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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - RÓTULAS E... - BIBLIOTECA NM
Nos tempos das rótulas e das baetas (19)

Ambas serviam para as pessoas se esconderem, e foram proibidas por lei
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Clique na imagem para voltar ao índice do livroPor influência árabe-mourisca, os primeiros núcleos populacionais paulistas seguiram costumes como a colocação de rótulas nas casas e o uso de um traje conhecido genericamente como baeta, com um capuz que encobria o rosto. Essas histórias foram narradas pelo escritor Edmundo Amaral em sua obra Rótulas e Mantilhas, publicada em 1932 pela editora Civilização Brasileira, na capital paulista, com ilustrações do famoso chargista Belmonte. Um exemplar da obra, esgotada, foi cedido a Novo Milênio para esta reprodução pelo professor e pesquisador santista Francisco V. Carballa:

Edmundo Amaral foi um dos fundadores do Instituto Histórico e Geográfico de Santos (IHGS), ao lado de Júlio Conceição e Francisco Martins dos Santos. Embora suas principais referências no livro sejam à capital paulista, valem também para Santos, onde existiam os mesmos costumes (ortografia atualizada nesta transcrição):

Rótulas e Mantilhas

Edmundo Amaral

TERCEIRA PARTE - Romântica

[...]



Ilustração de Belmonte, publicada no livro

1850

Notas de um Diário
Num escaninho de antiga arca, entre um maço de velhas cartas e um ramo ressequido de resedás, foram encontradas, já meio roídas pela traça, estas folhas esparsas de um diário.

Chamo-me Januário. Januário Antonio Corrêa de Mello. Tenho vinte e três anos. Sou aluno do terceiro ano da Faculdade de Direito de São Paulo. Meu avô, José Francisco Corrêa de Mello, vulgo "capa gatos", foi escrivão e vereador do Concelho. Meu pai, Antonio Francisco, que foi negociante de fazenda seca, com loja na esquina da antiga Travessa do Parto, faleceu em 1837. Minha mãe, Umbelina Cândida de Góes, mora atualmente na cidade de Santos com o meu tio Cosme, major reformado, solteiro, charadista e hábil jogador de gamão. A nossa casa, que pertenceu ao meu bisavô, o sargento-mor Pedro Corrêa, é térrea, azulejada, com quatro rótulas, e fica em frente ao velho pelourinho.

Começo a escrever essas notas de minha vida no dia 1 de outubro de 1849, no quarto de frente da casa nº 17 da R. do Ouvidor, onde moro.

* * *

São nove horas da noite. Escrevo sobre a minha mesa de estudante. Mesa de jacarandá com pés torneados, onde repousam sobre a baeta verde, o velho tinteiro de chumbo que foi de meu pai, e os meus compêndios de Direito.

Lá está o sino de São Francisco a tocar. Falta um mês e pouco para os exames. Vou estudar o meu Direito Eclesiástico.

Dia 2 de outubro – Daqui da janela do meu quarto vejo o sol que esmorece lá para as bandas do Acú. Esses crepúsculos paulistanos me enchem sempre de melancolia. Dão-me desejos vagos: rimar um verso, compor uma ária, amar uma mulher...

Dia 5 de outubro – Ontem estive com meu amigo Damião. Damião Francisco Coutinho, meu colega de ano. Damião é alegre, farsista, gosta de ceias de bolos de bagre em noites de garoa e chama-me o Taciturno, pelo meu jeito calado e tímido. Contou-me cheio de entusiasmo o seu namoro com uma menina loira que mora lá pelas bandas da Glória; "uma tetéia!", como ele me afirmou.

Dia 8 de outubro – Recebi carta de minha mãe; espera-me depois dos exames. Serei aprovado?

Dia 20 de outubro – O Damião, radiante, contou-me que a loira lhe está bordando uma pasta de veludo vermelho.

Se eu tivesse também quem me bordasse uma pasta de veludo vermelho...

Dia 4 de novembro – Passei! Simplesmente em Direito Público e plenamente em Direito Eclesiástico. O Brotero fez tudo para me reprovar, mas o padre Anacleto foi um anjo!

Parto amanhã para Santos.

Santos – Dia 10 de novembro – Já faz quase uma semana que eu cheguei de São Paulo.

Aqui estou em Santos, passando as férias com minha mãe. Como são longos esses dias de férias! Dias vazios. Calor pesado. Daqui de trás do ralo de minha rótula, ponho-me a olhar a rua neste domingo triste. Ao longe ouço bater os sinos do Carmo. Será Finados? A casa está silenciosa como um convento. Minha mãe está fiando na varanda, meu tio Cosme de rodaque de chita ronca com dignidade deitado na rede da sotéia.

Vou ler as Novelas Exemplares.

Dia 15 de novembro – Dia bonito. O sol forte ilumina bem a varanda; a nossa varanda com a mesma mobília que pertenceu ao meu avô: seis cadeiras de "estado", uma mesa de engonços e dois bofetes. Tudo em vinhático. Lá estão os covilhetes de louça da Índia, os nossos pratos de "Azul Pombinho" e as duas águas-fortes que meu tio trouxe de França. Das janelas abertas vejo os limoeiros da horta, as pitangueiras da chácara, o poço e a gaiola da araponga. Da cozinha vem um baque de pilão. Sinto um bom cheiro de café torrado. Meu tio Cosme aparece de óculos de chumbo na testa, tabuleiro de gamão debaixo do braço, reclamando beijús. Venâncio alfaiate ensaia ao lado uma mazurca na clarineta.

Que calor, Santo Deus!

Dia 18 de novembro – Li até tarde a Arte da Inglaterra, que o cônego Cypriano me emprestou. Minha mãe lá está fiando sua roca de jacarandá. As nossas escravas Leocádia e Theodora cantam lá fora batendo roupa. Vou sair.

Dia 19 de novembro – Ontem saí pela cidade. Vi roupas de brim suadas, negros semi-nus luzindo os corpos cor de ébano molhado, sob o peso das sacas de café, ruas pedrentas, onde de vez em quando passam banguês sacudindo as cortinas de lona, ou tropas de mulas chacoalhando guizos.

Vou escrever ao Damião para vir passar uns dias aqui.

Dia 25 de novembro – Vim da novena. Fui eu, minha mãe e tia Josephina. Na volta, como já passasse das oito e a noite era sem lua, o Escholastico, nosso escravo congo, ia na frente levantando uma lanterna. Dentre a sombra, longos como ânforas egípcias passavam os "tigres" sobre os ombros dos pretos... (N.E.: tigres - vasilhames com águas servidas e urina, levados pelos escravos para despejo nos rios).

Dia 30 de novembro – Chegou hoje a diligência de São Paulo. Tia Josephina entregou-me uma carta do Damião. Só pode vir em janeiro, ver a noiva que está aqui. Com certeza a noiva é a menina da Glória!

Dia 2 de dezembro – Levantei-me tarde. Tenho a cabeça pesada. Meu tio diz que são humores, minha mãe acha que me devo purgar. Creio que me vou sangrar.

Dia 10 de dezembro – Ontem chegou o Imperador. Vi-o quando passou debaixo do pálio de gorgorão amarelo. Seguravam nas varas o sr. Juiz de Fora, o presidente da Câmara e os vereadores. Das janelas pendiam colchas de seda, e pelas ruas espalharam folhas de manjerona. É loiro, moço, simpático e tem olhos escandinavos. Dizem que é calado e triste. O povo gosta dele.

Dia 20 de dezembro – Fiz uma descoberta. Em frente, no velho sobradão dos Souzas surgiu ontem na sacada uma criatura interessante: é loira, branca, trazia um vestido de organdi verde e um camafeu cor de rosa.

Parece que se chama Maria Augusta.

Dia 21 de dezembro – É mesmo Maria Augusta. Ouvi distintamente a mãe lhe chamar. A mãe é uma senhora gorda, simpática, leva mantilha quando sai.

Tem mais dois irmãozinhos. O pai é um homem alto, magro, usa robição e suíças. O tio Cosme diz que o conhece dos Feitos da Fazenda Imperial.

Dia 22 de dezembro – Afinal, Santos não deixa de ser uma cidade interessante.

Lá está a Maria Augusta. Aqui de minha janela eu a vejo. Traz um vestido branco de raminhos e um fio grosso de coral. Como lhe vai bem o penteado à polca!

Dia 23 de dezembro – Não é ilusão; a vizinha parece que se interessa por mim. Minha mãe diz que sou bonito. Eu não creio; entretanto, esta minha barba à Álvares de Azevedo parece interessar...

Dia 24 de dezembro – Hoje é véspera de Natal. Tio Cosme já armou um presépio na sala da frente. Minha mãe fez geléia de mocotó. Será que ela vai à missa do galo?

Dia 25 de dezembro – Sim, foi. Sentou-se junto a mim! De perto ainda é mais bela! Carnação de madona espanhola, olhos de italiana... A mãe foi no seu vestido de sarja de Málaga, o pai na sua sobrecasaca de briche, ela entretanto estava maravilhosa no seu vestido de tarlatana azul. Ficou todo tempo com os olhos fitos no altar, mas no fim, quando já batiam os sinos, ela olhou-me longamente. Aquele perfume de jasmim do Cabo...

Dia 28 de dezembro – Há três dias que não vejo a minha vizinha. Como são longos os dias de verão...

Dia 2 de janeiro de 1850 – Será isto amor?

Dia 3 de janeiro – Daqui deste degrau, onde escrevo sentado, vejo cair a tarde. O largo da Coroação, calçado de pedra miúda, está cheio de negros e negras de barris. O chafariz de pedra canta um choro de água dentro das latas e potes. Ouço um tropel e um guizalhar de tropas que batem nas velhas lajes. O sino do Carmo toca Ave-Marias, na doçura da tarde. Será que ela gosta de mim?

Dia 5 de janeiro – Daqui por detrás das rótulas de meu quarto, eu a vejo. O meu quarto de estudante: cama de vento, palmas sob a imagem de nosso Senhor, um vaso de louça da Índia com dois resedás sobre um tratado de Direito Eclesiástico.

Ela traz hoje uma flor branca nos cabelos. As meninas defronte cantam de mãos dadas. Vejo-lhes os sapatinhos de duraque, debaixo do crochê das calcinhas.

O amor que tu me deste era pouco e se acabou...

Dia 8 de janeiro – Gosta de mim! Aquela flor, deixou-a cair de propósito. Tenho-a aqui junto de mim. É uma camélia branca.

Dia 11 de janeiro – Sim, eu sou bastante tímido; devo escrever-lhe?

Dia 16 de janeiro – Ontem fiz versos:

Assim o peregrino pela estrada
Busca como o nauta calmo abrigo
Minh'alma dolorida ó minha amada
Em teu coração achou jazigo!

Copiei num papel de raminhos. Devo mandar? Preciso escrever ao Damião.

Dia 18 de janeiro – Minha mãe achou-me mais magro, tio Cosme recomendou-me uma sangria. Só tia Josephina não disse nada mas olhou-me com malícia. Teria percebido?

Dia 20 de janeiro – Sim, gosta de mim! Eu não me engano. Passei toda a noite diante de suas rótulas fechadas sob o luar...

Dia 25 de janeiro – Minha mãe assusta-se: acha-me quieto e magro!

Dia 28 de janeiro - Sim, é o Damião, conheço-lhe a voz! Ora, enfim vou lhe contar tudo! Talvez seja o meu padrinho de casamento...

Minha porta abre-se com violência: caio nos braços de Damião.

- Então, homem, o que é isso? Disse-me sua mãe, magreza, silêncio.

O bom Damião, só ele me compreende!

- Escuta, homem, preciso de ti, vou te contar, uma mulher...

- Espere, disse ele, vem primeiro conhecer a minha noiva, está na sala com tua mãe.

Na sala de jantar minha mãe conversa alto.

- Quero lhe apresentar, Maria, o meu querido Januário.

Santo Deus será possível! É Maria Augusta... É ela como a vi da primeira vez, o mesmo vestido de organdi verde, o mesmo camafeu...

- Este homem o que está é apaixonado d. Umbelina! Caçoou Damião. Minha mãe sorri tristemente, eu aperto a mão muito fria de Maria Augusta.

Aquele perfume de jasmim do Cabo...

Dia 20 de janeiro de 1853 – Damião casou-se ontem com Maria Augusta, eu fui padrinho de casamento...


Ilustração de Belmonte, publicada no livro


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