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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - Matadouro - Biblioteca NM
Histórias do Matadouro Municipal (2-b)

 

Clique na imagem para voltar ao índice do livroEscrito apenas dois anos após a entrada em funcionamento do Matadouro Municipal de Santos, este raro livro reúne uma série de editoriais publicados pelo autor, o jornalista Alberto Sousa, no jornal santista A Tribuna, em outubro de 1917. A obra foi publicada em 1918, com impressão na Typographia Piratininga, da capital paulista.

O exemplar foi cedido a Novo Milênio para digitalização pela biblioteca pública que leva o nome desse jornalista, através da bibliotecária Bettina Maura Nogueira de Sá, em maio de 2010. A ortografia foi atualizada, nesta transcrição (páginas 9 a 15):

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O Matadouro Modelo de Santos

Alberto Sousa

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II - A questão do privilégio

Um indivíduo qualquer que, por circunstâncias fortuitas, não aprendeu a ler e escrever, pode, entretanto, adquirir de oitiva, em contato com pessoas ilustradas, um certo grau de cultura geral. Basta, para isso, que possua inteligência natural. Há, portanto, analfabetos que não são ignorantes.

Mas, quando vemos indivíduos letrados, que fizeram estudos regulares desde a escola primária até aos bancos das academias superiores, demonstrarem, nos seus discursos florentes ou nos seus pomposos artigos, que não sabem sequer superficialmente aquilo que todo o mundo aprende desde que nasce - a língua materna -, nós pensamos logo que esse indivíduo é literalmente bronco.

Não é um analfabeto - é um ignorante; e da pior espécie da casta, que é a ignorância letrada. Um homem que cursou durante longos anos os estudos, e não aprendeu sequer a escrever limpamente o idioma de seu país - não dispõe da inteligência precisa para aprender outras disciplinas mais difíceis. Não podemos, em casos tais, acreditar na jurisprudência de quem não sabe gramática.

Assim também, pelo que outros nos ensinaram e pela nossa observação direta através de um largo período de incessantes agitações no jornalismo -, sabemos que quando a opinião de um escritor é sincera, a sua elocução é clara, espontânea, persuasiva, eloqüente. Seja qual for o sentimento que o domine, elevado ou baixo, filho do amor ou produto do ódio - se ele é sincero escrevendo, a expressão lhe flui, cantante e correntia. O estilo enredado, a frase obscura, a oração pesada, arrastando-se tardonhamente através dos períodos confusos, prolixos e ininteligíveis, indicam má fé, insinceridade, manha, dissimulação e perfídia.

No adversário da Câmara de Santos, autor mental do Recurso que subiu ao Senado, a estupidez e a má fé entrelaçaram-se, vincularam-se indissoluvelmente. Por falta de inteligência, ele, que não conseguia aprender os rudimentos da linguagem portuguesa, também não adquiriu conhecimentos razoáveis de outras matérias, como se verá no decorrer deste debate; e pela improbidade moral com que agiu na questão em jogo, adulterando propositalmente a narração dos fatos ocorridos e os documentos apresentados, só reuniu contra a Municipalidade argumentos que um calouro relapso e boêmio se pejaria de subscrever.

É certo que, às vezes, um patrono hábil e de sentimentos leais, embora reconheça sinceramente que a sua causa é difícil, estimulado pelas próprias dificuldades do pleito, faz energicamente esforços sinceros por conquistar a vitória, deixando no público a impressão ardente e forte de que a justiça está inteiramente de seu lado.

Este não é o caso do advogado que patrocinou o Recurso. Incorporado há pouco ao nosso meio, estranho às correntes políticas que aqui se desdobram, indiferente às nossas dissensões e aos nossos objetivos - ele não tinha motivo algum para empregar um esforço sincero em prol de uma causa naturalmente antipática porque é contrária aos magnos interesses da terra santista e, portanto, inapelavelmente condenada pela suprema instância da opinião pública, em suas soberanas decisões.

Não se compreende que a questão do privilégio fosse levantada sobre fundamentos tão precários. Em primeiro lugar - contestaremos formalmente que a concessão do Matadouro Modelo envolva qualquer espécie de privilégio no que concerne ao abastecimento de carne verde à população do município.

Basta reler a lei do arrendamento, o edital de concorrência, o contrato lavrado com Alberto Reissman, hoje transferido à Frigorífica, e todos os demais documentos relativos ao assunto e dados à publicidade, para se ver que semelhante serviço não é objeto de privilégio algum outorgado ao concessionário do Matadouro Modelo pela Municipalidade.

A situação dos marchantes e açougueiros permanece a mesma que era antes da assinatura do contrato: só os donos do estabelecimento é que são temporariamente outros, por delegação dos donos efetivos. Os marchantes continuam a levar ali o seu gado, que é abatido pelo Matadouro, desde que esteja nas condições de salubridade exigidas pelas leis do Estado e do Município, pagas previamente as taxas legais; os açougueiros continuam a comprar àqueles, como antigamente, a carne abatida, e a fornecê-la aos seus fregueses, sem o menor incômodo, opressão ou vexame por parte da companhia arrendatária.

Onde, pois, o privilégio de que malsinam o contrato? Dar-se-á caso que a Municipalidade, no intuito de favorecer indebitamente os interesses da contratante, tenha aumentado as taxas de matança a tal ponto que a sua exageração torne impossível aos marchantes levar seu gado para ser abatido no Matadouro?

Nada disso. O aumento de 35 réis por quilo é uma verdadeira ninharia, fartamente compensado, aliás, com a permanência gratuita da carne destinada ao consumo local nos tendais e frigoríficos até a manhã seguinte; com o uso e aproveitamento, também gratuito, dos currais e mangueiras; com os novos processos de matança e de conservação, diminuindo as possibilidades de alteração do produto pelas mutações atmosféricas e outros fatores conhecidos de dissolução orgânica.

Não há, pois, privilégio algum respeitante ao fornecimento de carne, que continua a ser feito à população local pelos mesmos marchantes e pelos mesmos açougueiros. Só para o serviço de matança e beneficiamento do gado é que a Municipalidade concedeu garantias especiais à contratante, dentro da lei e dentro da moral.

O Poder Público de Santos não exorbitou de suas atribuições ao conceder expressamente tais garantias, pois agiu de acordo com as disposições insofismáveis da Lei Orgânica dos Municípios, contidas no seu artigo 17, n. 7, as quais declaram que "incumbe às Câmaras Municipais conceder privilégios... para obras e serviços que dependem de grandes capitais".

Ora, ninguém ignora, nesta cidade, que a remodelação completa do nosso serviço de matança, antiquado, perigoso e anti-econômico, exige o emprego de grandes capitais, cujos detentores não se proporiam a tal empreendimento se não vissem bem garantidos e remunerados o seu dinheiro, o seu esforço pessoal e o seu tempo.

A concessão de privilégios dessa natureza só depende de uma exigência, fundamental, segundo a opinião de um abalizado comentador da Lei Orgânica dos Municípios paulistas: é a concorrência pública. Para esse comentador, as concessões visando a execução de serviços afetos à Administração Municipal representam um verdadeiro contrato de empreitada, que a Câmara realiza com o concessionário, mediante vantagens recíprocas, que consistem, de uma parte, na exploração industrial daqueles serviços, e de outra parte, na reversão dos mesmos serviços à concessora, findo o prazo estipulado. Acha o referido comentador que, por esse motivo, a concorrência pública é indispensável, de conformidade com o n. 6 do artigo 17, da lei citada.

Ora, tal concorrência, aberta e encerrada com todas as formalidades regulamentares, e o emprego de avultados capitais na execução da obra e dos serviços em questão - condições necessárias à concessão de um privilégio como esse - foram cabalmente satisfeitos no caso do Matadouro local

A cláusula 29 do contrato (letra e), obrigando a Câmara a adotar medidas que dificultem a entrada de gado abatido fora do Matadouro Modelo, e destinado ao consumo local - é uma medida assecuratória da boa execução do contrato. Nem se compreende que a Municipalidade outorgasse um privilégio e não adotasse providências capazes de garantir plenamente a execução desse privilégio.

Achar que a concessão atenta contra a liberdade industrial, que o artigo 72 da Constituição Federal, em seu parágrafo 24, ampara e protege - é um verdadeiro dislate.

Os recorrentes, pelo débil órgão de seu ingênuo patrono, assim pensam, por entenderem que o estabelecimento de matadouros é como a abertura de restaurantes, dependendo apenas de uma simples licença do Poder competente. Julgam eles que a lei garante a qualquer cidadão o direito de estabelecer Matadouros para o serviço de matança destinada ao consumo local, e que a ninguém se pode negar esse direito. É o que consta do Recurso suplementar.

Ora, imaginemos que a Câmara atual, em vez de fazer o contrato, resolvia-se a executar, por sua própria conta, todas as obras e serviços, e continuava, como até há pouco, a administrar diretamente o Matadouro. É crível que a Municipalidade, depois de ter empatado grandes quantias na realização desse melhoramento, fosse permitir que outros concorrentes viessem estabelecer-se no Município com os mesmos fins? Há alguém de são critério e raciocínio íntegro que a censurasse por criar dificuldades a quem quer que pretendesse tal concorrência?

Pois é isso exatamente o que se dá agora, com a diferença de que a Câmara, em vez de executar as obras e administrar os serviços diretamente, como até há pouco tempo - transferiu esses encargos a quem, por meio de concorrência pública, melhores vantagens ofereceu à concessora. A concorrência, pondo a realização do negócio ao alcance dos cidadãos idôneos, mediante exame detalhado das propostas apresentadas - deixou o campo livre a quantos cobiçassem o arrendamento.

Entender que a Câmara deve permitir que, conjuntamente com o seu Matadouro, funcionem com liberdade outros Matadouros para os mesmos fins, é querer, por exemplo, que o Governo Federal, que administra, cobrando taxas, os serviços de Telégrafos e Correios, conceda a particulares o direito de lhe fazerem concorrência no mesmo terreno: é querer que o governo de S. Paulo, que fornece água potável à população da Capital, consinta em idêntico fornecimento por parte da iniciativa privada...

A propósito: a Câmara de S. Vicente, de quem é advogado o autor do Recurso, é quem abastece de água, escassa e cara, os habitantes da cidade: se amanhã, por não poder suportar as despesas de execução e o custeio de um abastecimento mais copioso, ela resolver arrendar a particulares o serviço - o seu advogado será capaz de conseguir do arrendatário a permissão para que outros explorem no Município o mesmo serviço? S.s. será capaz de sugerir à Câmara que deixe a liberdade, a quem quer que seja, de fornecer, mediante retribuição, água ao povo vicentino, em detrimento dos interesses do concessionário que aí tenha empregado seus capitais e seu trabalho?

O privilégio outorgado pela Câmara de Santos obedece, pois, às prescrições da lei e não discrepa dos postulados da moral.

Onde, porém, os recorrentes revelaram, em mais intenso grau, a sua estupidez e a sua má fé, foi na espetaculosa acusação de que a Câmara estava cobrando taxas de matança não autorizadas por lei alguma! O patrono dos recorrentes pensa, talvez, que o povo de Santos é composto de tabaréus incultos, indolentes e inertes, acampados na encosta das serranias natais, ouvindo melancolicamente a jandaia cantar na fronde de carnaúba...

Vamos pulverizar, no próximo artigo, essa acusação inepta, servindo-nos dos próprios documentos transcritos no suplemento ao Recurso que subiu ao Senado.

Imagem: trecho do livro O Matadouro Modelo de Santos, de Alberto Sousa (página 15)