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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS
A trepidante vida social santista de 1913...

Os flertes e namoros, quando tudo girava em torno do Largo do Rosário

Na pacata Santos da belle-èpoque, pouco antes de começar a Primeira Guerra Mundial, o principal lugar para quem queria ver e ser visto era o Largo do Rosário, atual Praça Rui Barbosa, com o Correio de um lado, a igreja matriz do Rosário em outro canto, o principal cinema (Polytheama Rio Branco), os cafés, os jornais...

Não podia haver lugar mais trepidante para a obtenção das últimas fofocas sociais que alimentariam jornais e revistas como a santista A Fita, que para isso criou a coluna Trepidações, que assim registrava na edição número 34, publicada em 11 de dezembro de 1913 (exemplar no acervo da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio - SHEC, com ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da publicação original

Trepidações

Ele tem olhar de lince.

Duvidam? Todas as noites toma o elétrico n. 6, na Rua Lucas Fortunato, esquina da Júlio Conceição, às 10 1/2 horas; vem do namoro e namorar não é crime, na opinião do juiz, lá disse um poeta.

Ela m ora aquém, mas muito aquém da Rua Júlio de Mesquita, e quando ele tem saído, os papás não a deixam ir à janela. Ele não sabe disso e...

Embarca no bonde n. 6 e, muito convencido, atira um adeus para lá onde ela está, onde ele supõe que está.

Até o condutor do bonde acha graça, porque não crê, já nos declarou, em tal poder visual.

É que não conhece o amigo Henrique, que do Monte Serrat via o seu papa-capim sem alpiste, nos fundos de sua casa à Rua de S. Francisco.

Esta "trepidação", trouxe-nos a vizinhança.

***

Aquele ajudante de caixa de importante estabelecimento bancário está em apuros, só porque caiu no gosto de certa cocotte, feia como noite escura e que jurou aos seus deuses casar-se com ele.

Ele é bonitinho, engraçadinho e extremamente amável e merece outra sorte, porém é culpado de estar metido em cipoal.

Quem lhe mandou bulir com "maravilhas"?

***

O cenário é numa vivenda à beira-mar; ali pros lados do José Menino, onde o Gonzaga o seu feudo tem, na frase do saudoso Poscampini, na revista O Compadre.

Rodeiam todos a mesa; é o fim do jantar, nessa tarde de encantos, em que o mar murmura segredos à praia.

Hora do dessert; além dos doces finos do Bar Chic, há frutas artisticamente acomodadas em rico centro de mesa, de crystofle e cristal puro; dentro reluz, já estriado nos gomos, um salutar mamão.

Senhorita faz o flirt com ele, que se senta ao lado; alguém apontando a fruta, mas com o olhar aludindo ao flirt, exclama:

- Bom fruto o mamão; salutaríssimo.

Todos perceberam, menos Senhorita que só vendo o gesto de quem falara, acode:

- Este é mamão de raça.

Ela se referia à qualidade do fruto do mamoeiro.

***

Ele é gerente de uma importante agência de vapores e parece um Hércules ou cossaco, mas é apenas um desses gigantes que o Norte de vez em quando nos manda como para atestar a pujança da nossa raça genuína.

Senhora é viúva, não é nenhum peixe morto, tem aquela cor de jambo que seduz e mata, mas desta vez pensou e pensou bem que o gigante queria fazer consigo o que fez com a outra, apesar de lhe prometer casório. Conseqüência: Senhora ficou com os seus filhinhos e o cossaco vai tentar a conquista de outra praça.

***

É jovem, simpático, é até bonito este bacharel petrônio, que quando cursava os Maristas, discursou ao arcebispo e lhe beijou o anel sagrado.

De dia joga contas de juros no Banco, à tarde joga o ping-pong com amigos e colegas e à noite... à noite é que são elas!

Que lhe importa se esconder o sol? Ele tem brilho próprio, brilho de neve, mas prefere brilhar menos intensamente, com a brandura do luar.

Pelo menos é com o anagrama de luar, que o conhecem à noite, no mundo oú l'on s'amuse.

***

Senhorita é noiva de um rapaz bonito; amou em tempos idos outro mancebo feio, tímido mas simpático.

Um dia destes, no Coliseu, senhorita não pôde esconder a simpatia pelo feio, resto do seu antigo amor, e comeu mamão que foi um gosto, sem que o noivo percebesse, tal foi a habilidade de Senhorita.

Mas, afinal de contas, a qual dos dois quer para esposo? Um deles é poeta e Senhorita deve saber que os poetas vivem mais de fantasias...

***

Havia um homem que era, inconscientemente, o correio da filha para o namorado e deste para aquela. O papá levava, quando ia ao barbeiro, cartinha da filha, na carneira do chapéu; faziam a barba duas vezes ao bom velhote. Uma, era o barbeiro, e outra o namorado, que tirava a cartinha do chapéu e deixava lá outra.

Há novo processo, agora.

Senhorita escrevia para ele, em S. Paulo, endereçando a carta para uma amiguinha e colega, que a entregava ao verdadeiro destinatário.

Senhorita recorda isso, entre lágrimas; ele a esqueceu, se enfeitiçando por uma boneca alemã, loira como Senhorita.

Ele não a amava, Senhorita, nem ama a alemãzinha; ama todas as loiras como trigais. Simbolismo.

Mas, como está bonitinha Senhorita! Vimo-la quando chegava de S. Paulo. Não chore mais e creia que será vingada.

***

Antigamente, poucas vezes ia Senhorita à igreja e hoje está convertida, é religiosa e devota do Sagrado Coração de Jesus...

Aquele rapaz alto, ruivo e simpático, freqüentador assíduo do Santuário onde é venerada a imagem do meigo Nazareno e que era risonho, brincalhão, mesmo no momento das prédicas, está hoje também convertido: já não é o mesmo, porta-se com seriedade e já se ajoelha, contrito e ungido de fé...

É que ele quer parecer mais digno aos olhos negros de Senhorita, a esses olhos que a gente nota eloqüentes de amor, quando fitos no rapaz.

Ambos amam-se e já que estão convertidos à religião, porque não abençoam esse amor com o "conjugo vobis"?

Na edição seguinte dessa revista, número 35, de 18 de dezembro de 1913 (também preservada no mesmo acervo):

Imagem: reprodução parcial da publicação original

Trepidações

Senhora ficou deveras intrigada, quando soube pelo penúltimo número d'A Fita que a esposa de certo funcionário aduaneiro descobrira um remédio para sossegá-lo um pouco. E Senhora perguntava a uma amiga, em um five ó clock tea havido naquela aprazível vivenda do Guarujá, qual seria o "tal remédio". Senhora quer que lho ensinemos? Talvez assim o seu marido... Mas é melhor não fazermos intrigas.

***

Senhorita levará a tal extremo a proteção aos animais? Decerto que sim; ao contrário, como explicar a presença de tal quantidade de tão deselegantes hemípteros na cabecinha de Senhorita? O pior é que os seus "protegidos" são muito sem cerimônia e ornam o penteado da elegante freqüentadora do Colisey, com uns corpúsculos esféricos, esbranquiçados, que vulgarmente recebem o nome de lêndeas. É de crer que os felizardos insetos sejam mansos, pois Senhorita parece não sentir sua presença.

***

Cavalheiro é funcionário da nossa aduana, usa lindos cravos na botoeira, fuma finos havanos que lhe dão despesa mensal não pequena.

Senhora, sua esposa amantíssima, tem um gênio brando e amorável, relevando ao cavalheiro muitas faltas que a outra qualquer daria em charivari.

Numa das últimas noites do mês passado ela foi visitar uma amiga que, ao chá, levou a sua tagarelice para o terreno de elogios ao esposo de Senhora, ao comportamento exemplar que tinha etc.

Ora, Senhora tem cabelos belos e negros e a amiga os tem castanhos longos e bem cuidados. Em chegando à casa reparou num fio destes cabelos sobre o ombro do fraque de seu esposo e estando já com o espírito prevenido pelos elogios da amiga, ficou pensativa e intrigada...

Nuvens passageiras: ele é um santo, senhora.

***

Como está bela, Senhora! Bela e conservada. Quem dirá que já passou dos quarenta e é mãe de tantos filhos!

Domingo, quando Senhora saiu da igreja, vinha ruborizada e um tanto nervosa; parecia que algo de extraordinário passara consigo no Templo.

À esquina, Senhora parou e voltando-se para a amiga que a acompanhava, disse:

- Estou infeliz hoje, viste! Nem um pobre encontrei para dar uma esmola.

E Senhora empalideceu repentinamente, mal acabara de pronunciar a sua lástima.

É que surgira naquele momento, pela esquina, um cavalheiro alto, magro, de fartos bigodes negros, que lhe cumprimentou com um sorriso significativo, correspondido, aliás.

Apostamos em como o resto do dia de Domingo foi feliz para Senhora...

***

Senhora tem ventinha no cabelo, isto é, cabelinho na venta, e o seu esposo sempre se mostrou tolerante, suportando com paciência de Jó as investidas raivosas e quase atentatórias de sua integridade física, por parte de Senhora, quando o ciúme ou qualquer outro sentimento atacava-lhe nervos sensíveis.

Um dia destes, o esposo, que andava pondo as manguinhas de fora, chegou tarde à casa.

Senhora foi esperá-lo à porta e indignada exclamou:

- Ou eu, ou elas (frase textual).

E, ato contínuo, mimoseou a face do esposo delinqüente com uma "trolha" que, embora fosse aplicada por mão delicada, alvoroçou o sangue, até então calmo, do esposo.

Conseqüência: daí a momentos, a vizinhança ouvia voz feminina clamar por socorro lá pelos lados dos fundos da residência do casal. E essa voz feminina não era propriamente a... do esposo.

***

Passa o bonde, ouve-se um psiu, para parar.

É ele, o guarda-livros, sua exma. esposa, seu sogro, o gerente telefônico e mais duas gentis moçoilas; total, cinco.

Há um banco vazio. Ela se precipita para o bonde e quebra, conselheiralmente e acacianamente, o silêncio do momento:

- Olhem, aqui, venham; tem um banco inteiro.

O gerente da City vai mandar vistoriar todos os bancos de todos os bondes, para ver quais os bancos quebrados.

Denúncia do guarda-livros.

***

A arte invade tudo, em tudo variando o gosto.

Naquela casa bonita, há velarios de seda, às janelas; um branco, outro rosa. É chique, é artístico.

Senhora, casada com um guarda-livros, pondera, com a sua voz sonora, do bonde em que viaja, ao passar em frente àquela casa bonita, apontando, sem alcançar a originalidade que a presidiu, a colocação das cortinas, em cores diferentes:

- Decerto, F. (fala ao esposo), são desbotadas pelo sol!

***

Não é cena de romance de Xavier de Montepin; o fato teve por teatro uma das nossas avenidas.

Um cavalheiro tinha justa queixa de certa parteira que com o proceder trouxera para o seu lar cizânia dolorosa.

Combinou com um amigo e simulou um chamado urgente para serviço profissional. À hora combinada, um carro de praça conduzia a parteira que, aliás, de nada desconfiava. Em certa altura da avenida o carro parou e o cavalheiro, aparecendo, exprobrou o procedimento que ela tivera, mimoseando-a com algumas taponas e deixando-a na avenida em meditação regeneradora...

Si non è vero...

Outra edição preservada no acervo é a de número 42, de 5 de fevereiro de 1914:

Imagem: reprodução parcial da publicação original

Trepidações

Ele é cônsul de um país amigo, mas é genuinamente brasileiro.

Ela é uma "deusa" cujo templo foi ereto no lendário beco que tem o apelido de bebidas também genuinamente brasileira.

Os seus grandes e belos olhos, ou o andar de requebros de gata voluptuosa, prenderam a autoridade consular, de tal forma que, dá pena, inspira dó o sofrimento que o consome motivado pelo desprezo da "deusa" às suas contínuas declarações de paixão ardente.

Entretanto, o apaixonado seria capaz de mandar às urtigas todos os preconceitos da sua posição social, para merecer um sorriso, ao menos, da loira e jovem habitante do afamado beco.

E ele passa horas e horas ali na Rua do Rosário, a rondar, de um lado para outro, vendo o movimento contínuo dos outros felizes mortais e... chuchando no dedo.

Faz dó!

***

Aquelas loiras senhoritas que trabalham em conhecida loja vêm-se doidas para corresponder às gentilezas dos seus admiradores.

E são Tantos, santo Deus, tantos que até a gente pensa que há algum desastre no Largo do Rosário, quando eles se ajuntam boquiabertos contemplando as senhoritas à volta para a casa.

Elas devem tirar a sorte para a escolha dos pretendentes, a menos que mais dia, menos dia, aconteça qualquer desastre horroroso e não sobre nem um pedacinho deste tamanho da pobrezinha.

***

Senhora zangou-se com seu esposo, mas absolutamente não teve razão. Então porque ele.. sim...

"Afinal ela é bela e ele amoroso;

Nada mais natural, pois, que cumprisse

Seu dever sacratíssimo de esposo..."

Já se vê, portanto, que senhora foi injusta e quando recriminou seu esposo dizendo ser ele o "culpado disso" e "que os rapazes haviam de dizer certas coisas quando ela saísse à rua" cometeu um grave pecado. Console-se, senhora, e trate de pensar nestes versos de Bastos Tigre:

"Hoje o contrato conjugal e a aliança

A igreja e a pretoria, a lei e a prece,

Do amor bem pouco pesam na balança;

 

Que ainda mais fortes que os dos seus carinhos

Bem rijos laços D. Alice os tece

Da alva lã com que tece uns sapatinhos..."

E o esposo de Senhora não é o culpado, porque "afinal ela é bela e ele é amoroso..."

***

Um grupo de amigos, cada qual o mais atrevido e temível conquistador, apesar de todos eles pertencerem ao rol dos homens sérios, comentava no Bar Chic a beleza duma senhora que passava, a fealdade de outra, a elegância da que descia do bonde próximo e todos em coro riam-se do espírito que borbotava de cada um.

Eis que passa uma senhora alta, cheia de corpo, corada, forte e algo bonita, de par com um cavalheiro.

- Que bela mulher, disse um dos do grupo.

- É do tipo predileto de F. (dirigindo-se ao amigo próximo).

- Eu não tenho tipos: sou mascate!

Foi uma bomba, a espirituosa frase do temível parceiro, que explodiu em gargalhadas numa expansão de franca alegria, trazendo a todos o bom humor para o dia inteiro.

***

Quem o vir circunspecto, recatado, sempre indiferente ao bulício mundano, dirá que aquele advogado é o exemplo vivo do esposo ideal, da fidelidade conjugal. Pois é.

Um dia destes alguns colegas seus faziam numa roda a apologia da beleza das mulheres que habitavam aqui, citando uma tal húngara, outra espanhola, mais outra francesa, aquela italiana etc., até que um deles referiu-se a uma bela japonesa que desabrochou qual crisântemo encantando os amantes de raridades orientais.

Volta-se muito depressa o advogado e indaga:

- Japonesa? Onde é, onde é? Eu não tenho na minha coleção essa espécie...

Pois é...

***

Ela estivera no Guarany apreciando um emocionante filme de Nordisk, no qual vira a infidelidade de uma esposa com todas as peripécias mais ou menos comuns e o respectivo castigo ao fim.

Depois, ela, senhora, sempre acompanhada pelo esposo, tomou no largo do Rosário o elétrico, de volta para casa. Foi aí que alguém a viu e delirou ante a beleza de Senhora, com aquela toalete alva qual a sua carne, rendada, fresca, muito fresca, encantadora! Senhora, ao tomar assento no bonde, levantou a saia rendada e deixou ver as meias também alvas e rendadas até o joelho, exibindo umas pernas esculturais enroladas de fitas pretas que vinham desde o sapato e iam subindo, subindo até a liga, forçosamente...

Mas com que graça Senhora levantou a saia e olhou para os lados, como para ver se eram notados aqueles encantos!

E o esposo ao lado, indiferente a tudo, senhor de si, ufano, orgulhoso de possuir aquele tesouro.

- Mas, Santo Deus, disse o "alguém" a um amigo, porque esta senhora, tão má assim, tão provocadora, tão "cainha"?

Houve profundo silêncio e... sumiu-se o bonde.

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