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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS
1929: crise da Bolsa e incineração do café (3)

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Até que ponto a grande quebra da Bolsa de Valores de New York, em 29 de outubro de 1929, afetou os negócios no Brasil? Da mesma forma que 80 anos depois outra crise abalaria a economia mundial, mas pouco seria sentida em Santos, assim também ocorreu em 1929, quando a pauta de preocupações santistas no aspecto econômico era bem diferente, e já se manifestava muitos anos antes. Era o declínio na comercialização do café, após o auge verificado em 1922 (quando surgiu a Bolsa do Café de Santos).

O problema com essa então monocultura cafeeira já se manifestava desde o início do século, e a crise de 1929 quase nem foi notada na imprensa local, mais interessada na exportação da rubiácia - cujos problemas levariam ao início em 1931 da queima de montanhas de café, promovida pelo governo numa área junto ao porto santista. O noticiário da época registrava o desespero do setor cafeeiro, que enfrentava não só a baixa do preço do produto no mercado internacional, como a conjuntura cambial extremamente difícil, fato registrado na primeira página do jornal paulistano Folha da Manhã de domingo, 27 de setembro de 1931 (ortografia atualizada nesta transcrição):


Imagem: reprodução parcial da página original

 

A praça de Santos está asfixiada por falta de câmbio para negócios

(Serviço especial da Folha da Manhã)

SANTOS, 26 (Pelo telefone) - A situação da praça é, verdadeiramente, de asfixia. Não há câmbio. Portanto, não há negócios. Ainda que venham, como têm vindo, pedido do outro lado, não podem ser atendidos porque os exportadores não têm base para cálculos do preço em dólares. Assim, paralisa-se o mercado e não há pessimismo em se prever que, se semelhantes condições prevalecerem por mais alguns dias, assistiremos a desastres que não se limitarão a Santos.

O sentimento geral da praça é de nervosismo e revolta contar os erros do sr. ministro da Fazenda, cuja política cambial procede por absurdo, tentando manter uma situação artificial que não pode durar, mas, enquanto perdura, causa prejuízos irreparáveis. Por outro lado, a sujeição do Conselho Nacional do Café ao ministério do sr. Whitaker é o sinal da deflagração de uma crise que certamente afetará os negócios, pela insegurança da orientação do dia de amanhã.

Chegamos ao ponto em que os mais enérgicos e mais otimistas começam a desanimar. Comissários e exportadores são unânimes em reconhecer que perdemos numa semana o terreno que havíamos ganho nos últimos meses. E o perdemos porque inopinadamente se quebra o programa em execução e que se baseava na entrega do problema à própria lavoura e ao comércio de café, voltando o governo a perturbar as soluções com a sua interferência sempre nociva e perigosa.

Na página 6 do mesmo jornal Folha da Manhã de 27/9/1931, lê-se  (ortografia atualizada nesta transcrição):


Imagem: reprodução da publicação original

 

A queima do café

Dr. J. Americo Sampaio

(Da Associação de Lavradores de Jaú)

(Para a Folha da Manhã)

É desesperador, para o fazendeiro, contemplar a espessa nuvem que se levanta do montão de café ardendo nos arredores de Santos. Nuvem negra que obscurece o pálido clarão do horizonte. Fumo asfixiante que tolda o céu de nossa economia, em troca duma vandálica e efêmera luminosidade de labaredas. Por uma solução transitória do nosso problema cafeeiro, atira-se ao mar e ao fogo o produto do nosso labor e sofrimento. Para nós, a atmosfera, artificialmente mais clara, vai se tornando irrespirável, enquanto que, do outro lado das cinzas, envolve aos lavradores dos países nossos concorrentes numa auspiciosa luz de madrugada.

Nós paulistas não podemos mais plantar café. Não temos custeio para o que já possuímos. Queimamos safras de anos de trabalho e esperança. Tudo, porque intensificamos a produção, confiando nos governos ineptos, nos bancos que nos ofereciam créditos, nos comissários que mandavam seus agentes cercar-nos nas ruas, nas estradas, dentro de nossas casas, para nos enfiarem dinheiro nos nossos bolsos, como fazem os vendedores de loteria. Tudo porque acreditávamos nos homens que nos acenavam, cheios de empáfia e promessas, e sumiram ao estrondo do primeiro trovão da borrasca. Situação angustiosa: - trabalhar, produzir, contraindo dívidas insuperáveis, e assistir á destruição do fruto de nosso esforço.

Por quê tão diabólico e anti-econômico extermínio, quando o povo não tem dinheiro para beber café? É fato notório que as torrefações do Interior distribuem ao consumo das cidades um artigo sórdido feito de palha, detritos e alguns grãos quebrados - verdadeira escolha, cuja venda a própria lei condena mas as autoridades permitem. Ao pobre colono que carpe a lavoura roda, coroa e colhe, dá-se para beber o refugo da safra. Nos centros agrícolas mais prósperos, há inúmeras famílias de operários que não se podem desalterar com a modesta tigela de café, apenasmente porque o salário não dá para tão grande gasto. Entretanto, todos os dias, café ao mar, café ao fogo de destruição.

***

Conta o Evangelho que uma mulher pecadora, a quem o Senhor havia perdoado muitos pecados, transformando seu coração imundo num verdadeiro escrínio de amor e graça, viera ter inopinadamente a uma casa onde Ele dava de beber a seus discípulos a água da vida; e ali, cheia de uma gratidão transbordante, tomou do pecioso cântaro do mais fino e perfumado óleo, da mais custosa essência, e o espargiu jubilosamente, soluçantemente aos pés de Jesus. E um dos doze, justamente aquele que o havia de trair, escandalizou-se com aquele esbanjamento e não pôde dominar a acrimônia, a peçonha do seu coração: - "Pois não se poderia vender esse bálsamo desperdiçado, por muito dinheiro, e distribuí-lo aos pobres?" - Era o espírito utilitário incapaz de ver num gesto aparentemente tresloucado o sinete da mais delicada virtude e do mais acrisolado amor.

O símile não é perfeito. Realmente nem há símile. Entretanto, os apologistas da destruição da fortuna armazenada acusam os seus c[...]s (N.E.: ilegível no original) de incapazes de contemplar, por avareza ou miséria, esse espetáculo belo e horrível que nos é imposto. É a sangria urgente no pletórico. É a válvula da marmita de Papin. É a Lavoura que se desfaz em fumo e incenso, queimando as suas próprias entranhas.

Puseram muitas barreiras à exportação do café. O mundo inteiro bebe sucedâneos e o artigo legítimo está aqui, preso, ameaçando de morte os produtores. A Lavoura produziu demais. Sepultaram-na viva nos reguladores. Ela só sairá desta sepultura, desastradamente, quebrando mármores, derribando pilhas de sacas, queimando safras.

Que se rompa o cântaro e escorra o perfumoso bálsamo, desta vez sobre a estúpida incúria dos governos.

***

Nunca nos devemos satisfazer com as causas próximas dos fatos. Em Medicina isto se chamaria terapêutica sintomática, de efeitos às vezes maravilhosos, mas quase sempre culpada de muitos males.

Precisamos ir além do que nos entra pelos olhos, remontar à origem, à determinante do nosso impasse, para podermos ajuizar.

Quando o surto revolucionário sacudiu o País, de Norte a Sul, houve uma grande corrente de improvisados estadistas, inspirados na inveja e estimulados na ignorância sociológica, que pregavam aos quatro ventos a necessidade de extirpar o cancro do Brasil - o P.R.P. (N.E.: Partido Republicano Progressista - a menção é ao partido anterior ao criado em 1945 por Ademar de Barros e fundido no ano seguinte ao PPS para formar o PSP, obtendo registro definitivo com a sigla original em 1991).

Não se pode negar à sua miopia uma boa dose de sinceridade ou inocência. Mas o que no Brasil se deve chamar um cancro, pelo seu enraizamento, evolução e profundos malefícios ao sangue nacional, é o protecionismo alfandegário. O que os revolucionários apontavam era simplesmente uma furunculose generalizada pelo Brasil inteiro, que em São Paulo mais ressaltava e doía, porque se assentara no tecido nobre, no centro nervoso do País. A gravidade duma afecção se avalia mais pela sua sede do que pela natureza dos germes, os quais pululavam igualmente pela nação inteira.

O verdadeiro cancro nacional, aliás de toda a civilização moderna, que nos anemia e intoxica, é o protecionismo alfandegário. Contra ele é que se deveria ter feito a revolução. Desde os tempos do Império, ele nos depaupera. O Brasil não resiste mais e está ficando cor de palha. A moratória já surgiu como última expressão da discrasia. Por pouco teremos a morte.

A lavoura tem de lutar contra este monstro. Enquanto ele existir, produziremos para queimar. E ele se nutrirá das cinzas. O pouco que exportarmos não dará para os juros de nossa dívida. A migalha do mil réis que recebermos não bastará para o alto custo da vida, cada vez mais precária pela ganância dos industriais que querem a alfândega fechada aos produtos estrangeiros para imporem o preço dos nacionais. Quem não vê esta monstruosidade?

Esta é a finalidade máxima que se pretende com a arregimentação da Lavoura. O sexto item do Manifesto-Programa bem o define. Mais três xelins ou menos três xelins pouco alteram. É de somenos importância que o governo pague ou não pontualmente os cafés comprados, ou que em Santos se aboletem mais quatro ou cinco sugadores de nossas contas de venda. O que importa é salvar o organismo nacional, dando livre câmbio aos nossos produtos de exportação, desenterrando a Lavoura que é quem pode fazer a grandeza desta terra. Quem atirar as vistas além do oceano, verá que o mundo inteiro sobre hoje as conseqüências da má política que isolou cada país dentro da sua alfândega.

Congregam-se, pois, os lavradores, sem partidarismo, com larga visão de seu destino histórico, com a grande responsabilidade do muito que poderão fazer para o crédito do Brasil. O combate ao protecionismo deve ser o lema desta cruzada.

É difícil no cérebro do lavrador contaminado pelo raciocínio doméstico, que ele deve ser antes de tudo uma individualidade sem peias; que não se detenha bestificado na contemplação de altas personagens que hoje são e amanhã não serão mais; que perca o mau vezo do arruinado partidarismo político ou de família; que não seja um fóssil; que ponha lunetas e observe: - além de todas essas brasileiras misérias de escrúpulos, despeitos, compromissos, receio de represálias de Santos, comodismo egoísta, orgulho plutocrata de não se misturar no grande exército, está o monstro - o protecionismo - que tragará a um por todos os nossos esforços, toda nossa economia e mesmo a própria dignidade do povo livre e pensante.

Mas os acontecimentos vêm se desenrolando, com a força duma fatalidade, e acabarão encharcando a mentalidade de cada um. Então se compreenderá que super-produção é uma mentira que o protecionismo criou.

Que se queime mais café. Que se queime todo o café! Mas que o irritante cheiro da fumaça sirva ao menos de mostarda aos narizes obtusos.


Imagem: reprodução da publicação original

Na primeira edição do jornal paulistano Folha da Noite de 28 de setembro de 1931, página 2, o editorial seguia o mesmo tom (ortografia atualizada nesta transcrição):


Imagem: reprodução da publicação original

 

A florada e a outra calamidade

Mais ou menos dantesca a visão de quem, chegando de noite a Santos, atenta no mangue da esquerda. Em grande linha, o fogo dá combate destruidor ao café. Consagração luminosa da mentalidade dos "estadistas" brasileiros: para viver a Lavoura, é necessário queimar aquilo de que vive; para valer o seu trabalho, é de mister destruir o seu fruto. QUeima-se café, dia e noite. Enquanto isso, imensos capitais se movimentam, no resto do mundo, lucrativamente, na indústria dos sucedâneos, das beberagens ordinárias, pois o café brasileiro não chega aos demais países a preços acessíveis, ao alcance das possibilidades do consumidor, visto como as taxas alfandegárias, com que os outros governos são obrigados a corresponder à nossa política aduaneira de isolamento, o transformam em artigos de luxo.

Fechemos, porém, os olhos àquela fogueira imensa e, descendo em Santos, auscultemos os homens de negócios. Não estão desanimados; estão, sim, irritados, apopléticos. Não podem compreender que um homem como o ministro da Fazenda, tido como patriota e honrado, prossiga nesta obra inglória de destruição do Brasil.

Alegam: o sr. Whitaker tem fracassado em tudo, na sua pasta; tem levado a cabo erros os mais palmares e nefastos e, sobretudo, absolutamente dispensáveis, evitáveis, porquanto apontados com antecedência. Mas, basta que os homens práticos, entendidos, e a imprensa bem intencionada e reta plantem no braço de uma encruzilhada o aviso "Trânsito impedido", para que, deixando a estrada boa, o bom ministro se enverede por ali.

Tem sido derrotado, em todas as questões graves, sendo obrigado, depois de grandes prejuízos ao país, a adotar pontos-de-vista que, antes, repelida com ardor. Entretanto, nenhuma capitis diminutio (N.E.: latim: perda ou redução dos direitos civis, em graus mínimo - perda da família -, médio - perda da cidadania - e máxima - perda da liberdade, e portanto da família e da cidadania) o impressiona e, ao contrário da praxe universal de todos os tempos, não se demite depois dessas derrotas em assuntos essenciais.

Em Santos se diz que o sr. José Maria Whitaker, conceituado paulista, conceituado comerciante, está destruindo o Brasil e parece fazer muita questão disso, pois não cede nem depois de estar inteiramente seguro de que a totalidade dos que negociam  com café fulminam a sua política.

Sabe o ministro que só o café lhe poderá fornecer o ouro necessário para safar-se de suas aperturas; e sabe que a Lavoura em peso, os comissários, os exportadores, todos desejam e pedem o seu afastamento do ministro. Entretanto, persiste.

***

Ninguém nega ao sr. Whitaker o nome prestigioso que soube criar-se; ninguém nega que s. exa. era um dos ídolos para os quais a gente soerguia os olhos, quando falhavam os deuses habitadores do outro Olimpo. Porém, falhou redondamente, quando se apelou para ele, quando se transportou do papel decorativo para a atuação prática. Era ídolo de barro. Portanto, feita a experiência e registrados os efeitos negativos, a saída é imperativo da coerência.

De resto, não é só com o sr. Whitaker que isso ocorre. Há mais tempo, uma boa florada nos cafezais era motivo de regozijo, de abastança, de dinheiro a rodo. Hoje, porém, quando Flora estende sobre as leiras um véu nupcial mais denso, é uma tristeza: vamos ter muito café! Que desgraça! - choram os fazendeiros.

Natural. Mudam as circunstâncias. O que, em outros tempos, era motivo de alegria, hoje é catastrófico. Assim com os homens. O sr. Whitaker já não é motivo de confiança, à frente de um Ministério. Deve sair. Deve fazer como a formidável florada deste ano: veio; mas, verificando que era indesejável, não pegou.

Que também o nosso Colbert não pegue. Nem se apegue.

Luís Amaral

(N. E.1: Nascido em 20/5/1878 em São Paulo, José Maria Whitaker ali faleceu em 19/11/1970. Foi ministro da Fazenda de 4/11/1930 a 16/11/1931, no governo provisório de Getúlio Vargas, voltando ao cargo de 12/4 a 10/10/1955, no governo do presidente Café Filho.).

(N. E.2: E o referido Jean-Baptiste Colbert (nascido em Reims em 29/8/1619 e falecido em Paris em 6/9/1683) foi ministro do rei Luís XIV, quando implantou o mercantilismo industrial, incentivando a produção de manufaturas de luxo para exportação, com o objetivo de tornar a França a nação mais rica da Europa, política que ficou conhecida como Colbertismo. Após sua morte, a economia francesa sofreu forte revés, com pesada taxação às indústrias que no longo prazo geraria forte crise econômica nas manufaturas, sem condições de concorrer com os tecidos ingleses, o que seria um dos motivos para a Revolução Francesa de 1789.).