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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - BELMONTE - BIBLIOTECA NM
No tempo dos bandeirantes [04]

Conhecido principalmente pela atividade cartunística nos jornais paulistanos, e pelo seu personagem Juca Pato, o desenhista Benedito Bastos Barreto (nascido na capital paulista em 15/5/1896 e ali falecido em 19/4/1947), o Belmonte, foi autor de inúmeros livros, entre eles a obra No tempo dos Bandeirantes, que teve sua quarta e última edição publicada logo após a sua morte.

A edição virtual preparada por Novo Milênio objetiva resgatar esse trabalho, que, mesmo sendo baseado em pesquisas sem pleno rigor histórico, ajuda a desvendar particularidades da vida paulistana, paulista e, por conseqüência, também da Baixada Santista. Esta edição virtual é baseada na quarta edição, "revista, aumentada e definitiva", publicada pela Editora Melhoramentos, São Paulo, sem data (cerca de 1948), com 232 páginas e ilustrações do próprio Belmonte (obra no acervo do professor e pesquisador de História Francisco Carballa, de Santos/SP - ortografia atualizada nesta transcrição):

Leva para a página anterior[...]                                            NO TEMPO DOS BANDEIRANTES

[04] Ainda as fazendas

Cana, algodão e vinha - Os índios escravos - Os "senhores de grande séquito" - Os índios aldeados - Regimes de escravidão - Escravos em liberdade

pesar da excepcional importância da lavoura de trigo, o paulista, para manter a sua independência econômica no planalto, não pode entregar-se à monocultura, nem pode ser apenas lavrador.

Mesmo nos campos em que predominam, visivelmente, as searas de trigo, vamos encontrar culturas de cana, pedaços de algodoal, plantações de vinha, além dos cereais necessários ao sustento das gentes.

O trigo desempenha papel tão importante que, em 1633, reconhecendo que na terra não há dinheiro senão as ditas farinhas, o seu preço, para o porto de Santos, é elevado a mais de duzentos réis o alqueire, pois, segundo se alega na Câmara, a despesa do seu transporte para o mar fica em dois tostões e doze vinténs, e assim vem valer mais o carreto que a própria farinha...

Nos campos, trabalham os índios. São os negros. Uns, alugados nos aldeamentos, outros arrebatados ao sertão, violentamente, para que esta terra não pereça... Quem vai às selvas aprisionar indígenas - e não há quem não o faça - não pratica um ato de violência: vai apenas buscar o seu remédio. Se não é possível arrebanhar negros na costa da Mina ou da Guiné, vai-se placidamente aos bilreiros e carijós, pois o essencial é que, por falta de braços, não venha a lavoura a perecer, com dramáticas conseqüências para a vida dos moradores do planalto.

As fazendas vivem, assim, povoadas pelo gentio da terra: tupiniquins, bilreiros, tupioaens, tamoios, tupinambás, tememinós, pés largos, marmemins ou goamemins, índios da nação biobeba e índios da nação andante.

É em vão que se procura reduzir ou exterminar o escravagismo. Leis, alvarás, cartas régias, bandos e quartéis são desobedecidos com a maior displicência deste mundo, e nem mesmo as excomunhões conseguem assustar alguém. Contra aqueles, há alegação da muita pobreza desta gente que precisa do seu remédio... E, para imunidade contra as excomunhões e desencargo de consciência, manda-se comprar aos padres algumas bulas de composição... Feito o que, entra em cena a astúcia e, para não se afrontar a justiça com excessiva desfaçatez, estabelece-se que ninguém possui escravos. O que todos têm, são, apenas, serviços forros, peças forras, gentio da terra, gente do Brasil.

Desse modo, até austeros representantes do Poder possuem as suas peças de serviço, peças que também se encontram nas fazendas dos religiosos - jesuítas, carmelitas e beneditinos, sendo que, não poucas vezes, pela ascendência que estes pretendem arrogar-se sobre o elemento servil, provocam inúmeros conflitos com a população, conflitos que vão culminar na ruidosa expulsão dos padres da Companhia, que rumam para o Rio de Janeiro, e não sem terem, antes, ajustado contas com o vigário Albernaz, da igreja matriz, também expulso.


Almocafre usado na mineração do ouro
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro

E assim, umas após outras, descem dos sertões as levas de autóctones, para o trabalho nas fazendas paulistas. E vão surgindo, daí, aqueles potentados em arco e senhores de grande séquito de que, com tanta ufania, nos fala Pedro Taques: na fazenda de Pero Vaz de Barros vamos encontrar 70 peças do gentio da terra, na de Valentim de Barros, 120, além de 11 fugidas; Domingos Jorge Velho (o 1º desse nome, não o bandeirante) possui 79; Diogo Coutinho de Melo, 164, além de 1 africano que, no preço, vale geralmente por três ou quatro índios; Sebastião Pais de Barros possui 170; Maria Ribeiro, 210; Francisco Cubas, 167; Pascoal Leite Pais, 237; Antonio Pais de Barros, 311; Martim Rodrigues, 240...

Este último, como tantos outros, arrola algarismos para pesar as despesas que fez no descimento do gentio, escrevendo ao fim esta frase explicativa:

"O que hei gastado para buscar esta gente encantada."

O certo é que essa "gente encantada" não só presta serviços na lavoura, mas é preparada para exercer os mais variados ofícios, não sendo poucos os sapateiros, tecelões, carpinteiros e sombrereiros existentes na vila. São prestimosos e geralmente dóceis, pois as revoltas são, durante o século, em número tão ínfimo que chegam a constituir raríssimas exceções. Daí a razão por que muita gente, por esperteza ou comodidade, em lugar de ir ao sertão descer gentio, prefere trazê-lo dos aldeamentos das proximidades.

Ora, esses índios estão a salvo da escravidão. Pelo menos, providencia-se para que o estejam. Logo no início do século, precisamente em 16 de janeiro de 1600, na casa da Câmara, "acordaram os ditos oficiais e mais pessoas que lhe parecia bem a todos não haver juiz dos índios em razão de o regimento de sua majestade não dar juiz senão aos índios que os reverendos padres descerem novamente do sertão, que os índios que ora há na terra são moradores e povoadores da terra que aqui achou o senhor da terra Martim Afonso de Sousa quando a povoou e portanto lhes parecia bem que os índios estejam debaixo do capitão da terra e juízes ordinários dela para lhe fazerem justiça nos agravos que lhe fizerem, pois até agora assim estiveram e é uso e costume estarem desta maneira"...

Tais providências todavia não impedem que, cada vez que a Câmara empossa os "capitães de aldeia", estes, jurando sobre os Evangelhos, afirmem que farão seu ofício bem e verdadeiramente, adquirindo os índios em sua aldeia e retirando-os das casas dos moradores donde estiverem, eclesiásticos ou seculares...

Essa incursão nas tribos aldeadas não se faz, contudo, apenas para a exploração do trabalho índio. Quando alguém pretende ir ao sertão buscar o seu remédio e não possui escravos para o acompanhar, contrata o íncola aldeado. Tanto que, quando a Câmara toma conhecimento desses conluios suspeitos, trata logo de evitar a sortida:

...tendo vindo a sua notícia em como estão algumas tribos para saírem para o sertão em os quais haviam moradores que levavam Índios das Aldeias de Sua Alteza o que era contra o serviço de Sua Alteza, para o que lhes requeria mandasse evitar com quartéis e mais penas da lei não levassem os moradores os tais índios para o sertão e castigassem a todos que o contrário fizessem.


Casa rural, de sobrado, com balcão e corredor lateral
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro

A verdade, contudo, é que muitos desses índios acompanham os bandeirantes com indescritível entusiasmo. Principalmente quando estes investem para o Sul, rumo aos domínios dos guaranis, seus velhos inimigos [1]. Desse profundo ódio racial aproveitou-se largamente o paulista do bandeirismo nos seus arrasantes rushes contra o incipiente império que Castela construía, pacientemente, à sombra do meridiano alexandrino. É possível afirmar-se, pois, que o índio do planalto, na sua tríplice função de operário, de lavrador e de guerreiro, foi um fator de excepcional relevo na formação histórica e política da Capitania de São Vicente.

O regime de escravidão no planalto, contudo, está astronomicamente longe, em rigor e ferocidade, do que impera nas encommiendas do Guairá, nas minas de Potosí, nos ervais de Maracaju e nas próprias reduções jesuíticas do Paraguai, onde os inacinos mantêm uma disciplina verdadeiramente militar, não sendo alheios à mesma os próprios castigos corporais e o seviciamento [2].

Na vila, parece respirar-se, mesmo, um ar de excessiva liberdade, a julgar-se por episódios expressivos, e sabendo-se que a Câmara vive constantemente a fixar quartéis proibindo aos índios andarem nesta vila com paus, arcos e flechas de que sucedem brigas e desastres.

Esses passeios com exibições de armas são muito comuns na vila, onde os escravos, a todo o momento, desencadeiam conflitos. Daí as contínuas diligências dos senhores do Conselho a exigir que todo escravo que se achar com espingarda na vila seja preso e a espingarda perdida, e o senhor que lha deu e consentiu pague quatro mil réis para o alcaide e conselho para se evitar dano que nas criações fazem e o mais dano que se pode seguir.

Outras vezes, são ameaças contra os escravos que com suas armas de fogo fazem dano no gado desta vila, resultando daí, como é fácil prever, desordens e conflitos a que os oficiais têm que acudir, com sua vara na mão.

Ora, o simples fato de os senhores permitirem que seus escravos andem dando tiros pelas ruas, demonstra claramente que a palavra escravidão não tem, no planalto, o sentido sinistro que costumamos emprestar-lhe.


Tipo de casa rural térrea
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro

E, apesar das penalidades com que os ameaçam, os escravos, índios e tapanhunos não abandonam suas armas senão temporariamente - o tempo necessário para que a Câmara se esqueça deles e de suas armas devastadoras.

E a liberdade que os senhores lhes concedem vai a tal ponto que, quando não batem pernas pelas ruas, armando desordens, organizam complicados bailes de dia e de noite - como se afirma na Câmara, mais de uma vez, em 1623 - bailes em que sucediam muitos pecados mortais e insolências contra o serviço de Deus e contra o bem comum, além de outras coisas que o senhor procurador, pudicamente, resolve calar, por não serem decentes...

Essas pequenas fraquezas, todavia, em nada diminuem o valor do índio, nem a importância econômica e social de sua existência no planalto.

Na vida paulista do seiscentismo, ele está presente aonde quer que nos dirijamos. Aqui é Guranharan, ali Cunhajaocá, acolá Tucambira. Os seus nomes bonitos e eufônicos ecoam pelos casarões ou pelos campos:

Apingorá, Gocaram, Buti, Galupe, Goanda, Goapi, Garassiassa, Tape, Sabaíba, Tabaiúra, Caraíba, Tarse, Goassi, Derassi...

Só eles sabem dar-se esses apelidos sonoros e fascinantes. Muitos deles, porém, sob o domínio e o capricho de senhores de mau gosto, vêem os seus lindos nomes trocados. E passam a chamar-se, então, Antonio moleque ladino, Francisca ladina, Madalena malos pés, Policena, Pantaleão, Pascácio, Macário, Potência, Estácia, Venturosa, Rubeca...

Mas, coitados! se carregam esses nomes lamentáveis, a culpa não é deles...


Um almofariz
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro


[1] Ainda em 1552, antes da fundação de São Paulo, chegam a Assunção alguns caciques do Guairá, entre eles Arapisandu, a pedir socorro contra oss tupis (El Guairá, Ramón I. Cardoso, pág. 28)


[2] Cf. Padre Bernardo Capdeveile, Misiones Jesuíticas en el Paraguay.


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