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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS
Uma jangada perigosa e que não navega

Na época em que esta história foi escrita, já a produção de banana em Santos, no seu recém-emancipado (em 1949) distrito de Cubatão e em todo o litoral paulista entrava em declínio, sendo substituída por outras atividades econômicas. Os trolys (troles) e as pequenas locomotivas decauville - nas mini-ferrovias que ligavam as fazendas às estradas principais, para o transporte da banana até os navios no porto santista ou para a capital paulista - já começavam a ser abandonados.

O pesquisador e historiador Francisco Martins dos Santos contou esta história - ambientada na área continental de Santos, entre os atuais municípios de Cubatão e Bertioga - no jornal santista A Tribuna, na edição de domingo, 25 de maio de 1952:

A Jangada
(drama dos antigos bananais litorâneos)

Francisco Martins dos Santos (*)

No litoral de S. Paulo, jangada é coivara sem queima, derrubada de varjão, trançado de árvores caídas, de galhos e ramos secos, amontoado de paulama, que os preparadores de bananais, para não destacar o terreno, deixam curar ao sol e à chuva, barateando a lavoura, sombreando e umidificando o solo, no mais primitivo e pitoresco dos processos agrícolas. Nos interstícios da jangada é que eles plantam, pouco depois, as socas ou touceiras de banana.

É perigoso atravessar uma jangada, e penoso, muito penoso, para o homem da cidade ou para os caçadores.


Imagem publicada com a matéria

O bananal andava movimentado: era tempo de corte. Havia embarque dali a dois dias e a ordem do Zé Franco, administrador, era clara: - "Mil e duzentas dúzias de cachos para o Argentina (N.E.: navio com esse nome).

Na imensidão do sítio, que se estendia por todo o varjão do Caiacica, floresta virgem ainda há alguns anos atrás, havia um movimento intenso de trolys e camaradas, negros, bugres, nortistas, caboclos e caiçaras, amálgama de gente, barbados, descabelados, olhos fundos, cobertos de nódoa de banana, indo e vindo, suarentos, tresundantes a cachaça. Eram os párias da lavoura, os vencedores anônimos da maleita, da frieira brava, dos charcos e das jangadas a viverem o drama do bananal paulista.

A propriedade do Caiacica, toda cortada de linhas de decauville (N.E.: pequenas locomotivas com vagões, de serviço das fazendas) que iam ter aos cubatões do rio, era um autêntico desterro. De um lado, para cima, as serras grandes, altas, virgens, do Bananal e do Juquerirú; para baixo, para o lado do mar, légua e meia de varjão maciço, charcoso, intransponível, valendo por um mundo de chão seco, rodando para o Norte, a cercá-la por aquele lado, e para o Sul apenas a aberta do rio, que significava quatro horas de canoa até a confluência do Bertioga.

Só a aguardente salvava aqueles homens da umidade e das febres que rondavam o sítio, onde, durante os embarques, o trabalho começava às quatro da manhã e terminava dentro da noite, de treva a treva; só a sorte esquivava os párias às surucucus, urutus e jararacas, que se enrodilhavam à sua passagem pelos saranzais; só a necessidade os mantinha ali, sob o garrote do Zé Franco.

O administrador era um português provindicano, com muitos anos de Brasil; representava ele, no comando daqueles cento e tantos homens, um capitalista argentino que raríssimas vezes aparecia pela propriedade. José Franco, sêo Zé Franco, como diziam, era o tipo dos antigos feitores de Engenho, ao tempo da escravidão, exibidos na história à execração pública; violento, despótico, alcoólatra, mau, blasfemador, servindo essas qualidades com uma catadura terrível e uma estrutura de paquiderme. Corriam coisas tenebrosas a seu respeito e ele sabia disso, parecendo gostar que dissessem dele o que diziam; era odiado pela maioria mas se impunha pelo terror e tinha o respeito acovardado de todos.

Não dava dois passos ou duas palavras com os camaradas sem que lhe escapasse da boca um palavrão ou uma injúria, e daquela natureza esplêndida que o cercava, cheia de aromas, de colorido e de harmonias, só lhe interessava, invariavelmente, o sentido econômico e financeiro, a renda que ela podia dar ao gringo e a ele mesmo.

Zé Franco pagava salários ínfimos aos desgraçados que ali iam parar, àquela arapuca de onde poucos podiam sair - 4$ a 5$ por dia, conforme a força do camarada - e assim mesmo não chegava a lhes pagar um tostão, quase sempre, porque era ele quem fornecia a pensão a 2$400 por dia, e quem explorava o armazém, onde em cachaça, em fósforo, fumo, querosene, farinha, sal e miudezas, ia buscar o resto da diária de cada um, fazendo contas a seu jeito e indiscutíveis... Era comum chegar o fim do mês, a hora do acerto de contas, com dezenas de camaradas prejudicados por saldos devedores absurdos, resmungando em protesto:

- Mas sêo Zé Franco, eu não bibi 60 litro de cachaça! Credo!

- O sinhô tá cobrando cachaça a preço de vinho francêis!

- Não é possivi sêo Franco, as minha conta nun dá isso!...

E o administrador resolvia sempre a coisa com aquelas palavras costumeiras, que eram ao mesmo tempo uma desculpa e uma ameaça:

- Ora, ora, eu cá não 'stou pra m'incomudar com coisinhas, homem! Não sabes fazer contas, não acentas o que bebes e bens lá com essas cantigas toda bêz; bai fazer as contas dirâitinho e bê lá s'estou na esquina! Bai com Deus, antes que bás com o diabo!...

Era sempre assim; camaradas havia que pagavam seu débito e no mês seguinte ainda deviam a mesma importância, acumulada então com o novo débito do mês em acerto. Quase todos, por isso, estavam atrasados "com o sítio" ou com o sêo Zé Franco, o que vinha a ser a mesma coisa, e nem despedir-se podiam.

Muito de propósito sêo Zé Franco não admitia que trabalhador algum possuísse canoa para uso próprio; além da chatas enormes e das lanchas a óleo cru para artá-las, só existiam canoas e batéias do bananal, acorrentadas na ribanceira do rio ou recolhidas à garage.

Quem observasse aqueles homens à hora do recolher, ao bater do sino para a janta, talvez não soubesse distingui-los de condenados a trabalhos forçados nas penitenciárias de todo o mundo, esquálidos, o peito fundo, arcados sob o próprio peso, o ferro a pender da mão cansada, a respiração ofegante, a tuberculose a lhes rondar as carcaças, a caminho dos ranchos precários e da bóia mal sofrida, que tresandava a sebo, do fornecimento.

Aqueles homens viviam e morriam como animais, sempre em luta com a natureza, derrubando matas, fazendo jangadas, abrindo valas, destocando o terreno, delirando de febres, morrendo de pneumonias, de picadas de cobras, de tísica, sem socorro, atirados sobre tarimbas, esteiras, ou quando muito camas-de-vento. Demais, em muitos sítios daqueles cafundós, havia mais de trinta anos que era assim, nem melhor nem pior.

A falta de mulheres durante meses inteiros e, para alguns, durante anos, tornava aqueles homens viciados, quase sempre, e, se uma aparecia, para lavadeira ou cozinheira, havia luta por ela; se era uma visitante, perseguiam-na com olhares compridos, de avidez e concupiscência, que vinham do fundo do sangue, em gritos de sexualismo recalcado, em repelões de libido contrariada. Ninguém se atrevia a casar e a levar sua mulher para aquele lugar; o único privilegiado era o sêo Zé Franco, que variava a cada ano, à vista daqueles infelizes, que se limitavam a olhá-la de longe, como a frutos proibidos, muito proibidos, receosos de as ofenderem com os olhos e de incidirem, de qualquer maneira, nas cóleras do administrador.

Como em todos os núcleos humanos daquela natureza, havia entre aqueles cento e muito semi-escravos, homens que se haviam adaptado ao administrador, recebendo bem a sua tirania e aceitando o seu despotismo, para lhe merecerem as graças algum dia, mas esses, em geral, eram estrangeiros, portugueses e espanhóis, e se tornaram com o tempo o que queriam, seus sequazes e fiscais, seus capangas, chefiando os outros, dirigindo os cortes e os embarques, acompanhando as guarnições das lanchas e das chatas, que se enfileiravam pelo rio, rumo a Santos, e fazendo as trancinhas, os fuxicos que as circunstâncias permitiam. De vez em quando, e por muitos motivos, havia atritos com eles, e não raro, apesar de armados, com licença do Zé Franco, apareciam feridos a foice, a faca e até a canivete, pelos camaradas, provocando desforras e reações violentas do administrador contra os possíveis culpados.

Essa era a gente e essa a vida do bananal.


Bananal, no município de Santos
Imagem: cartão postal, possivelmente de cerca de 1940, no acervo do historiador Waldir Rueda

Entretanto, naquele inferno fora meter-se também, havia pouco mais de um ano, o Minguta, um rapagão do Guaratuba, muito vivo, muito forte, respirando mocidade, tornado em breve o camarada mais benquisto do bananal.

A razão do Minguta para se desterrar no reino do Zé Franco era poderosa; gostava de alguém no Itaguaré, estava noivo da filha do Mindelo, e como tinha ambições, para ganhar uns dinheiros mais depressa, para juntar umas economias e ter logo um rancho bom, boas canoas, boa roça, criação, minjoada nova, redes próprias, lá mesmo no Itaguaré, resolvera empreitar derrubadas pelos sítios vizinhos. O destino levara-o para o Caiacica, para o reino do Zé Franco.

O português, quando o viu, apalpou-o no corpo todo, com ironia, piscando para os seus fiscais:

- Carne noba (N.E.: nova, no sotaque dos antigos portugueses)... bons braços... boas pernas... bons músculos... muito bâin... muito bâin!...

Zé Franco arrumou-o nos bananais novos; derrubadas de matas de meio-varjão e encostas, jangadas, queima, e abertura de valas, tudo no pior setor, no mais exposto dos trabalhos brutos, sem similar nas lavouras diversas.

Atiraram-no para as tranqueiras do varjão, onde o emaranhado das cipoúbas, crisciúmas, taquarussus, tucuns, brejaúvas, samambaiussus e caraguatás abrigava traições e surpresas de morte. Mas o tempo foi correndo e o que se via era o Minguta enfrentar e vencer todos os perigos e tropeços; cobras terríveis cederam sempre à agilidade do caiçara, afugentadas ou mortas; febres e resfriados, pneumonias, enxaquecas, reumatismo, nada pôde com ele, apesar de refratário à cachaça. Refratário não é bem o termo; Minguta sentia a necessidade de beber, como todos os camaradas, mas sacrificava-se, confiando em sua mocidade, no afã de economizar, de juntar dinheiro, para mais depressa realizar, longe dali, os seus projetos de felicidade.

Ao cabo do primeiro ano de serviço, o caiçara do Guaratuba já sentia no corpo o efeito do trabalho desenfreado, desabrigado, insalubre, quase sempre na umidade e nos charcos. As pernas estavam ficando enferrujadas, os músculos cansados, as frieiras bravas estavam lhe estragando os pés, e não fosse o convívio do mar que já trazia, o hábito da friagem do litoral, o Minguta decerto não resistiria por mais tempo; mas resistia bem e não dava parte de fraco, mais forte pelo moral, pelo pensamento sempre posto na Mindelinha, naquele dia próximo em que devia voltar definitivamente para a sua praia, com o seu pequeno capital economizado em dois anos de sacrifício; mais um ano de esforço decerto não o mataria.

Zé Franco via no Minguta um verdadeiro caso dentro dos seus domínios; era o único homem que ele não conseguia dobrar e explorar, porque não bebia nem fumava e não fazia contas em seu armazém. Muitas vezes o administrador tentara viciá-lo, convidando-o a tomar uma cerveja, uma pinga boa, um vinho verde, oferecendo-lhe cigarros e até charutos, com teimosa insistência, mas o Minguta sempre escapara à tentação do português, recusando-lhe com jeito o convite, amparado intimamente por aquela sua ânsia deliberada de juntar dinheiro.

Zé Franco, talvez por isso, detestava-o, remordendo-se intimamente, e Minguta, pouco se importando com as simpatias do administrador, lá ia engavetando toda a sobra de salário que podia, ao fim de cada mês ou de cada acerto de empreitada, a tal ponto que uma coisa andava na cabeça de toda a gente e com certeza ainda mais na cabeça de Zé Franco - onde meteria ele aquelas economias?

Os camaradas do sítio, ao contrário do administrador, queriam bem àquele companheiro risonho e patranheiro, cheio de resolução e de coragem, principalmente porque viam nele, o único entre todos, capaz de levantar a cabeça para o português, mas, nem por isso lhe poupavam visitas noturnas, de gatinhas, em torno da cama, sem níquel como andavam, farejando suas misteriosas reservas, para o aliviarem de alguma.

Zé Franco era um homem tenebroso; já tinha dado cabo de meia dúzia de camaradas, na calada da noite, à força de pau; já tinha avançado em terras de brasileiros pobres que mal estavam começando pequenas lavouras em redor; já tinha roubado muitos contos de réis em salários de infelizes e em preços e anotações de gêneros; só lhe faltava embrulhar ao Minguta e surripiar as suas economias feitas a tanto custo, e via-se que planejava alguma coisa em torno do caiçara, porque um dia chamou-o e lhe disse que, se quisesse continuar ali, tinha que ser trabalhando na banda do Juquerirú, na preparação do bananal novo que queria plantar naquelas terras novas, devendo para isso mudar-se para aquela zona, três ou quatro quilômetros para além da sede, em lugar solitário, construindo seu rancho e preparando a própria comida "para não perder tempo" em caminhadas.

Minguta pensou um pouco; em seu cálculo, ao preço combinado para a empreitada, daria para ganhar, dentro de alguns meses, o dobro do que ganhara até então, embora o sacrifício fosse ainda maior; não teve dúvidas; acertou as condições definitivas com o administrador e apertou-lhe a mão calosa selando o negócio. Sabia ele que as onças andavam por lá, rondando os cachorros da região; vira muitas vezes o rastro fresco das pintadas, impresso no chão, molhado do rocio da madrugada; sabia que todos os perigos cresceriam e todos os trabalhos aumentavam, que iria levar uma vida de bugre, mas pensou também que seria só por mais alguns meses, depois do que diria um adeus definitivo a tudo e voltaria para a sua liberdade; por isso, aceitou a oferta-intimação do Zé Franco.

Uma condição apenas, apresentou ele ao Zé Franco, para aceitar o novo acordo - precisava ir até Guaratuba, visitar a noiva; voltaria dentro de três dias -. O administrador concordou, uma vez que não levasse "nada do que era seu" para se obrigar à volta. Minguta sorriu; bem compreendia aquele "nada" a que o português se referia. Pouco mais tarde partia, mostrando ao Zé Franco que nada levava, a não ser a foice, para um caso de emergência.

É que, na véspera, ele já havia enterrado, em sítio distante, o bauzinho em que guardava as suas economias, a única coisa que lhe interessava esconder à avidez do administrador, salvando o seu esforço de tanto tempo.

O caiçara tomou a picada de caçador que rodeava a serra e ia sair num resto de aldeamento de bugres mansos, a dez quilômetros dali, no encontro com o rio Taguaré, onde ele começava a encachoeirar. Era o caminho mais rápido para o rancho do Mindelo, apesar de levar mais de meio dia de caminhada.

Foi uma festa a presença do Minguta em Guaratuba. A praia familiar, com seus encantos e com a presença da noiva, surgia aos olhos e sentidos extasiados como uma visão do paraíso. Passou dois dias esquecidos na quietude feliz da praia bonita.

No prazo marcado, dentro dos três dias de licença, o Minguta estava de volta. Trazia, por empréstimo do futuro sogro, uma 28 fogo-central e quinze ou vinte cartuchos de chumbo grosso na guaiaca. Era esse, talvez, o motivo principal da sua ida ao rancho do Mindelo, pois percebera os intuitos do administrador e vira que não podia dispensar um meio de defesa, tanto contra ele como contra as onças do sertão bravo. Trazia ainda, para companheiro, um amigo do Guaratuba, primo da Mindelinha. Zé Franco viu-o chegar, de arma às costas, e resmungou contrariado:

- Caiçara sabido do diabo!

Minguta retomou o serviço; ajudado pelo companheiro, fez um rancho grande de talas de jissára, barreado por fora, cobriu-o de guaricanga e meteu-se nele, em seguida, com todas as suas coisas.

Começou a limpa, a foice e a facão, trazendo do sítio mais alguns homens para isso, restolhando o mato, livrando-o das moitas, das rasteiras e das arbustivas, até que, numa extensão de meio quilômetro em quadra, a enxara ficou desimpedida por baixo, limpa como um bosque, mal comparando. Já podia começar a derrubada.

Minguta olhou a majestade daquele aceiro virgem que desafiava o homem; tinha pena de derrubar aqueles paus enormes, aqueles embirussus eretos, de quinze braças de alto, aqueles guatambus, aqueles vinháticos escamados de tanta idade, aquelas caixetas velhas e novas, aqueles ingaeiros verdinhos, espalmados, bonitos de ver, onde as maitacas em bando vinham comer as favas maduras; aquelas bocuveiras tramadas de ferra-boi, onde a passarada miúda vinha trissar e fartar-se nas frutinhas negras; e os bapuás onde sarabandeavam os tucanos e os periquitos; os guacás onde os macacos se espalhavam irrequietos; as grapiapunhas onde os jacus grasnavam de manhazinha; baubus cobertos de ciporoba, onde saíras e tangarás, sanhaços e terês se ajuntavam em matinadas, e as jissaras e guarirobas, tão lindas.

Tinha pena de derrubar tudo aquilo, de destruir toda aquela beleza, ele, o naturista inato, o apaixonado da selva, mas era preciso, para o triunfo efêmero dos bananais, os grandes sugadores do humus das grotas e dos varjões; tinha remorso, muito remorso, mas precisava ser feliz, precisava do dinheiro do Zé Franco, e seria por pouco tempo, porque logo ao fim daquele serviço voltaria a ser apenas roceiro e pescador, ao lado da sua Mindelinha, e Minguta se atirou, com todas as forças, à derrubada.

A solidão era enorme naquele fundo de bananal, quando ao fim do dia voltavam os jornaleiros para a sede, permanecendo na empreitada apenas os dois homens; mas ambos logo se habituaram e o Minguta já estava até gostando daquela quietude, ao fim de pouco tempo.

Certa noite, o Minguta acordou com o miado forte da pintada; por uma fresta do rancho ele viu o vulto da onça, a rondar seu terreiro; não teve medo, saiu para o sereno com a 28 carregada, juntou alguma lenha seca, acendeu uma fogueira a dez metros do tejupar, e voltou para a cama, dormindo sem mais pensar no bicho. No dia seguinte, armou um fojo à boca da mata, como os que vira os bugres armar, anos atrás, e ficou de sobreaviso. No terceiro dia a fera estava no fundo da armadilha e o Minguta esfolou-a, estendendo-lhe o couro ao sol.

Quase não se lembrava mais do Zé Franco; só o vira uma vez, depois que empreitara o novo serviço do Juquerirú, quando fora ao armazém renovar as suas provisões, pagando-as à vista, como fizera na primeira compra. Sabia as novidades do sítio, por um ou outro camarada, que vinha até ali para lhas contar. Naquele mês tinham morrido três cortadores de fruta, dois de pneumonia, sem socorro algum, e outro de uma surra que o Zé Franco lhe aplicara pela audácia de reclamar a comida e as contas recebidas, passando porém por vítima das sezões.

Certa noite, um fato grave veio revelar ao Minguta que a sua vida estava em perigo; alguém tentou matá-lo enquanto dormia, a tiros de garrucha; o que o livrou de ser morto foi a casualidade, pura e simples, porque, numa inspiração instintiva, ele trocara a posição da cama e, naturalmente, quem dera o tiro examinara o rancho em sua ausência e vira a cama na antiga posição, acertando-a com a fresta onde assestara a arma; daí o erro. A escuridão da noite facilitara a fuga ao assassino.

Nas suspeitas do Minguta entrou logo o administrador, que lhe farejava o dinheiro, e que era o único interessado em sua morte, por isso mesmo. Reforçou essa impressão do caiçara a visita que o Zé Franco lhe fez no dia seguinte, muito cedo, à hora de sair para os trabalhos da empreitada.

O caiçara sorriu intimamente e murmurou consigo:

- Raio do português, bêio bê si eu tava morto!...

Aproveitando a visita, Minguta queixou-se do acontecimento e o Zé Franco lhe prometeu, solenemente, que iria tomar providências para descobrir o autor do atentado. Era muito cínico o administrador.

Minguta, calculando o desapontamento do homem, viu logo que a façanha havia de se repetir mais dia menos dia e tomou suas medidas. Logo ali perto, no aceiro da fonte havia um tronco bom, nem fino nem grosso, que não dava para onça trepar; fez um mutá, um girau de caça entre dois galhos fortes da árvore, fez-lhe uma coberta de folhas de patí, trançou uma escada de embira grossa que dava do mutá quase ao chão, tudo muito rápido, longe das vistas dos outros camaradas, e deixou correr o resto do dia.

Já tinha mais de trezentos metros de jangada em quadra; um mar de paulama trançada, grossa e fina, forrada de gravetos, galharia e folha seca. Em cinco meses ele fizera o trabalho de dez; já podia plantar as socas de banana; o que ia receber naqueles dias já dava para largar o sítio e correr para a tão sonhada liberdade de Itaguaré; estava cansado mas satisfeito.

Durante várias noites, armado com a fogo central do Mindelo, Minguta dormiu no mutá do aceiro, levando apenas o companheiro trazido de Guaratuba, o Gracindo, que o acompanhava como uma sombra em todas as suas resoluções e atividades; de lá da lombada do morro, eles divisavam a sombra do rancho, que ficava num limpo de chão batido, no alto socalco de terra vermelha, que parecia uma ilha na cabeça do varjão.

Mais duas vezes tentaram contra a vida do Minguta, certos de que ele estivesse dormindo no rancho, e o caiçara assistira a parte final dos dois atentados, acordado pelos primeiros tiros; vira os vultos do criminoso e dos seus comparsas em desabalada pelo carreiro abaixo, após as tentativas. Pensou na miséria que aquilo representava, e tudo por causa de uns poucos dinheiros que ele ganhara honestamente, com tanto sacrifício.

Depois das tentativas de morte, lá estava, nas manhãs seguintes, o Minguta, alegre, lampeiro, trabalhando na empreitada, como se nada houvesse ocorrido, e o Zé Franco, ultimamente mais assíduo, aparecia "para ver o trabalho do rapaz" e felicitá-lo pela rapidez com que estava preparando tudo... mas em verdade para ver se ele estava morto. Minguta mostrou-lhe novamente o rancho e as roupas varadas de chumbo:

- Iscapei di sorte, sêo Zé Franco... é que eu mesmo fio de Deus... tudo penerado, ói só... inté parece que eu sô micuim, pra ficá no meio dos tiro seim nada acuntecê, não é mêmo?...

O administrador continuou a jurar-lhe que havia de punir o criminoso, mas o Minguta via-o por dentro, naquele seu despeito imenso de não lhe poder dar cabo do canastro. O português havia de estar pensando que ele tinha o corpo fechado por alguma reza.

Mas a coisa já estava passando dos limites, o Minguta não podia consentir na eternização daquela anomalia e dormir no mato a vida inteira; precisava surpreender o assassino, ver ao certo quem ele era, para tomar depois uma atitude definitiva. Se era mesmo coisa do Zé Franco, certamente ele já andaria aborrecido com o insucesso dos seus auxiliares, e havia de procurar, numa noite daquelas, desempenhar ele mesmo a criminosa incumbência.

Naquela expectativa o Minguta tomou medidas; levantou à pequena distância do rancho, do lado do mato, um tapume de varas trançadas, ligadas a embira, como se fosse para um cercado de animais; seria para porcos ou para alguma coisa, se alguém perguntasse, mas, em verdade, era para dormir atrás dele, o que fez naquelas noites a seguir.

A previsão do camarada confirmou-se; deu-se então a quinta tentativa contra ele, e dessa vez, vira bem, fora o Zé Franco em pessoa; vira-o de perto, dar os tiros e correr pelo carreiro, como os antecessores.

Pela primeira vez, Minguta sentiu o ódio estuar em todo o corpo; até ali tivera pelo administrador apenas nojo, aversão, e até pena, mas, agora que o via empenhado assim em sua eliminação, convencia-se de que o homem era uma assassino vulgar, um monstro, responsável de fato pela morte de todos aqueles infelizes trucidados em seu sítio, pelo sofrimento daquelas criaturas atacadas de anemias, de fraqueza do peito, de febres e tanta coisa mais, que morriam sem socorro sob as suas vistas; e só então invadiu o pensamento do caiçara a idéia da desforra, da vingança; em seu nome e em nome de todos os desgraçados do Caiacica.

Na manhã seguinte, logo cedo, Zé Franco apareceu na empreitada e encontrou o Minguta entregue calmamente ao serviço. O administrador arregalou uns olhos de espanto e murmurou entre dentes, duas palavras que bem o traduziam:

- Será pussíbel?

Contendo seus ímpetos, que eram de sumir o facão no ventre do português, o caiçara dirigiu-se a ele; contou-lhe o novo atentado, dizendo-lhe que estava com vontade de acertar as contas com o sítio para ir-se embora dali, antes que lhe acontecesse coisa pior. Zé Franco pôs-se a acalmá-lo e por fim lhe propôs que fizesse a queima de toda aquela jangada, para uma experiência que pretendia fazer com o chão cinzado, verificando assim a diferença da produção, para mais ou para menos, em relação à parte velha do bananal; depois, então, acertariam as contas e ele poderia "ir com Deus"...

Minguta, esperto e atento, viu naquilo apenas um pretexto para retê-lo por mais tempo no Caiacica e poder levar avante o propósito de eliminá-lo, porque não era costume e até feria a tradição dos bananais, a queima da jangada, mas uma inspiração subiu-lhe à mente naquele instante, e ele acedeu, sem protesto, aos desejos do administrador.

Grande parte da paulama já estava em condições de receber fogo e uma estiada forte, de vários dias, ressecara de tal forma a folhagem mais nova, a ramaria dos últimos setores, que tudo aquilo arderia com facilidade.

Minguta penetrou pela jangada, subindo aqui, descendo ali, saltando acolá, equilibrando-se por cima dos troncos; a certa altura parou e começou a isolar do conjunto a parte final daquele mar de pau e folha. O Gracindo ajudava-o na estranha tarefa, ambos de machado e foice, a se revezarem em suas mãos.

Depois de dois dias daquele trabalho quase incompreensível, o Minguta e o Gracindo, auxiliados pelos outros jornaleiros da empreitada, começaram a queima da paulama. A jangada ardeu durante dois dias e duas noites. Minguta assistiu ao espetáculo do alto do baepi, e à noite do alto do mutá, onde voltara a dormir com o Gracindo.

Ao fim daqueles dois dias, entre os rescaldos da queimada, só existia, dentro do terreno de cinzas, de destroços negros e de piúgas, aquele estranho camalote poupado, como uma ilha de paus caídos e cruzados, galhos, folhas secas, e gravetos de todos os tamanhos, com dois metros de altura.

Aí, sem dar tempo à visita do Zé Franco, Minguta apareceu na sede do bananal. Era a primeira vez que ele aparecia de cara enfarruscada, denotando preocupação. Falou alto para o administrador:

- Patrão! A queimada pronta como o sinhô mandô... agora quero as minha conta.... e adespois podemo i lá pra mó di bê o trabáio!

O português viu-lhe a disposição e tentou ainda um arranjo para a situação; respondeu-lhe:

- Stá baain... stá bâin rapaz! Deixa star a conta que eu bou confrí-la; amenhã de menhã irai brificare o serbiço e lebar-te a dinhâiro lá mesmo!...

Minguta não discutiu; pôs-se de volta para o rancho. Eram mais de doze contos que o Zé Franco devia levar-lhe, para pagamento seu e dos homens; de toda a bolada apenas quatro ou cinco contos iriam juntar-se às suas economias, que ninguém sabia onde estavam e em quanto andavam.

A notícia correu todo o bananal - o Minguta ia receber massarocas de dinheiro... homem feliz aquele... mas merecia, era o único ali que conseguira juntar dinheiro e fugir ao vício; podia servir de exemplo a todos...

***

Como anteriormente, naquela noite, o caiçara e mais o Gracindo dormiram no retiro da mata, no girau de caça. Houve naquela madrugada a última tentativa de extermínio contra ele; assistiu-a lá de cima do seu refúgio, rindo dos assaltantes e do Gracindo, que dormia a sono solto. No dia seguinte, bem cedo, já estava sentado na raiz velha de um pau d'arco, na entrada do setor, à espera do português; Zé Franco não apareceu, contra a sua expectativa e a promessa que fizera. Minguta botou-se para a sede, seguido pelo Gracindo.

Zé Franco não escondeu a sua surpresa e seu mau humor, dizendo-lhe do alto da escada, antes mesmo que ele falasse:

- Pensavas que eu não ia? Que eu não te queria pagare, hâin? Parece que tâins muita pressa do dinhâiro!... Ainda bâain que há gente cá para assistir ao pagamento... não tenho fé nenhuma nesses caiçaras como tu, metidos a incumunistas!...

Minguta odiou-o mais do que nunca, mas conteve-se ainda, para chegar à solução... arquitetada por ele.

Zé Franco chamou para a mesa do escritório alguns dos fiscais que ali estavam e pagou ao Minguta em várias notas de cem e duzentos mil réis. O caiçara não sabia ler nem escrever, mas em contas ninguém lhe passava a perna; assinou o recibo de cruz, e dois fiscais que assistiam assinaram como testemunhas.

Minguta meteu o dinheiro no bolso e, preparando-se para a volta, fez o convite ao administrador:

- Patrão! Bâmo bê o sirbiço?

- Sim, sim, bou lá, ora'iessa, quero ber o que estou pagando, mas bou daqui a pouco, podes esperar-me lá!

Minguta não insistiu; pôs-se a caminho da empreitada; pagaria todos os homens à sua chegada e prepararia a recepção ao português...

Uma hora depois, e devia ser então duas horas da tarde, Zé Franco, sozinho, pracatando no chão as solas pregueadas das suas botas de couro cru, seguia para o setor do Minguta; ia sozinho porque queria dar impressão de confiança e comover talvez o praiano.

Quando ele chegou, o Minguta já o esperava junto ao pau d'arco, sozinho também. Os dois andavam num jogo psicológico que cheirava a tragédia.

Zé Franco lançou um olhar para os longes do setor. A empreitada estava limpa que parecia chão de roça, só faltavam as valas, que seriam abertas depois, pelos jornaleiros ou em nova empreitada. O português viu o trabalho bonito, acabado, e fez pouco dele:

- Podria star milhóre! Mas enfim... lá!

Seus olhos deram com o ilhote de paulama ao fundo da várzea limpa:

- Que negócio é aquele lá em baixo, ó Minguta?!

O praiano esfriou: seu ódio surdo ao administrador reavivou-se; quase estourava. A voz do homem parecia um chicote:

- Que porcaria é aquela que fizeste, oh rapaz? Pra que sérbe aquilo? - insistiu Zé Franco.

Tudo vinha saindo como o Minguta queria, e ele respondeu contemporizando:

- O sinhô há de bê pra qui é! É uma ispiriência tambéim prô sinhô, que eu aprendi por esses mundo de lavôra do litorá! Bâmo inté lá, patrão!...

Caminharam até o estranho camalote. Um embirussu muito grosso projetava-se para fora do ilhote, como um pontilhão, ligando o alto daquele resto de jangada ao chão limpo do varjão seco. Zé Franco era homem bruto, não raciocinava muito, só tinha tino para as coisas de dinheiro; não titubeou, subiu pelo tronco largo do embirussu, que o praiano indicava. Minguta foi logo atrás. Passaram para um araçana caído, que partia do embirussu e o continuava, cruzando o centro da estiva.

Aquele resto de jangada cobria uma depressão do terreno, onde se haviam refugiado todas as cobras que o fogo alvoroçara e tocara da paulama; cobras, escorpiões, tarântulas, caranguejeiras, todos os peçonhentos da região devastada pelas chamas; e eles, os dois homens, estavam bem em cima, no coração da boituva.

Minguta via, e com vesânico prazer, o que os olhos desabituados do português não viam, os vultos sorrateiros de dezenas de jararacas, jaracussus, boipebas, cotiaras, urutus e outras ainda, passando lá por baixo, ou enrodilhando-se nos galhos mais verdes, formando a boituva como diziam os bugres do Juqueriru, foco de serpentes assustadas, excitadas, e das piores.

O caiçara olhou para as costas largas do administrador, que parecia um paquiderme, andando com dificuldade, à sua frente; aproximou-se mais. O Zé Franco falou de novo, sem se voltar, num tom áspero:

- Afinal, não explicaste, oh rapaz...

E continuaria a frase rude, se um empurrão de dois braços fortes não o atingisse nas costas, precipitando-o para fora do tronco.

Houve um estralejar de galhos; o peso do Zé Franco arriava a trama dos gravetos e paus podres, afundando o centro da jangada, um grito estertorado do português feriu o silêncio do lugar. Minguta gritou-lhe com raiva:

- Ói, bandido, a jangada era prá isto! Não quiria sabê? Pois morre pra í, pra pagá seus pecado!...

Zé Franco urrava lá de baixo, afogado nos detritos, naquele dilúvio de folhas secas, que caíam de todo lado, entupindo-lhe a boca e tolhendo-lhe a vista, procurando em vão um apoio para levantar o corpanzil. Só agora ele via, alvoroçadas, insinuando-se por cima do seu corpo, saltando por todos os lados e por todos os cantos, as cobras, as aranhas, aquela bicharia de todos os tamanhos, de todas as formas, cores e grossuras.

Desvairado, o administrador fazia gestos de defesa, gritando para que o salvassem, implorando ao próprio Minguta que o tirasse dali, que o não matasse, que o não deixasse morrer assim... e quanto mais ele gritava e se debatia, mais se alvoroçavam as jararacas e urutus, as serpentes todas, saltando-lhe por entre as pernas, picando-o à vontade, com fúria, por todo o corpo. Eram muitas, enlearam-se nele, tripudiaram sobre seus membros indefesos, engalfinhando-se mutuamente, como pencas, como rolos de fumo negro, picando-o, picando-o sempre.

O terror e o veneno matavam o Zé Franco, e seus gritos desesperados iam longe, como berros de bezerro atolado, enquanto lá em cima do tronco do araçarana, o Minguta gozava o espetáculo da sua covardia e do seu castigo, rindo e atirando-lhe frases de vingança:

- Bandido... Mata essas tambéim, quero ! Marvado... canáia!... Morre pra não pirsigui i robá esses infiliz que vem pará nu sítio!

O caiçara assistiu toda a cena terrível, deliciado; encontrara coração para aquilo, e quando viu o administrador quase morto no fundo da boituva, deitou a correr dali, na direção da sede. Chegou esbaforido, como se viesse pedir socorro, e gritou para todos o desastre do administrador:

- Correi... correi lá... - dizia ele aos fiscais e amigos do português.

Quando a gente do Zé Franco conseguiu retirá-lo da boituva, à custa de paus e laços, ele já estava praticamente morto. Fazia mais de meia hora que estava sendo injetado de veneno, porque a distância era grande entre o cobreiro e a sede do sítio, e nada mais o salvaria; estava roxo, quase negro, a boca aberta, a língua enrolada, o rosto contraído num rictus de terror, os olhos arregalados e injetados de sangue.

A notícia correu:

- O hóme tá morto! O hóme tá morto!

Foi como um sinal de revolta. Aqueles cento e poucos homens asselvajados, varados de privações, os párias que se agarravam ao ergástulo daquele sítio para não morrerem de fome, acovardados ante a vida, deslembrados da liberdade, levantaram-se como um só homem e invadiram a sede como um pé de vento; saquearam, destruíram, queimaram livros, papéis, casas, ranchos, e desancaram a vara e chicote os fiscais que iam encontrando. Do armazém do administrador, instrumento de tortura de todos eles, nada ficou; comeram, beberam, roubaram e, por fim, quebraram tudo e meteram fogo na casa.

O Minguta deixara-os à vontade e correra para o seu rancho distante, à beira do Juqueriru. Chegara o momento. Chamou o Gracindo, aprontou rapidamente o sapiquá e a guaiaca, abriu depressa um buraco junto à raiz de certa árvore, arrancou de lá o bauzinho onde estavam todas as suas economias, atravessou a espingarda a tiracolo, e botou-se, com o companheiro, para a ribanceira do rio. Cortada a corrente da canoa a machadinha, momentos depois já remavam os dois homens, a encontrar o Itapanhaú. Quando o caiçara cruzava um dos cubatões, na saída do decauville, deu de cara com diversos camaradas que já vinham fugindo:

- O portuguêis tá morto, Minguta... nóis vamo s'imbora!...

Mostraram-lhe os troféus da liquidação: dinheiro, mantimentos, biscoitos, aguardente, objetos, uma porção de coisas... Nem se apercebiam, em seu desvairamento, que eles, o Minguta e o Gracindo, também já iam...

- Bâmo s'imbora Minguta! Bâmo destes lugá mardito!...

Arrancaram algumas canoas do portinho e desceram todos para o rio, embarcando e tocando de remos para a frente. Era longo o percurso, e precisavam sair do Itapanhaú antes da noite.

Minguta não ia nem alegre nem triste; ia emocionado. Aqueles fatos tinham sido fortes demais. Ele era o herói do caso e ninguém sabia, um heroísmo anônimo e por isso talvez mais doloroso. Preparara a desforra de todos aqueles infelizes e nem sequer lhes podia dizer, para que lhe agradecessem. Parecia estar vendo a cara do Zé Franco entre as cobras, e imaginava-lhe o cadáver abandonado em cima de qualquer mesa da sua antiga tasca exploradora, ou rolando pelo chão do chalé entre as chamas que o consumiam. Que terrível fim.

Mas, o horror retrospectivo invadia-o agora, arrepiando-o, trazendo-lhe as emoções passadas, consolado pelo Gracindo, que só não o acompanhara no último lance da tragédia. Deus tinha olhado por ele, estava certo disso.

O sol não caíra de todo quando chegaram à barra do Itapanhaú. O rio largo espalhava-se, azulado e cinzento, pincelado de escarlate, refletindo o céu do meio crepúsculo bertiogano, espraiando para a esquerda e para a direita, na confidência com o esteiro. Lá estava, mil metros acima, à esquerda, aberta como um clarão, para as alegrias do mar alto, dadivosa, alegre, verdejante, a Bertioga, caminho da ventura e do esquecimento.

Minguta despediu-se dos companheiros; agitou a mão por cima da cabeça, em adeus aos trânsfugas do Caiacica:

- Inté um dia, gente! Filicidade... muita filicidade!

Aquelas oito ou dez canoas dos companheiros dobraram o esteiro para o lado do São João e do Caiubura, rumavam para seu destino, para novos bananais, talvez; a dele dobrou sozinha para o lado do bairro antigo, na saída do rio, onde uma imagem risonha e clara brilhava no azul do céu - a imagem da Mindelinha - um símbolo completo de vida que o esperava.

(*) Fundador do Instituto Histórico e Geográfico de Santos.


Imagem: reprodução parcial da matéria original

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