá, na Ásia, serviu como capitão do mar de 1534 a 1539, voltou à Europa e foi promovido a governador da Índia de 1545 a 1546, e depois na Europa de novo se conservou na corte de Portugal, tendo falecido em 1570.

Pode-se pois, afirmar, sem exageração, que o seu único ato relativo à capitania de S. Vicente foi o de ter passado procuração à sua mulher, d. Ana Pimentel, para administração de seus bens, e isto mesmo antes de receber a capitania, ato bem precário na verdade com o qual ela se limitou, quase que exclusivamente, a fazer nomeações de capitães-loco-tenentes, sem nenhuma intervenção ativa ou proveitosa na colônia americana.

O estado a que chegaram essas capitanias hereditárias foi deplorável; miserável era também o estado dos indígenas, bem como o dos poucos portugueses que habitavam a costa do Brasil.

Dando conta ao rei de sua inspeção nas capitanias, em 1550, pouco depois da sua chegada, Pero Borges, primeiro ouvidor do Brasil, escreveu que "os capitães-mores-loco-tenentes faziam juízes a homens que não sabiam ler nem escrever, e davam sentenças sem ordem nem justiça, cuja execução causava a maior desordem". Não havia nas capitanias homens para "serem juízes nem vereadores, e neste ofício metiam degradados por culpa de muitas infâmias, e desorelhados [5] e faziam muitas coisas fora do vosso serviço e de razão" (carta de 7 de fevereiro de 1550, Hist. da Col. Port. no Brasil, v. 3º, pág. 268). Esse tópico é suficiente para mostrar o que eram, em 1550 a justiça e a administração locais. Não é necessário transcrever os demais, que dão a mesma impressão.

O próprio Tomé de Souza, em sua carta-relatório, a 1º de junho de 1553, depois da visita que fez às capitanias, escrevia ao rei:

"Vossa Alteza deve mandar que os capitães próprios residam em suas capitanias e quando isto não (possa ser) por alguns justos respeitos, ponham pessoas de que Vossa Alteza seja contente, porque os que agora cá servem de capitães não os conhece a mãe que os pariu"...[6]

Frase enérgica que definia cruelmente a situação.

Era a dissolução completa, era a ruína total, a perda dos senhorios do Rei de Portugal no Brasil, que seria inevitável, se não fosse posto paradeiro. Isso durou desde 1534 a 1549, durante 15 anos, e disso tinha notícia d. João III, por avisos de seus vassalos como se vê na carta de Luís Góis, por exemplo (História da Colonização Portuguesa no Brasil, vol. 32, pág. 259).

A distribuição das costas do Brasil em capitanias hereditárias a vassalos portugueses, ambiciosos, mas sem recursos de espécie alguma, nenhum, absolutamente nenhum resultado produziu para Portugal nem para a colônia americana, pelo menos na Capitania de S. Vicente.

Imagem publicada na página 36-A da obra


[1] Sumária Descrição dos Serviços de Martim Afonso, que se encontra na Biblioteca de Coimbra, já citada.

[2] Nota – O Instituto Histórico e Geográfico de S. Paulo, no volume 51, pág. 215, acolheu a Brevíssima e Sumária Relação dos Serviços de Martim Afonso de Souza, por mim enviada, de acordo com a publicação da 2ª edição dos Comentários feitos pelo comandante Eugênio de Castro ao Roteiro de Pero Lopes de Souza; 2ª edição raríssima, feita em 500 exemplares, dos quais possui um o Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro. O original está na Biblioteca de Coimbra. Esse Gabinete, com delicada complacência, permitiu que fosse tirada uma fotocópia, que serviu de base para a publicação feita pelo Instituto de S. Paulo. Agora, entretanto, da. Luísa da Fonseca, antiga subdiretora do Arquivo Colonial de Lisboa, com rara cortesia e com aquiescência do professor Manuel Lopes de Almeida, bibliotecário da Universidade de Coimbra, fez tirar e me enviou um microfilme dessa Sumária e Brevíssima Relação dos Serviços, que se supõe escrita pelo próprio Martim Afonso.

Mandei, aqui ampliar e revelar esse microfilme pela "Fotoptica" (Rua de S. Bento nº 359, S. Paulo) e por essa amplificação e revelação se verifica que na primeira página – página-capa – foi emendada uma palavra "ilha de... (a referência indica a emenda) e se escreveu à margem "Tamaracá".

Uma observação atenta permite, talvez, concluir que no manuscrito da Brevíssima, (conservado na Biblioteca de Coimbra) havia sido escrito ilha de S. Vicente, e depois foi emendado por cima da palavra S. Vicente a palavra "Tamaracá". Martim Afonso não podia ignorar que a sua donataria abrangia a ilha de S. Vicente, pois que em S. Vicente esteve mais de treze meses com a esquadra exploradora. O emendador, desconhecendo sem dúvida a geografia colonial do Brasil, escreveu sobre a palavra S. Vicente a palavra "Tamaracá", e ainda colocou à margem essa mesma palavra "Tamaracá", que designava ao Norte a porção da doação de terras feita a Pero Lopes de Souza, irmão de Martim Afonso.

O copista, que serviu ao comandante Eugênio de Castro, transcreveu tal trecho do documento, não fez referência à emenda, que ora se vê no microfilme.

Atribuiu-se ao próprio punho de Martim Afonso de Souza a Brevíssima e Sumária Descrição dos Serviços. Não parece procedente tal suposição, pois que a letra da "página-capa" é exatamente a mesma do texto. Não parece razoável que Martim Afonso nesta se chamasse a si mesmo de "grande" e que declarasse que a "Relação dos Serviços" é muito breve para o muito que de sua grandeza se conta... "de sua sabida e divulgada história" por maiores que fossem as suas pretensões e vaidade. A letra de ambas – página-capa e texto – é exatamente a mesma.

E essa letra é muito diferente da letra de Martim Afonso, como se pode ver na sua assinatura, a fls. 30, que decalquei em documento do arquivo local.

A letra da "página-capa" e a "do texto" não são do século 16. Parece-me, até melhor estudo, que se possa fazer da letra de Martim Afonso, que a Brevíssima e Sumária Relação é cópia do texto da que Martim Afonso escreveu, tendo o copista, como folha de rosto, espécie de título, juntado à primeira página.

Como tudo, que se relaciona com Martim Afonso de Souza na Capitania de São Vicente tem valor, fiz esta comunicação ao Instituto Histórico de São Paulo, oferecendo-lhe também o microfilme e a sua ampliação e revelação, por intermédio do dr. Leite Cordeiro.

Esse microfilme me foi oferecido por d. Luíza da Fonseca, subdiretora do Arquivo Colonial de Lisboa.

[3] Jordão de Freitas diz que foi esse contrato feito em 1534. Martim Afonso só recebeu o Foral a 6 de outubro de 1534 e a carta de doação em 20 de janeiro de 1535. (H. C. Port. no Brasil, vol. 3º), mas cita frei Gaspar da Madre de Deus, como fonte de informação.

[4] Eis na íntegra a Provisão de d. Ana Pimentel: "D. Ana Pimentel, mulher de Martim Afonso de Souza, capitão-mor e Governador da povoaçam da Capitania de S. Vicente, Costa do Brasil, que ora por seu especial mandado, e provisam governo a dita capitania etc. Aos que este meu Alvara virem e o conhecimento pertencer, faço saber, que eu hei por bem, e me apraz, que todos os moradores da dita capitania de S. Vicente possam hir, e mandar resgatar ao campo, e a todas as outras cousas, e porem mando que no tempo que os Indios do dito campo andam em sua santidade, nenhuma pessoa de qualquer qualidade que seja, possa hir, nem mandar ao dito campo, por ser informada, que he grande perigo para a dita terra hirem laa em tal tempo, e tirando este tempo, todo o outro mandaram, e hiram, com tanto que sempre tomem licença do Capitão, ou de quem o tal cargo tiver; e nenhum Capitam, nem Ouvidor lhe não poderaa tolher, não sendo no tempo que se diz em cima, assim mando a todas as justiças, que guardem este, e o façam guardar, porque assim o hei por bem. Feito em Lisboa a 11 de Fevereiro de 1544." (Transcrita das Memórias para a História da Capitania de S. Vicente, por fr. Gaspar da Madre de Deus, nº 116, na ed. de 1797, citando o Arquivo de São Vicente).

[5] Houve tempo em que se mutilavam os ladrões e os falsários.

[6] História da Colonização Portuguesa no Brasil, vol. 3º, pág. 365.