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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS -RÓTULAS E... - BIBLIOTECA NM
Nos tempos das rótulas e das baetas (6)

Ambas serviam para as pessoas se esconderem, e foram proibidas por lei
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Clique na imagem para voltar ao índice do livroPor influência árabe-mourisca, os primeiros núcleos populacionais paulistas seguiram costumes como a colocação de rótulas nas casas e o uso de um traje conhecido genericamente como baeta, com um capuz que encobria o rosto. Essas histórias foram narradas pelo escritor Edmundo Amaral em sua obra Rótulas e Mantilhas, publicada em 1932 pela editora Civilização Brasileira, na capital paulista, com ilustrações do famoso chargista Belmonte. Um exemplar da obra, esgotada, foi cedido a Novo Milênio para esta reprodução pelo professor e pesquisador santista Francisco V. Carballa.

Edmundo Amaral foi um dos fundadores do Instituto Histórico e Geográfico de Santos (IHGS), ao lado de Júlio Conceição e Francisco Martins dos Santos. Embora suas principais referências no livro sejam à capital paulista, valem também para Santos, onde existiam os mesmos costumes (grafia atualizada nesta transcrição):

Rótulas e Mantilhas

Edmundo Amaral

PRIMEIRA PARTE

[...]


Ilustração de Belmonte, publicada no livro

Horto antigo

C'este pourquoi j'aime surtout les simples, les plus vulgaires,

 les plus anciennes et les plus démodées; celles qui ont derriére

 elles uno long passé humain, une longue suit de bonnes actions

 consolantes, celles qui nous accompagnent depois des centaines

 d'années et qui font partie de nou-mêmes, puis-qu'elles mirent quelque

 chose de leur grâce et de leur  joie de vivre dans l'âme de nos aieux.

Maurice Maeterlinck (Le Double jardin)

Na rua calçada de pedra miúda, pousa uma serenidade fresca sob as árvores ramalhudas de arrabalde, que roçam as folhas pela taipa caiada de um velho muro. Muro antigo, muro escalavrado, encimado de telhas côvas, d'onde se debruçam as madressilvas e que fecha num amplo abraço de taipa de pilão as flores d'antanho.

Ao lado, corre uma grade toda em lanças enferrujadas, que abre num portão antigo, largo e pesado, onde, estirados nos seus pilares de pedra, repousam iguais dois leões de louça. Dentro, o sobradão imperial e triste, com seu alpendre vasto, onde balançam bolas de vidro de cor, com suas janelas espacejadas de vidraças quadradas de levantar, com as suas escadarias de pedra esverdinhada que sobem para um alpendre largo e ladeado de vasos de louça da Índia.

Rodeando a casa senhorial e atarracada, abre-se, em ruazinhas orladas de murta e calçada de pedregulhos, o jardim do passado.

É um velho jardim já decrépito e quase abandonado, com caramanchões de roseiras, tanques de pedra limosa, com seu repuxo calado e seus canteiros minúsculos, orlados de conchas, em forma de coração ou de estrela, com suas latadas sombrias e úmidas onde se dependuram madressilvas e roseiras bravas.

É neste jardim quieto e sombrio, repassado de um aroma melancólico dos resedás onde vivem, tímidas e retiradas como freiras, as velhas flores que perfumaram e orlaram o passado. É lá que vamos encontrar, rodeando velhos bancos de azulejos, já esquecidas pela moda e pela época, todas essas flores que toucaram as cabeças penteadas à polca das nossas avós, que floriram em todos os cabeções de crivo das sinhazinhas de outrora e que se desfolharam em todas as jarras da Índia, nos tremós românticos de 1850.

São quase todas coevas da mantilha, da crinoline, da anquinha, da saia-balão e do puff. Tiveram o seu esplendor e a sua voga, floriram todo o romanticismo, perfumaram toda uma época e agora, fora do mundo e da vida, quase desprezadas, recolhem-se para envelhecer escondidas, como uma mulher que foi bela.

Como as mulheres que envelhecem, elas também caíram em devoção: por isso, elas se refugiam agora nos jardins dos conventos ou nos vasos dos oratórios, ou se escondem nos alegretes dos velhos jardins.

Algumas têm nomes de sentimentos, outras de religião: e, singelas como uma sinhá de 1850, úteis como uma nhã-nhã do Império, perfumam e curam.

É a saudade, melancólica como um verso de Soares Passos, roxa como uma pa do Carmo, quase sem perfume, muito citada nas estrofes românticas e muito usada nos ramalhetes de 1840. As chagas, rubras e abertas como uma punhalada. O beijo-do-frade, arroxeado e triste. A perpétua ou sempre-viva, cadáver de flor embalsamada.

A malva, a doce malva com seu aroma, macia a sua folha larga, lembrança em folha seca entre duas folhas escritas, que perfumou todas as páginas dos livros de versos do passado com uma data e um pensamento escrito a tinta.

O miosótis, não-te-esqueças-de-mim, sentimentalismo feito flor azul, que adornou todos os papéis de carta e secou em todos os vasinhos de louça das raparigas do passado. O girassol, amarelo e enorme, dominando entre as azaléias. O resedá aromático, com suas antenas cor de tijolo. A murta negra ou vermelha, orlando e sombreando as ruas do jardim.

A rosa canina ou roseira brava, com seu aroma penetrante e os seus botões desfolhados. O goivo marítimo, o goivo raiado, o goivo amarelo, melancólico como um poeta incompreendido. O alecrim. A manjerona aromática, o lírio branco, o jasmim do Cabo tão doce e tão aromático, que é como se toda a nossa ternura se tivesse feito flor.

A peônia, a ervilha-de-cheiro, a bonina, a rosa da Índia e muitas outras deslocadas do seu tempo, com vaga melancolia do seu perfume e da sua cor, lá ficaram no passado; e as suas últimas sobreviventes escondem o seu pudor de desprezadas pelos alegretes dos mosteiros, pelos jardinetes de cônego, pelas hortas antigas das velhas casas solarengas. E repudiadas dos festões e dos banquetes, das grinaldas de baile, das jarras modernas, enroscam-se pelas noras dos poços, trepam pelas velhas taipas.

Por isso, elas têm um encanto mais delicado e discreto e uma graça mais meiga e evocativa, são por isso as que mais amamos e as que mais evocamos.


Ilustração de Belmonte, publicada no livro


[...]

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