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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS
Caça às bruxas, na Santos de 1920/28 (2)

Mas elas não eram queimadas na fogueira, como Joana D'Arc, que seria canonizada em 1920 na Europa...
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Apesar da "eficiente ação da polícia" em 1920, oito anos depois um outro caso de falso espiritismo (vigarice, em outras palavras) era destacado na imprensa santista. Esta história foi publicada no jornal A Tribuna, em 7 de março de 1928, apenas alguns dias da tragédia do desmoronamento da encosta do Monte Serrat (grafia atualizada nas transcrições a seguir):
 


Imagem: reprodução parcial da matéria

UM CASO DE "ESPIRITISMO"
que passou pela polícia e está, agora, entregue à Justiça

Noticiamos, há tempos, um caso que chegara ao conhecimento da Delegacia regional de Polícia, onde, como vítima, aparecia uma sexagenária Maria Augusta Gonçalves Rodrigues, cujos bens, no Marapé, uma pequena casa e terreno, estavam sendo cobiçados por José Augusto e sua companheira, lançando, aquele, mão de um recurso ardiloso para se apoderar dos imóveis referidos.

José Augusto realizou, com perfeita encenação, uma sessão "espírita", onde não só "aparecia o espírito" do marido de Maria Augusta, como era ouvida uma voz muito grossa, com certeza do mesmo "espírito", que aconselhava a pobre sexagenária a tudo entregar a José Augusto.

O caso teve várias complicações, parecendo, no entanto, que agora se aproxima do seu término, estando entregue à justiça.

O dr. João César Sobrinho, 2º promotor público, acaba de oferecer denúncia contra os espertalhões e o dr. José Corrêa de Meira, juiz criminal, em exercício, recebendo a denúncia, marcou o dia 23 deste mês, para a formação da culpa.

A denúncia do dr. João César Sobrinho - É a seguinte a denúncia do dr. João César Sobrinho, 2º promotor público:

"Exmo. sr. dr. juiz criminal - O 2º promotor público da comarca, baseado nas provas do inquérito junto, vem denunciar a v. exa. José Augusto, Arminda de Jesus e Hemelino Martins, pelos fatos delituosos que passa a expor:

Em ofício de 21 de outubro de 1926, o cônsul de Portugal, nesta cidade, comunicou à Delegacia Regional, que Maria Augusta Gonçalves Domingues, portuguesa, viúva, aqui residente, queixara-se de que um tal José Augusto, ludibriando-a, apossara-se de imóveis a ela pertencentes, e sitos no Marapé, à Rua João Caetano, esquina da Avenida do Contorno.

Acrescentava o cônsul que a vítima era uma analfabeta e sofria de moléstia mental, sendo facilmente enganada, o que exigia fossem tomadas providências que esclarecessem os fatos e apurassem as responsabilidades.

Instaurado o inquérito, em que depuseram 9 testemunhas, prestaram declarações a vítima e o indiciado, ficou apurado que José Augusto e sua amante Arminda de Jesus, prevalecendo-se da fraqueza espiritual de Maria Domingues, conseguiram persuadi-la, por meio de práticas espíritas, a lhes entregar um terreno e um chalé de sua propriedade, sitos à Rua João Caetano.

Já antes disso, haviam esses dois indiciados, sempre pelo mecanismo das sugestões espíritas, extorquido de Maria alguns contos de réis, produto da venda de animais, a ela pertencentes.

O ato de alienação do terreno e do chalé (realizado provavelmente em 1923 ou 24) foi uma escritura passada em cartório, a que, segundo as testemunhas, Maria foi presente, mas quase inteiramente alheia, por ser analfabeta e fraca de espírito, tornando-se um instrumento dócil nas mãos dos dois indiciados acima referidos.

A 4ª testemunha diz mesmo textualmente: "que na hora da escritura sabe que d. Maria não recebeu dinheiro algum".

Que essa alienação foi ardilosamente obtida da vítima, a prova está também na precaução tomada pelos indiciados José Augusto e Arminda de Jesus, que, para poderem normalizar a situação, evitando uma possível reação de Maria, ocultaram-na durante algum tempo no Morro do Marapé, e quando ela de lá voltou já encontrou o seu chalé alugado.

Afirmam as 1ª e 2ª testemunhas, que esta providência foi aconselhada e auxiliada por Hemelino Martins, advogado e procurador da vítima, que assim se tornou conivente com os outros, no plano delituoso.

É fato que, talvez sincera, ou talvez intencionalmente aconselhada por alguém, Maria moveu contra os indiciados José Augusto e Arminda de Jesus uma ação de anulação de escritura, ação essa que não chegou ao seu termo, pois a vítima desistiu de nela prosseguir pagos pelos réus 2:750$ (termo lavrado em 20 de outubro de 1925, doc. de fls. 36).

Mas, teria a vítima recebido efetivamente essa importância? Pelo que refere a 3ª testemunha, parece que essa quantia foi paga, não a Maria, mas ao seu advogado Hemelino Martins, como remuneração da sua cumplicidade (dep. de fls. 11-v).

Como quer que seja, a desistência aludida, com que os indiciados pretendem se defender, nenhum valor tem, visto como já estava consumado o delito pela obtenção do lucro ilícito, mediante os artifícios de sessões espíritas, minuciosamente narradas por várias testemunhas, durante as quais aparecia invariavelmente o espírito do marido da vítima, aconselhando-a a que entregasse os bens ao casal indiciado, caso "típico, reconhecido e frisante" de estelionato (Viveiros de Castro, Questões de Direito Penal, p.).

A desistência pôs termo à ação civil, de interesse particular; a ação penal, de interesse público, terá de prosseguir, não obstante a desistência, porquanto o seu fundamento é a reparação do delito moral, independente de circunstâncias de ter ou não o delinqüente reparado o dano patrimonial.

Em síntese, está perfeitamente caracterizado o estelionato, com todos os seus elementos: a) manobras fraudulentas; b) raptos para iludir a vigilância ou surpreender a boa fé, ou ganhar a confiança, ou induzir alguém em erro (trata-se não de vigilância comum, mas de pendência da vítima, que, no caso em apreço, como vimos, era escassa); c) que a pessoa tenha sido realmente iludida; d) que o culpado tenha obtido um lucro com proveito ilegítimo.

O ocultamento de Maria Dominges no morro do Marapé deve ser considerado como um delito autônomo (a extorsão de que trata o artigo 362 do Código Penal), ou deve ser incorporado aos outros artifícios, para constituir elemento do estelionato? A segunda solução é a verdadeira, pois, quando a vítima foi seqüestrada, já os indiciados se tinham apoderado dos seus bens, faltando, assim, a essa violência o caráter de meio para a consecução do efeito anti-jurídico.

Pelo que dizem as testemunhas, a intervenção de Hemelino Martins no delito foi no caráter de cúmplice.

Parece mesmo que já estava "materialmente" consumado o crime, com o lavramento de escritura, pela qual José e Arminda se apoderaram dos bens da vítima, quando esse indiciado entrou em cena, simulando defender os interesses de Maria Domingues, de combinação, porém, com os co-autores.

Dir-se-á que, se assim é, o procedimento de Hemelino não pode ser de cumplicidade, visto como, com exceção dos casos especificados nos parágrafos 3º e 4º do artigo 21 do Código Penal, não se pode participar de um crime já cometido.

Mas se o delito já estava materialmente consumado, não atingira ainda o grau de perfeição colimado por José e Arminda, isto é, estes receavam que a vítima, ao sentir desde logo os efeitos da miséria, se revoltasse contra os atos que a tinham explorado.

Precisavam eles, pois, que Maria se conformasse com a alienação dos seus bens, e que o tempo consolidasse o novo estado de coisas, evitando o escândalo do acontecimento recente, os conseqüentes comentários ou a intervenção eventual de terceiros.

Nesta altura é que, pela narrativa das testemunhas, intervém Hemelino Martins, aconselhando a que se afastasse a vítima, ocultando-a no morro do Marapé. E posteriormente, aparentando funcionar como advogado de Maria, na ação de anulação de escritura, continuou, na realidade, a agir no próprio interesse e no dos indiciados José e Arminda, influindo no espírito da vítima para persuadi-la a desistir da ação, atos esses previamente combinados com os réus, que o gratificaram com 2:750$000, possivelmente a importância a que se refere o termo de desistência, e que ali consta como tendo sigo pago à vítima.

Tais atos de Hemelino não foram, como se está vendo, posteriores e estranhos ao delito, mas representam um auxílio relevante ao esforço feito pelos outros dois indiciados para que o delito se consolidasse pela conformidade da vítima. Tem cabimento aqui a lição de Castore:

"Nos crimes que se chamam sucessórios, contrapondo-os aos instantâneos, isto é, nos crimes que, embora consumados, admitem um grau ulterior de perfeição, nada obsta aqui a cumplicidade se verifique neste último estádio. Por exemplo, no cárcere privado, que se torna perfeito desde que a vítima é privada de sua liberdade, será, todavia, participante do delito aquele que, sobrevindo depois do encarceramento, preste-se a impedir a evasão com a sua vigilância." (Coglialo, Trat. di Dir. Penale, vol. I, parte 3ª, págs. 598-99).

Mutatis mutandis é a espécie do que tratamos. Mas, evidentemente, diante do exposto, a participação desse indiciado deve ser considerada como cumplicidade acessória, nos termos do parágrafo 1º do artigo 21, ou, por outras palavras, prestou auxílio à tentativa feita pelos co-autores, para atingirem o último grau de execução do crime.

Assim procedendo, incidiu também Hemilino, como advogado, na sanção do artigo 207, n. I, crime conexo com o de cumplicidade no estelionato.

A 3ª testemunha refere, pelo que ouviu da indiciada Arminda de Jesus, que esta se prontificou a gratificar Hemelino Martins, pelo auxílio por ele prestado no estelionato, com 2:750$000.

Nestas condições, se essa importância é a mesma de que trata o termo de fls. 36, e que devia ser pago a Maria Domingues, e se de fato Hemelino dela se apropriou, praticou ele o delito de apropriação indébita, desta feita com a co-autoria de José e Arminda, dado que não é condição indispensável para a existência desse crime, que a causa tenha sido entregue ao réu pelo próprio dono.

Mas é ponto ainda por esclarecer, pelo que deixamos de incluir mais este delito na denúncia.

À fls. 43 encontra-se um laudo de exame pericial procedido na vítima e no qual os peritos negam que esta sofra de qualquer moléstia mental, que grosseiramente procura simular, mostrando obedecer a uma orientação falsa.

Maria, entretanto, é uma pobre mulher de idade avançada, muito debilitada por moléstia do aparelho traqueo-brônquico, tal como reconhecem os próprios peritos, além do mais analfabeta, como está provado no inquérito: é, pois, uma quase incapaz, sem vontade e sem energia, suscetível de qualquer influência.

É possível, como afirmam os peritos, que ela, simulando demência, obedeça a uma orientação falsa, cuja intenção ainda não ficou definida.

Mas, como por enquanto nada se fez no sentido de destruir a prova colhida no inquérito, não é possível deixar de oferecer a denúncia, desprezando os depoimentos uniformes, e coerentes das testemunhas, inquiridas.

Nestes termos, verifica-se que José Augusto e Arminda de Jesus estão incursos no artigo 338, n. 5, ex-vi do parágrafo 1º, do artigo 18; e Hemelino Martins no mesmo artigo, por força do parágrafo 1º do artigo 212, e no artigo 209, parágrafo 1º, todos do Código Penal.

E, para que se lhes instaure o competente processo crime, oferece a promotoria a presente denúncia, requerendo que, A. com o inquérito junto, se proceda aos termos do sumário de culpa, inquirindo-se as testemunhas, abaixo arroladas na forma e sob as penas da lei, cientes os indiciados.

Testemunhas:

1ª - Luísa de Almeida, Rua Projetada n. 150, casa n. 121.
2ª - Hermelinda Augusta, Praia Itararé,  s/n.
3ª - Hermínia de Almeida, Rua Projetada, 93, casa n. 32.
4ª - Isabel da Costa Figo, Avenida Contorno n. 131.
5ª - Maria da Conceição Ferreira, Rua Projetada n. 150, casa n. 178.
6ª - Prazeres Dias, Rua Projetada, casa n. 44.
7ª - Arthur Fagundes Medeiros, (?)
8ª - Dr. José Amadeu César, Avenida Conselheiro Nébias n. 725.

Santos, 25 de fevereiro de 1928. - O 2º promotor público, João César Sobrinho".