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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - RÓTULAS E... - BIBLIOTECA NM
Nos tempos das rótulas e das baetas (8)

Ambas serviam para as pessoas se esconderem, e foram proibidas por lei
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Clique na imagem para voltar ao índice do livroPor influência árabe-mourisca, os primeiros núcleos populacionais paulistas seguiram costumes como a colocação de rótulas nas casas e o uso de um traje conhecido genericamente como baeta, com um capuz que encobria o rosto. Essas histórias foram narradas pelo escritor Edmundo Amaral em sua obra Rótulas e Mantilhas, publicada em 1932 pela editora Civilização Brasileira, na capital paulista, com ilustrações do famoso chargista Belmonte. Um exemplar da obra, esgotada, foi cedido a Novo Milênio para esta reprodução pelo professor e pesquisador santista Francisco V. Carballa.

Edmundo Amaral foi um dos fundadores do Instituto Histórico e Geográfico de Santos (IHGS), ao lado de Júlio Conceição e Francisco Martins dos Santos. Embora suas principais referências no livro sejam à capital paulista, valem também para Santos, onde existiam os mesmos costumes (ortografia atualizada nesta transcrição):

Rótulas e Mantilhas

Edmundo Amaral

PRIMEIRA PARTE

[...]


Ilustração de Belmonte, publicada no livro

Quitandeiras

Maria Euphrasia Rufina da Conceição Vellozo, mais vulgarmente Sinhára, era tida em 1840 por toda a cidade de S. Paulo, desde a Glória até a Luz, desde o Acú até os Curros, como a mais prestimosa doceira e quituteira da época.

Suspiros e papos-de-anjo, quindins e cocadinha, espingardas e fatias-do-céu, alfiniz e queimados, bolo-de-bagre e pastéis, leitão assado e figo em calda, pastelaria e doces, petiscos e assados, em tudo isso era perita e famosa... Na geléia de mocotó, e no beiú torrado, no cuscuz de bagre e na queijadinha, era inigualável e completa.

Viúva do major Belchior Vellozo, antigo escrivão da Câmara Eclesiástica, era uma mulher amorenada, baixa, farta de carnes, de rosto redondo e liso, apenas engelhado perto dos olhos. Dois olhos serenos e bonacheirões, pretos como seus cabelos lisos, sempre repuxados e brilhantes à banha da Holanda. Tinha 50 anos, era irmã da Confraria do Carmo e muito devota.

Morava no Beco da Cachaça, numa casa térrea de rótulas verdes e beirais longos, agachadas entre um renque de casas caiadas que pousavam na descida que dava para o Largo da Misericórdia.

Dentro, desde o corredor esguio que corria da porta da rua, larga, pesada e com ferrolhos imensos, para a varanda de teto baixo, chão socado, paredes amolgadas, errava sempre um cheiro doce que sabia a canela, a rapé, a incenso e café torrado.

Na cozinha larga e negra de fumaça, onde se remexiam nos tremendos tachos de cobre, a calda dos queimados, era forrada de prateleiras de pinho, cheias de panelas de barro e de ferro, pratos de estanho e concas de madeira. Ao lado, na mesa escura e lustrosa de gordura, rolavam-se as massas dos pastéis de nata e dos biscoitos de polvilho, os bolinhos de quidungo.

Era ali que todos os dias, desde as 6 da manhã, remexiam-se, gordas, suadas e atarefadas, Sinhára e as suas quatro escravas: Flora, cafuza ossuda e guiné de carapinha alta; Leocadia, mulata gorda, alegre e de bons dentes; e Merencianna, preta conga, beiçuda e resmungona, e a Graciosa, vulgo periquita, mulatinha viva e desnalgada com um corisco esperto nos olhos.

Era então entre o chiar constante das largas frigideiras de bolinhos-de-bagre e o baque de pilão da mandioca puba, uma rumorosa e contínua grulhada de mulheres:

- Nha Merencianna!

- U!

- Mecê já pôs o doce pra secá?

- Arre Leocadia, ande com isso!

- Sinhá é perciso pô mais assuca?

- Cruz-credo, que purcaria de ovo!

- Graciosa, menina, vai na venda do Chico Metralha e trais duas pataca de assuca!

Fora, no terreno bem varrido, sob um limoeiro grande, o Sabino, moleque achavascado, cria da casa, armava laboriosamente um bodoque.

***

- Cocadinha Sinhá!

- Óia o bolinho-de-bagre!

A noite de baeta negra caíra como uma mantilha sobre S. Paulo; e na melancolia colonial das sete o badalar dos sinos era como se o crepúsculo se tivesse feito som e a alma embuçada do misticismo beato da Província se tivesse ajoelhado de mãos postas.

Na treva bóiam luzes de azeite, tremeluzem as lanternas de flolha-de-Flandres, as chamas avermelhadas das velas de cera preta e a claridade indecisa dos fogareiros de barro espalha uma luz mortiça sobre as pedras largas e irregulares dos degraus da Igreja da Misericórdia.

Era ali aos pés da Igreja, na sua escadaria de pedra fruste, que se reunia todas as noites a turba pregoeira das negras de quitanda.

Aqui a Rita Cachinguelê - preta cassangue e lustrosa, que gemia numa melopéia africana e triste, içás torrados e pinhão quente. Ali a Genoveva - mulata baiana, muito dengue, muito airosa, embrulhada no seu pano da Costa, e que apregoava recamada de corais e figas, cuscuz de palmito e acarajés; acolá Maria Cabinda, cafuza da mesma nação, que vendia farofa de amendoim e bolos de bacalhau, trombuda e solene chupando o pito.

Um sino geme a mágoa antiga de uma novena. Vultos de mulheres de mantilhas caminham para a igreja; um tropeiro em mangas de camisa dá de beber no chafariz de pedra do largo, a uma besta enfeitada de alamares vermelhos, e sob a claridade encardida do azeite dos lampiões, uma tropa com seus cangalhos longos, e os seus canastros pendentes, toma aparência sobrenatural de animais fabulosos e pacíficos.

***

- Óia o pinhão miquiquerê!

- Óia o içá pra vassuncê!

Um sino repinicado de fim de novena espalha uma nota viva.

Vultos emantilhados saem, e por todo o largo, mais alto e mais longo recomeça o pregão.


Ilustração de Belmonte, publicada no livro


[...]

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