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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - BELMONTE - BIBLIOTECA NM
No tempo dos bandeirantes [13]

Conhecido principalmente pela atividade cartunística nos jornais paulistanos, e pelo seu personagem Juca Pato, o desenhista Benedito Bastos Barreto (nascido na capital paulista em 15/5/1896 e ali falecido em 19/4/1947), o Belmonte, foi autor de inúmeros livros, entre eles a obra No tempo dos Bandeirantes, que teve sua quarta e última edição publicada logo após a sua morte.

A edição virtual preparada por Novo Milênio objetiva resgatar esse trabalho, que, mesmo sendo baseado em pesquisas sem pleno rigor histórico, ajuda a desvendar particularidades da vida paulistana, paulista e, por conseqüência, também da Baixada Santista. Esta edição virtual é baseada na quarta edição, "revista, aumentada e definitiva", publicada pela Editora Melhoramentos, São Paulo, sem data (cerca de 1948), com 232 páginas e ilustrações do próprio Belmonte (obra no acervo do professor e pesquisador de História Francisco Carballa, de Santos/SP - ortografia atualizada nesta transcrição):

Leva para a página anterior[...]                                             NO TEMPO DOS BANDEIRANTES

[13] Os pobres

Agruras do comércio marítimo - Piratas e bucaneiros - Os miseráveis - As exigências do Baltasar - O "negro" de Suzana Rodrigues e o recorde de Cunha Gago

imos como, sendo São Paulo, no início do século, um burgo paupérrimo, conta em seu seio homens que podem considerar-se ricos. São poucos, aliás, os inventários cujos espólios vão além de um conto de réis, e os bens móveis, mesmo os pertencentes a famílias abastadas, são os mais sumários e rudimentares possíveis. Para isto, contribuem vários fatores, entre os quais dois que não se podem desprezar: a vida andeja do paulista do bandeirismo e a pirataria que assola os mares do Novo Mundo.

Os paulistas do seiscentismo, realmente, não param. Volta e meia, lá se vão para os sertões e, em muitos casos, morrem longe, deixando os bens espalhados por toda parte [1]. De outro lado, os corsários que varrem as costas da América não só dificultam as importações do Reino e da Corte, mas também, sempre que podem, assaltam e roubam as naus que demandam os portos do Brasil.

Com efeito. O Brasil, como todas as outras colônias do Novo Mundo, é administrado de acordo com as exigências da metrópole e não das suas próprias necessidades. A pirataria que, por algum tempo, se revestira de aspectos aventureiros e românticos, acaba se organizando comercialmente para a exploração sistematizada do tráfico e da rapinagem.

Os aventureiros não se receiam, então, de atacar naus mercantes em pleno mar, indo muitas vezes apontas as bocas de fogo, de seus barcos armados em corso, contra cidades e vilas indefesas, exigindo dinheiro, sob ameaças, ou arrasando-as impiedosamente quando vêem falhar seus audaciosos golpes de blackmail. Carracas, patachos, galeões, bergantins, urcas e fragatas, de velas pandas, espalham o terror pelos oceanos, conduzidos por corsários e bucaneiros, uns roubando nos mares, outros saqueando os litorais.

Dessas coortes de aventureiros europeus, repontam nomes e apelidos rebarbativos: Bartolomeu Português, Roque Brasiliano (que é holandês e vivera no Brasil), Diego, o Mulato, João Davi Nau, o famoso Olonês, Jack Jackson, Mansvelt, Chevalier, Lewis Scott, o iniciador dos bucaneiros, até alguns que se dão ao luxo de um título, como Cook e Cavendish que assaltam e incendeiam a vila de São Vicente.

Não são poucos, portanto, os paulistas que sofrem os efeitos dessas contínuas incursões. Entre esses, contudo, vale a pena citar Antônio Pedroso de Barros. Após a sua morte, comparece em juízo, "para dar clareza das contas que tinha com o defunto", o seu irmão Fernão Pais de Barros que, entre outras coisas, conta que, vindo do Rio para Santos, "trouxera em sua companhia toda a dita fazenda em seu poder tinha do dito seu irmão e que vindo elle dito Fernão Paes de Barros com ella a outra muita sua que trazia no navio e patacho de Antonio Casado Velho na altura da barra de São Sebastião da banda do norte foi roubado do pirata hollandês de tres embarcações que trazia o dito inimigo de que não escapou fazenda alguma do dito seu irmão nem delle dito e que sómente no navio do mestre Antonio Jorge havia carregado cinco quintaes de ferro por conta do defunto seu irmão o qual navio veio a salvamento"...

O capitão Francisco Dias Velho é um dos que, não só se vêem saqueados, mas morrem às mãos dos piratas, na altura de Santa Catarina; Pedro Leme é outro que perde tudo no saque levado a efeito em São Vicente por Cavendish. Antônio de Azevedo Sá também.

Esses, em todo caso, tiveram o que perder. Enquanto outros...


A arca do pobre
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro

Há, realmente, os que são pobres de verdade, aqueles cujos inventários, por isso mesmo, se caracterizam por um laconismo desconcertante. Assim, enquanto Lourenço Castanho Taques deixa um espólio avaliado em 2:056$300 e Maria de Lara deixa o seu alvidrado em 2:623$220, que é que deixa Sebastião Rodrigues?

Sebastião Rodrigues deixa pouco: além da mulher e dois filhos, mais isto:

Um machado (avaliado em 200 réis); duas cunhas (meia pataca), uma caixa (50 réis); um casal de perus (300 réis); três francos (12 vinténs); e mais: onze peças forras.

Uma miséria, como se vê. A viúva, coitada! tem razões de sobra para não ficar satisfeita com herança tão modesta, pois não é crível que vá viver confortavelmente, após a morte do esposo, apenas com um machado, uma caixa velha, um par de perus e uma trinca de frangos. Tanto que, no inventário, o escrivão Antônio Pereira lança estas linhas difíceis:

"E logo no mesmo dia pela viúva foi dito que ela não queria herdar em a fazenda que se achou ficar por falecimento do seu marido e fazia cessão dos bens porque não queria nada deles".

A viúva, como se vê, não gostou da herança. E não era para menos...

Outro que, ao morrer, também não possui cabedais para deixar aos herdeiros, é Baltasar Soares. Deixa, apenas, "gente forra: Gaspar que está no sertão e sua mulher Joana e Martha e seus filhos João e Andreza e Christina e Ursula e Luiza e Magdalena".

Baltasar, como tantos outros, não possui nada desta vida, mas tem escravos habilmente registrados como gente forra. E não tem mais nada porque o avaliador, após o registro dessas peças, tem o cuidado de escrever: "e por não haver mais que lançar neste inventario, se não lançou".

Entretanto, Baltasar não quer saber se é pobre ou rico. Sabe apenas que é cristão, que não quer ir para o inferno e que a sua alma precisa de missas. E, assim, ao fazer seu testamento, tem exigências de nababo: pede, manda e ordena que seu corpo seja enterrado na igreja do Carmo; que a irmandade incorporada, lhe acompanhe o enterro e que o senhor vigário também faça parte do séquito; que lhe digam por alma nove missas com a maior brevidade (Baltasar receia que os padres possam vir a esquecer-se...); que se pague uma conta que ele deve a Pedro Taques, outra a Manuel João, outra a Francisco João, mais uma a Diogo Moreira e sete tostões a Domingos Luís. E mais: que se rezem duas missas a N. S. do Carmo, duas ao Santíssimo Sacramento, duas a Todos os Santos e uma a N. S. da Conceição.

Onde, porém, estará o dinheiro para tudo isso?

Os escravos não poderão ser vendidos, nem dados a pagamento, porque Baltasar, in articulo mortis, declara: "...os deixo forros e livres como o são de seu nascimento", acrescentando com muito empenho: "que nenhum herdeiro meu entenda com as peças que atraz deixo livres".

Como teriam, pois, se arranjado os herdeiros para cumprir tantas exigências, é coisa que não se sabe. Baltazar não tem nada com isso. Os testamentos são sagrados e suas ordens devem ser executadas tão inteira e compridamente como neles é conteúdo. Ao pé do testamento de Baltasar, os juízes Fradique de Melo Coutinho e Manuel Nunes inscrevem o clássico cumpra-se como nele se contém. Que os vivos, pois, se arranjem como puderem, que ele, já com um pé no outro mundo, espera tranqüilamente que paguem as suas dívidas e rezem as dezesseis missas pelo eterno descanso de sua alma.

Os reverendos padres não costumam rezar missas que lhes não sejam pagas religiosamente. Quando porventura - ou por desventura - os testamenteiros "se esquecem" de cumprir esse dever, os senhores sacerdotes mandam "que sejam notificados ditos testamenteiros que sob pena de excomunhão satisfaçam dentro de nove dias da notificação deste despacho..."

O prazo, às vezes, varia. Mas a excomunhão não falha. Razão por que, é de crer que Baltasar não foi para o inferno por falta de missas...


Homem de ferragoulo de baeta (1610) (Inv. e Test.)
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro

Mais pobre que esse originalíssimo Baltasar é Suzana Rodrigues que falece em 1661. Deixa ela, ao morrer, o viúvo que faz declarações: "E por o dito viuvo declarar que não possuía bens nenhuns moveis nem de raiz se não fez termo de avaliadores mais que este auto de estado para que a todo o tempo constasse de como se fizera inventario e disse que não tinha nem possuia de seu mais que um negro do gentio do Brasil por nome Luiz já velho e mandou o dito juiz ficasse o dito negro servindo aos ditos orfãos e a seu pae visto não ser cousa que se possa avaliar".

É pouco, em verdade. É quase nada. Em todo caso, um escravo, mesmo velho, sempre pode ser útil e, em muitos casos, prestar serviços apreciáveis.

Quem, todavia, nesse século paupérrimo, parece ter batido o recorde da miquiação, descendo ao nível mais baixo da pindaíba, é Manuel da Cunha Gago. O seu inventário consiste, apenas, nesta linha modesta e rápida, onde se acham todos os bens que, ao morrer, ele deixa aos desolados herdeiros:

"Foi avaliado um alambique todo furado e uma moenda velha".

Em verdade, não se pode ser mais sóbrio na vida...


Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro


[1] ..."os cobres em a vila de Santos, dez barras de ferro no rio de São Francisco, duas canoas de vaga e os mais bens que estão na ilha de Sta. Catarina"...

(Inventário de Francisco Dias Velho).


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