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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - BELMONTE - BIBLIOTECA NM
No tempo dos bandeirantes [19]

Conhecido principalmente pela atividade cartunística nos jornais paulistanos, e pelo seu personagem Juca Pato, o desenhista Benedito Bastos Barreto (nascido na capital paulista em 15/5/1896 e ali falecido em 19/4/1947), o Belmonte, foi autor de inúmeros livros, entre eles a obra No tempo dos Bandeirantes, que teve sua quarta e última edição publicada logo após a sua morte.

A edição virtual preparada por Novo Milênio objetiva resgatar esse trabalho, que, mesmo sendo baseado em pesquisas sem pleno rigor histórico, ajuda a desvendar particularidades da vida paulistana, paulista e, por conseqüência, também da Baixada Santista. Esta edição virtual é baseada na quarta edição, "revista, aumentada e definitiva", publicada pela Editora Melhoramentos, São Paulo, sem data (cerca de 1948), com 232 páginas e ilustrações do próprio Belmonte (obra no acervo do professor e pesquisador de História Francisco Carballa, de Santos/SP - ortografia atualizada nesta transcrição):

Leva para a página anterior[...]                                             NO TEMPO DOS BANDEIRANTES

[19] Os cargos públicos

Exigências da ordenação - Acumulações remuneradas e regras com exceções - De Ortiz de Camargo a Bento Antunes - Os parentes até quarto grau - O caso de Amador Bueno - Mouros e Judeus

exercício de funções públicas, numa vila onde não são muitos os "homens bons", devia ser facilitado com um mínimo possível de exigências. Mas, ao contrário, investir-se de um cargo público é façanha que não está ao alcance de qualquer um, por várias razões consideráveis, das quais é forçoso citar em primeiro lugar as "Ordenações" do Reino.

Os severos códigos das velhas leis portuguesas, das Afonsinas às Filipinas, são rigorosamente executados nas colônias e, em São Paulo do Campo, são constantes as exigências e ameaças que se fazem aos governados, na forma da Ordenação. Os ouvidores e corregedores, que por aqui aparecem de tempos a tempos, não se esquecem nunca, nas suas provisões e correções, de insistir com os senhores oficiais da Câmara para a exata e intransigente aplicação das leis do Reino na vila do planalto.

Ora, sendo assim, nada mais natural do que, ainda de acordo com a Ordenação de Sua Majestade, não sejam permitidas, no exercício dos cargos públicos, as acumulações remuneradas, nem tolerada a constituição de oligarquias.

O combate a esses vícios administrativos, desencadeado no reino desde o tempo das Afonsinas [1], não cessa em toda a centúria do seiscentos e não poucos "homes hõrados da Republica" se vêem muitas vezes em sérios embaraçoes para dar cumprimento à lei, espontaneamente uns e, sob a pressão dos magistrados, outros.

Há, contudo, certos casos que se consideram excepcionais e que podem ser resolvidos, em última instância, pelo ouvidor ou pelo corregedor em função local, a pleno critério destes, sem apelo nem agravo para quem quer que seja.

É, por exemplo, o que acontece em 1624 com o capitão Fernão Dias - um homônimo do "Caçador de Esmeraldas" pois este, então, conta apenas 16 anos de idade. Nesse ano, o velho Fernão Dias, por uma provisão do Governador Geral Diogo de Mendonça Furtado, é reconduzido ao seu cargo de capitão dos índios. A Câmara reunida em sessão é, todavia, de opinião que é contra o bem comum dêste povo uma pessoa servir os ditos dois cargos juntamente (porque Fernão Dias também é procurador dos índios). Exige-se, então, que o recém-nomeado opte por um dos cargos.

O homem, contudo, é intransigente. Chamado para explicações, comparece. E, interpelado, declara que havia anos estava de posse de servir os dois cargos, mas que faria o que determinasse o ouvidor Lázaro Fernandes. A Câmara concorda. Mas, fechada no cumprimento do dever, intima Fernão a que exerça apenas um dos cargos até se avisar ao dito senhor governador geral.

Enfim, uma semana depois resolve-se tudo. A Câmara reune-se e manda lançar pregão para que os "homens bons da terra se ajuntassem e saber se era bem que fernan dias service os cargos de capitão e juntamente de procurador dos índios"... Reunidos todos e posto "sur le tapís" o enervante caso, "foram de mais vozes (isto é, venceu por maioria) que o dito fernan dias service os ditos cargos assim e da maneira q o sõr gdor. manda".

Esse respeito pela opinião pública, respeito que leva os senhores oficiais a realizar um verdadeiro plebiscito para a solução de um caso administrativo, demonstra que os negócios públicos da Capitania estão entregues a homens de irrepreensível linha moral. E tanto assim é que, volta e meia, estão Suas Mercês a exigir o severo cumprimento das provisões, para que, como ocorre em 1638, "uma só pessôa não sirva os cargos de capitão e ouvidor mas que só hum oficio".

É este, sem dúvida alguma, um caso singular. Reunida a Câmara de 1638, o procurador procede à leitura de dois documentos da Câmara do ano anterior, documentos que vêm colocar os senhores oficiais diante da mais indisfarçável estupefação. É o caso que Antônio de Aguiar Barriga conseguira, habilmente, duas nomeações: capitão-mor e ouvidor. E, enquanto o senhor procurador da passada legislatura pede aos novos vereadores que reconheçam Barriga apenas como capitão-mor, os antigos oficiais o indicam, apenas, como ouvidor.

O caso, como se vê, está meio atrapalhado e os senhores oficiais não sabem se, em tão dramática conjuntura, atenderão à Ordenação, ao procurador, aos vereadores da passada Câmara ou à opinião pública já enervada. O certo é que, tal como está, não é possível deixar - e a Câmara, com a sagacidade que lhe é habitual, trata de lavar as mãos, escrevendo uma carta ao governador geral afirmando-lhe acatar a provisão que manda investir Aguiar Barriga nos dois cargos, mas lembrando-lhe a obrigação em que se acha de atender ao protesto dos moradores, que acham ser muito detrimento estarem dois cargos em uma só pessoa. E, colocada nessa pouco invejável situação, conclui resolutamente a sua carta pedindo a S. Mercê que "se dividão os dous cargos pera q. os moradores tenhão a que se socorrer dos agravos q. de qualquer dos dous julgadores receberem... pois em esta capitania tem V.Sas. homens q podem mui bem servir qualquer dos cargos".

Não sabemos como termina a curiosa contenda, pois as atas, daí por diante, se calam. O mesmo, contudo, não acontece com o famoso José Ortiz de Camargo, um dos cabeças da guerra civil desencadeada na vila entre as facções dos Pires e dos Camargos. Eleito para o cargo de juiz, em 1651, não vai tomar posse, alegando que é provedor da Misericórdia e deseja, por isso, gozar dos privilégios que sua majestade em seu alvará concede, pedindo à Câmara que eleja outro em seu lugar.

A Câmara, ciente dos respeitáveis desejos de Ortiz, trata de levar a efeito novas eleições, sendo eleito, por nove votos, Francisco Cubas.

Até aí vai tudo muito bem, e a satisfação seria unânime e definitiva se, de repente, qualquer estalo suspeito não tivesse rebentado na cabeça do velho Ortiz. É que, uma semana depois, o extraordinário homem comparece à Câmara e declara, placidamente, que vai tomar posse do cargo para o qual fora eleito, apresentando ao mesmo tempo uma provisão do ouvidor da Capitania, na qual se pede aos vereadores que o reconheçam e o empossem.

Diante do mandato, não há discussões: o provedor da Santa Casa empunha a vara de juiz.

Ortiz de Camargo, vaidoso e cheio de ambições, refletindo talvez sobre as vantagens de toda ordem que podia tirar no seu vistoso cargo de juiz, prefere deixar a Misericórdia.

Mas, em São Paulo, nem todos têm vaidades, e a prova mais decisiva a esse respeito no-la fornece Bento Antunes que, eleito para exercer o cargo de procurador do Conselho, comparece à Câmara e pede, humildemente, que o dispensem da honraria, pois é um homem trabalhador, tem família para sustentar e prefere continuar sendo o que sempre foi - marceneiro.


"Um chapéu de veludo preto com sua renda" e "um mantéu de mulher, rendado" (Inv. e Test.)
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro

Onde, porém, parece não haver exceção, é na luta dos poderes públicos contra a predominância doméstica nas esferas administrativas. Desde o início do século vêm os ouvidores procurando evitar a formação de oligarquias - tarefa árdua numa terra onde quase todos são mais ou menos parentes e onde os que não o são, nem sempre estão em condições de exercer funções públicas. É o que ocorre com a Câmara eleita em 1607 e que até o mês de maio está impedida de reunir-se. E não se reune "por respeito do parentesco que entre os ofisiais desta camara avía".

Pouco depois, contudo, enquanto não se aclara a questão do parenteso - o que somente acontece em janeiro do ano seguinte, com a exclusão de Baltasar de Godói, que é parente de Diogo Moreira, aquele vereador e este, juiz - surge outro caso semelhante. Eleito vereador, constata-se que Antônio Pedroso não pode tomar posse "por estar apellado por fto crime e segundamente hé casado o juiz antonio llourenso cõ hüa sobrinha da molher do dito ant.º pedrozo e joão de brito casão outro vereador hé cazado com uma sobrinha do dito antonio pedroso".

Ora, como os parentescos, mesmo os menos complicados do que esse, são rigorosamente vedados no exercício do serviço público, preceitua a Ordenação, no seu Livro I, folhas 69, parágrafo I, que se faça nova eleição - o que é realizado no dia seguinte, com a vitória de Pedro Taques.

Esses episódios, que deviam constituir exemplos, vão se repetindo através dos anos e os senhores ouvidores, nas suas visitas à vila, não se descuram de pedir aos senhores oficiiais o maior cuidado no preenchimento dos cargos públicos, "não permitindo se metesse na republica cristãos novos nem servicem parentes huns dos outros, conforme a lei de sua magestade e capitolos da correição". Parece inútil, porém, esse rigor, porque o problema doméstico-administrativo continua a exigir providências dos "homens honrados da república".

Com os vereadores Amador Bueno e André Lopes, impedidos de tomar posse "porque as molheres ambas delles ditos vereadores herão parentas dentro do quarto gráu", o caso se complica porque dá margem a atrapalhante inquérito, no qual depõem pessoas das relações de ambos e cidadãos antigos da vila. A Câmara, muito empenhada no problema, procura "destrinçar o dito parentesquo", pois, pessoas dignas de fé asseguram "que as sogras dos dois vereadores erão primas". Matias de Oliveira, "homë ãtigo", comparece à Câmara e, sob juramento, afirma "que a mãe da sogra da molher de amador bueno e a mãe da sogra do dito andre lopes herão meias irmãs filhas de pai e de duas mães". Amador Bueno confirma, lealmente, estas declarações e, meio resolvido o grave problema, trata-se de saber então, qual dos dois vereadores continuará na Câmara. Como, dos dois, André Lopes é mais velho, resolvem os senhores oficiais excluir Bueno e eleger outro em seu lugar.

Mas, nesse momento, ergue-se o juiz Francisco Jorge. E, segundo nos explica o escrivão Calixto da Mota, "pelo dito juiz foi dito que o seu parecer e voto hera que ficasse o vereador amador bueno por ser homë que ja servio de juiz ordinario nesta villa e que era homë que costuma andar na republica e ser pessoa benemerita para servir o dito cargo". Belas palavras que, todavia, não conseguem comover os senhores oficiais, firmes no seu propósito de conservar o velho Lopes no Conselho, embora com o sacrifício daquele que, dezoito anos depois, seria aclamado "rei de São Paulo".

Às vezes, acontece que os cidadãos eleitos agem com lealdade, como Bartolomeu Fernandes de Faria que, feito vereador, se recusa a aceitar a vara "porcoanto é parente do juis que sahiu no pelouro pero de moraes madureira" - ao contrário de outros que, como os vereadores Alonso Peres e Francisco Furtado, chamados a explicações, declaram candidamente "que não achavam serem parentes".

Mas a Câmara, que parece ter batido o recorde de parentes eleitos na mesma legislatura, é a de 1654, na qual se vêem impedidos de tomar posse Manuel Preto, Pacoal Dias e Domingos Leme, parentes entre si e, dos quais, o primeiro e o último são excluídos, sem apelo nem agravo, tudo de acordo com a lei de Sua Majestade e para "enobrecimento da republica"...

E, ainda para enobrecimento da terra, não se admitem, em certos cargos, senão os que "ousem ser da republica e, em falta delles, provejam aqueles que forem cazados com as filhas e netas dos sobreditos comtanto que não tenham raça de mouro nem judeu"...


Dois bandeirantes
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro


[1] Ainda hoje é comum, em certas antigas regiões do Estado, dizer-se que uma coisa qualquer é muito velha porque vem "do tempo dos Afonsinhos", evidente corruptela das Ordenações Afonsinas, publicadas por d. João I no início do século XV.


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