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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - SANTOS EM...
1865 - por Militão Augusto de Azevedo (2)

"... Perdi o meu tempo..."
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Ao longo dos séculos, as povoações se transformam, vão se adaptando às novas condições e necessidades de vida, perdem e ganham características, crescem ou ficam estagnadas conforme as mudanças econômicas, políticas, culturais, sociais. Artistas, fotógrafos e pesquisadores captam instantes da vida, que ajudam a entender como ela era então.

Uma dessas testemunhas foi o fotógrafo Militão Augusto de Azevedo, que realizou uma série de fotografias abrangendo toda a cidade de Santos. Sua obra foi analisada no livro Santos e seus Arrabaldes - Álbum de Militão Augusto de Azevedo, organizado por Gino Caldatto Barbosa, com textos de Marjorie de Carvalho F. de Medeiros, Solange Ferraz de Lima, Vânia Carneiro de Carvalho, e publicado em 2004 pela Magma Editora Cultural, da capital paulista:


Militão Augusto de Azevedo
Imagem: Museu Paulista/USP, reproduzida no livro Santos e seus Arrabaldes - Álbum de Militão Augusto de Azevedo, de Gino Caldatto Barbosa (org.), Magma Editora Cultural, São Paulo/SP, 2004

Militão e a paisagem possível

Solange Ferraz de Lima
Vânia Carneiro de Carvalho

Foi curiosamente um carioca que nos deixou os registros fotográficos mais antigos de São Paulo e Santos. Hoje, Militão [1] é figura notória pelo trabalho que legou, é claro, mas também pela perseverança de seus descendentes, que não cederam às tentações de um mercado sempre ávido pela força aurática da imagem mais bela, da melhor, da mais pitoresca ou do rosto famoso.

Como fotógrafo, Militão era um homem organizado, fazia uma cópia extra por contato [2] para si do retrato encomendado para deixá-la colada em um álbum de controle, com a indicação do número do negativo logo abaixo. Isso certamente tornava mais fácil a localização da chapa para uma nova cópia a pedido do cliente. Quase todos os negativos se foram, mas os álbuns ficaram.

Com tino comercial, Militão foi sensível ao novo ramo que se oferecia. Parece que, além de ganhar a vida, ele almejava a um patrimônio significativo, talvez até ao enriquecimento. Após fechar o ateliê, em 1885, Militão não esconde a decepção financeira com o ofício escolhido.

"Muito pouco se vende, e é preciso pedir pelo amor de Deus ao freguês e ainda para eles pagarem quando quiserem. (...) A vista do estado péssimo disto aqui tenho resolvido acabar de uma vez com os meus trabalhos fotográficos, que me servirão mais de passa tempo do que de interesse" (Araújo, pp. 125-126).

Seu empenho no negócio fica patente no livro-copiador de cartas que mantinha, na produção de diários de viagem e na tradução manuscrita (inacabada) do livro La Photographie en Amérique. Traité Complet de Photographie Pratique, de A. Liébert (Paris, 1878). Assim, sua coleção é especial, uma das poucas que permite aproximação não só da produção fotográfica mas também dos meandros e vicissitudes do trabalho. Enseja abordagens não só restritas ao campo da História da Fotografia, mas também da Antropologia, História Social, Arquitetura, visto que agrupa variada tipologia de fontes textuais além do próprio conjunto fotográfico.

Artista, seu ingresso na "carreira" como autodidata traz as marcas da transição de uma sociedade ainda em processo de compartimentação e especialização do trabalho nos moldes que hoje experimentamos. A flexibilidade dos ofícios nesse período pode ser observada no grande número de paulistanos classificados como "artistas" no censo de 1872. Segundo Grangeiro, "o número de artistas era superior ao de militares, funcionários públicos, advogados, religiosos, entre outros" (1993, p. 38). No entanto, foi possível ao fotógrafo constituir, ainda que modestamente, uma empreitada de escala manufatureira no caso da produção de retratos no formato cartão de visita. Militão empregou-se no Atelier Carneiro e Gaspar, aprendeu o ofício e em alguns anos abriu o próprio negócio. Com pouco mais de uma dezena de objetos cenográficos e quatro painéis de fundo, ele produziu boa parte dos 12.000 retratos que são hoje patrimônio público sob a guarda do Museu Paulista da USP.

A Militão certamente não passava despercebida a sobriedade de seu aparato cenográfico, assim como conhecia muito bem a simplicidade e o baixo poder aquisitivo da grande maioria dos clientes. Tendo viajado à Europa e freqüentado a corte, o fotógrafo sabia do luxo dos ateliês, mas no seu caso, prudentemente, cenário e clientela tinham de ser compatíveis, afinal, como qualquer outro negócio, o estúdio Photographia Americana precisava dar lucro. A rentabilidade do negócio, Militão anotava no fechamento do ano no próprio álbum de controle.

Trabalhos sob encomenda às vezes surgiam, mesmo numa cidade provinciana como São Paulo, e talvez a documentação da ferrovia S. Paulo Railway tenha sido um deles (ou o único). Grangeiro nota que Militão se deslocou em 1882 e 1883 para a cidade de Jacareí, montando uma oficina provisória na residência do capitão Antonio João Azevedo por ocasião dos festejos daquela cidade.

Mas a profissão deixava espaço para ensaios mais livres, projetos de longo prazo, como parece ter sido o caso das paisagens de São Paulo e Santos produzidas na década de 1860. Devemos considerar a possibilidade de Militão ter produzido as vistas quando ainda era empregado das casas Carneiro & Gaspar, em atividade no Rio de Janeiro e em Santos pelo menos até 1869 (Grangeiro, 1993, pp. 112-114)

Não se conhece, infelizmente, o repertório de imagens com que Militão teve contato, mas é de se supor que não estava alheio à produção dos assim chamados fotógrafos topográficos e de arquitetura que documentaram ruínas, monumentos, fachadas de edifícios, ruelas pitorescas, beiras de cais, jardins e parques de cidades como Londres, Paris, Madri, Roma, ou países exóticos como Índia e Egito.

Tais iniciativas tinham por vezes na retaguarda o apoio governamental ou de sociedades civis preocupadas com a produção sistemática de uma memória fotográfica urbana, com intenções preservacionistas, como no caso da Architectural Photographic Association, fundada em 1857; da Society for Photographing the Relics of Old London, estabelecida em 1874; ou modernizadoras, como no caso da cobertura documental da Paris medieval feita por Charles Marville por encomenda da prefeitura francesa durante a reforma hausmanniana (Gernsheim, 1988, p. 123).

Muitos desses fotógrafos eram ligados ao meio artístico e atendiam a uma demanda por paisagens que lhes permitia dedicar-se à especialidade. No caso de Robert MacPherson, que produziu paisagens romanas, a procura dos turistas já era significativa no período, pois a cidade, com seus palácios e igrejas renascentistas e barrocas, era tradicionalmente parte indispensável do roteiro cultural da aristocracia inglesa, afeita ao colecionismo de obras de arte desde o século XVIII (idem, p. 132). Os fotógrafos herdaram, na verdade, um ofício que já era dos pintores, que faziam retratos de visitantes ilustres, verdadeiros suvenires da elite que cenarizavam os retratados ao lado de ruínas e monumentos da Roma Imperial [3].

A filiação da fotografia ao paisagismo pictórico e ao movimento conservacionista é essencial para que se possam compreender as imagens de Militão. Não é por acaso que, em correspondência a Portilho datada de 1º de junho de 1887, ele assevere: "Parece-me um trabalho útil e talvez o único que se tem em fotografia, porque ninguém terá tido a pachorra de guardar clichês de 25 anos" (Araújo, p. 120).

Tal afirmação mostra, ainda que brevemente, que o fotógrafo se via como agente de preservação da memória urbana, num lugar onde os possíveis apreciadores estavam ainda por nascer. Militão produzia paisagens para um público póstumo [4].

Na carta reproduzida no texto de Gino Caldatto, endereçada a Friederich Hempel & Cia., Militão trata dos procedimentos de venda de vistas avulsas. A certa altura, o fotógrafo aconselha:

"Será bom VM terem sempre aí uma vista de cada n., e como não sei as que lhe mandei mandar-me uma nota dos números que lá tem para eu lhes mandar as que faltam, e assim ficarem com uma coleção completa. Vou tirar vistas daqui e pretendo ir aí tirar algumas também para ficarmos com uma coleção completa e nova de vistas. As vistas mais vendáveis que são 8, 10, 12, 14, 15, 18, é bom sempre lá ter demais e pedir-me antes que elas acabem lá" (Araújo, pp. 107-108, grifo nosso). (N.E.: VM = Vossas Mercês).

A comunicação é posterior à viagem à Europa (março de 1886) e à liquidação do estabelecimento, conforme indica carta endereçada a João Correia de Morais de 27 de março de 1886. Após o retorno, provavelmente no final do segundo semestre do mesmo ano, inicia-se uma troca de correspondências cujo tema é sobretudo a produção e comercialização de vistas e cópias.

É curioso que, tendo já encerrado as atividades do estabelecimento, Militão retorne da Europa decidido a investir nesse gênero fotográfico. A hipótese mais óbvia é que a viagem o colocara em contato com uma produção de paisagens fotográficas circulada com sucesso comercial. O contexto da história da fotografia aponta para esse período como extremamente profícuo, como demonstra o trecho abaixo, endereçado a Garraux, datado de 17 de março de 1888, em que Militão comenta o trabalho fotográfico realizado em Bom Jesus de Pirapora: "Quando fui à Europa, já tinha acabado com o negócio, mas quis ver se, especulando particularmente no mesmo ramo, me entretinha e ganhava para viver. Tolice! Perdi o meu tempo" (Araújo, p. 129).

Militão tinha idéia clara sobre o que viria a ser uma "coleção de vistas". Merece aqui especularmos um pouco sobre estas duas noções – coleção e vista. A proposição de formar uma "coleção de vistas" é indicativa da sintonia da prática fotográfica de Militão com contemporâneos nacionais e estrangeiros. O termo "vista", típico da prática fotográfica oitocentista, remete a uma já consolidada tradição paisagística que, ao longo de três séculos, se conformou a partir da noção de uma natureza cada vez mais entendida como objeto de observação.

A paisagem no século XIX está centrada, pois, na representação topográfica e descritiva da natureza, que incluía a observação in loco. Os deslocamentos humanos que começam a desenhar as práticas turísticas que viriam a disseminar-se do século XIX em diante estão na base de uma nova relação com a natureza – a contemplação presencial associada ao bem-estar e bom estado da saúde.

Alain Corbin (1989), em O Território do Vazio: a Praia e o Imaginário Social, demonstra como paulatinamente, do século XVII ao XIX, não só o litoral mas também as montanhas começam a ser procurados como espaço de contemplação e visitação. No caso das montanhas, além da possibilidade de caminhadas "saudáveis" e do contato com o ar mais puro, a visão panorâmica que podiam oferecer também era valorizada.

Oliveira Júnior (2004), no estudo sobre a paisagem brasileira na fotografia, ao remontar às origens da paisagem na arte ocidental, ressalta o papel das montanhas na conformação de um novo olhar sobre a natureza. Apóia-se nas afirmações de Keith Thomas (O Homem e o Mundo Natural, 1988) sobre como as montanhas, antes associadas a aspectos negativos de lugares inóspitos, passam a ser procuradas como espaço para fruição cênica da natureza. E elas próprias começam a ser representadas, integrando um dos elementos característicos do temário paisagístico.

As "vistas" oferecidas do alto de uma montanha, ou da própria paisagem montanhosa, podiam ser desfrutadas, ao lado de outros recortes da natureza, a partir da produção de gravuras reunidas em álbuns ou em livros ilustrados de viagens. É assim que artistas viajantes divulgaram e sedimentaram para um público cada vez mais amplo, graças às possibilidades de impressão mais barata oferecidas pela litografia, visões idealizadas da natureza.

A nascente linguagem fotográfica alimentou-se dessa tradição pictórica oitocentista e incentivou o gosto pela reunião de vistas panorâmicas e parciais. Tais coleções mesmo fora do álbum, oferecidas no mercado como peças avulsas, não impediam que a noção de unidade se constituísse. Nestas imagens vários recursos formais de longa permanência na representação do espaço natural e urbano podem ser identificados.

A tradição pictórica do paisagismo se encontra presente em praticamente todos os fotógrafos catalogados por Gilberto Ferrez no clássico livro A Fotografia no Brasil (1985), como Victor Fornd; Klumb; Sthal & Wahsnschaffe; Camillo Vedani; Leuzinger; Marc Ferrez; Henschel & Benque; Pedro Hees; Gutierrez; Riedel; Mulock; Gaensly; Coutinho; Vilela; Lamberg e Fidanza. Nestes, observamos a presença marcante das marítimas, gênero no qual Militão inseriu as imagens da cidade de Santos no hall da grande galeria brasileira.

Considerando as quarenta fotografias que compõem o álbum de Santos existente no Museu Paulista, pode-se ir um pouco mais além na especulação sobre o que Militão considerava uma "coleção de vistas" bem como sugerir filiações dos recursos formais utilizados àqueles próprios da linguagem fotográfica e pictórica engajada na representação da paisagem no século XIX.

Nesse conjunto, há vistas panorâmicas e parciais, com predominância das últimas. O arranjo sugere uma narrativa que começa e termina no mar. As imagens iniciais procuram dar conta de, por meio de panorâmicas, informar a situação topográfica da cidade, fazendo ressaltar aquilo de mais importante no contexto santista, o elemento-chave na identidade urbana – o porto.

As vistas panorâmicas tomadas da Ilha de Barnabé e do Monte Serrate cumprem o papel de dar contexto amplo às imagens parciais que detalham aspectos da vida urbana. A visão do todo tem, portanto, clara função descritiva, subordinada à simulação do espaço verídico. Como analisa Oliveira Júnior (2004, pp. 152-154), a vista panorâmica não pretende uma transformação do real, mas sua restituição visual no campo fotográfico.

Para atingir o objetivo, dois caminhos eram possíveis tecnicamente. Um, o panorama alcançado por meio de uma única exposição; o outro, lançar mão do dispositivo de colocar várias imagens consecutivas lado a lado. Militão utilizou-se da segunda opção, e, pensando em imagens avulsas, estas poderiam ser dispostas contiguamente, fornecendo o panorama contextual com vistas de cima e "contravistas" tomadas da Ilha de Barnabé que dão os contornos da cidade tendo como fundo a cadeia de montanhas.

A herança pictórica dos panoramas de Militão dos anos 1860 deixa-se identificar na manutenção equilibrada da linha do horizonte; na distribuição eqüitativa das porções de céu, terra e mar; e na atenção dada à unidade do cenário, na ausência de planos aproximados. Não há tema predominante, e a continuidade espacial fornecida pelo eixo horizontal é elemento estruturador das imagens. A natureza (mar e montanhas) e os artefatos urbanos são apresentados de modo integrado, sem que haja clara hierarquia entre eles. É a visão do todo que interessa.

Nas vistas parciais, o fotógrafo carioca procurou aquilo que era sua peculiaridade, as feições coloniais da cidade - casario de pedra; animais de carga nas ruas; igrejas geminadas; pátios de terra batida, em tratamento formal muitíssimo próximo àquele dispensado à cidade de São Paulo. É impressionante a semelhança de enquadramento que dá às ruas, casario e igrejas das duas cidades, com exceção, no caso de Santos, da imagem sedutora do porto. No interior do gênero paisagem, as tomadas parciais constituem a preferência dos fotógrafos. Ao contrário das vistas panorâmicas, as parciais elegem claramente um tema principal, os planos hierarquizam os elementos no espaço fotográfico. Dessa forma, a imagem construída por esse esquema procura trazer o espaço para perto do espectador, aproximando o olhar e diminuindo a distância (Oliveira Júnior, 2004, p. 155).

Há uma ausência notória de pessoas e veículos transitando nas ruas, o fotógrafo prefere os vazios urbanos, substitui um possível movimento pela arquitetura registrada em tomadas diagonais que dão unidade a um casario não tão homogêneo como o de São Paulo. Ainda assim, as vistas parciais são capazes de fornecer os elementos para uma identificação particular do contexto urbano. E essa é uma característica própria da fotografia paisagística oitocentista, firmemente arraigada em uma noção descritiva e de comprometimento com seu referente, ainda que subjugada às regras do universo das artes plásticas. A rua e o mar são elementos de articulação, grandes superfícies pontuadas por vezes pela presença estratégica de um motivo isolado.

No caso das marítimas, a perspectiva em diagonal de um barco solitário, a vegetação selvagem dos morros, o jogo de luz e sombra nos ancoradouros, a função visualmente estruturante dos mastros das embarcações, o destaque para a interseção entre porções de terra e mar. A presença marcante de uma topografia natural filia essas imagens aos paisagistas ingleses Constable e Turner, que a partir da pintura holandesa do século XVIII colocam a natureza como tema principal de representações; e à escola francesa de Barbizon, primeira a pintar ao ar livre, fugindo do artificialismo acadêmico; e ao Grupo Grimm no Brasil (Heilbrun, 1986; Levy, 1980; Tarasantchi, 1986).

As tomadas panorâmicas e a presença do mar fazem a costura dessa cidade apresentada em diversas cenas. Dão idéia de conjunto, percepção tão cara à fotografia do período e cada vez mais difícil de conseguir diante do crescimento constante e geométrico da malha urbana. A preocupação em conjugar uma visão globalizante com outras que buscam o particular da arquitetura, dos costumes e do traçado urbano se vai tornando um desafio cada vez mais difícil de ser superado pelos fotógrafos.

Se no século XVIII e início do XIX a visão do alto de uma torre ou montanha podia ser suficiente para compor a cidade na totalidade, as cidades-capitais da belle époque necessitam de um ponto de vista ainda mais abrangente. A vista aérea tomada de balões, que começara a ser praticada em Paris na década de 1860, toma impulso a partir de então (Barbuy, 1999). O todo nesse caso se torna apreensível não pela continuidade espacial alcançada graças à constância do eixo horizontal, mas por revelar o desenho dos eixos de circulação e articulação da cidade, que na perspectiva do "pássaro" representa uma tomada vertical e descensional do espaço. A cidade deixa de ser o relevo tomado diagonalmente para tornar-se tecido urbano, que se espalha para além daquilo que o olhar do observador disposto no alto de torres e montanhas pode alcançar.

Aqui temos, efetivamente, uma mudança de escala que incide diretamente em mudança na qualidade da observação. A visão panorâmica diagonal permite ao observador reconhecer uma representação que coincide com a experiência visual, o que, no caso da fotografia, reforça a condição descritiva e de dependência indicial e realista com o referente, no caso a cidade. A visão panorâmica vertical e descensional apresenta uma experiência visual estranha a todos aqueles que não haviam experimentado um vôo de balão... Ou seja, a fotografia proporcionava uma experiência visual genuinamente nova, só possível, para muitos, por meio da representação.

Se a vista aérea representou um marco no alargamento do repertório visual do cidadão da virada do século XIX para o XX, no caso da vista parcial ocorre processo distinto. A disseminação para as Américas do modelo urbanístico gestado para as cidades-capitais na segunda metade do século XIX - Paris, Londres, Viena, Berlim - influenciou diretamente a produção fotográfica do gênero paisagem urbana.

Tal fato, aliado a um contexto favorável de incremento nas técnicas de impressão foto-mecânica e ao desenvolvimento do turismo de massa, expandiu o mercado para fotografias de paisagens; e, ao lado das já consagradas imagens de culturas e cidades tidas no contexto europeu como "exóticas", passam a figurar também as representações desse modelo de cidade moderna, resolvida tecnicamente pelo desenho do planejamento.

E será principalmente por meio da vista parcial, tomada de elevações, que os traços formais mais marcantes do urbanismo em voga circularão o mundo não só no consagrado cartão-postal, mas na estereoscopia, em álbuns de cidade, nos repertórios editados no âmbito da História da Arquitetura, na imprensa diária, além de integrar também o espectro de opções do fotógrafo amador. A tomada per angolo e de elevação reforçava o traçado contíguo de alamedas, ruas e avenidas pontuadas por arborização geometricamente disposta; ou o tabuleiro de xadrez como desenho preferencial para os loteamentos residenciais. Outro recurso formal adotado era a valorização, em primeiro plano, de edificações públicas inseridas em praças ou parques e de veículos e pessoas em ruas movimentadas pelo comércio.

Assim, apesar da expansão do mercado, a produção fotográfica paisagística de vistas parciais não apresenta nenhuma inovação no discurso formal digna de nota. Muito pelo contrário. O que vemos principalmente com o advento do cartão-postal é uma tendência de homogeneização no modo de registrar aspectos da cidade moderna, a ponto de quase se tornarem indistintas vistas das partes reurbanizadas de São Paulo, Rio de Janeiro, Paris ou Argel.

Novos eram os desenhos urbanos, ou seja, o objeto tratado pela fotografia; mas os recursos formais ainda remontavam à tradição pictórica de séculos anteriores. As inovações de linguagem insinuavam-se aos poucos, de forma isolada e certamente longe da produção em massa voltada para o mercado turístico. É só na segunda década do século XX que vamos assistir a uma explosão dos cânones tradicionais pela linguagem fotográfica vinculada aos movimentos da arte moderna (Carvalho de Lima, 1997).

É muito provável que Militão, quando esteve na Europa no início de 1886, tenha percebido esse crescente movimento. O postal, cuja invenção já comemorava dez anos, encontrava-se em rota ascendente. A produção estereoscópica industrializara-se pelas mãos de empresas americanas como a Keystone e a Underwood & Underwood, e os mercados, expressivos inclusive na Europa, abrangiam os lares e o nicho dos suvenires turísticos (Adams, 2004).

O movimento preservacionista continuava a patrocinar álbuns de cidades, ora para registrar a memória daquelas que sofriam intervenções urbanísticas, ora para divulgar os resultados das mesmas intervenções. Assim, a produção européia de vistas urbanas poderia ser tomada como uma tendência de mercado aos olhos de Militão.

Na década de 1880, além dos álbuns de vistas de São Paulo e de Santos, que Militão parece ter organizado para venda somente nessa década, e das imagens avulsas que fornecia, o fotógrafo resolve produzir os pares comparativos das imagens dos anos 1860. Sua iniciativa foi precursora e parece que não encontrou a resposta desejada.

Na década de 1890, o "filão" era explorado profissionalmente por mais de um fotógrafo. Dois conjuntos de imagens da cidade de São Paulo presentes no acervo do Museu Paulista são evidência desse tipo de investimento. Primeiro, as catorze vistas estereoscópicas produzidas pela Photographia Renouleau, quando a empresa se encontrava estabelecida à Rua Marechal Deodoro em 1895 (Kossoy, 2000, p. 270).

As albuminas coladas em cartão duro, com impressos em vermelho trazendo marca, endereço do fotógrafo e a localização "Brazil", são prova da tentativa de inserir o repertório paulistano no conjunto de imagens exóticas que circulavam pelo mundo ocidental – a paisagem bucólica da Ponte Grande; os tílburis enfileirados no Largo da Sé; as roupas brancas estendidas à beira do Rio Tamanduateí; o casario de taipa conjugado a inovações de ferro como o Viaduto do Chá; o movimento comercial na Rua Quinze de Novembro; os conjuntos públicos como o Palácio do Governo, Correios, Mercado Municipal, Quartel da Luz; as igrejas como marcos de uma cidade ainda não europeizada.

O segundo conjunto, de autoria desconhecida, é composto de doze imagens de São Paulo também da década de 1890. Albuminas coladas em papel-cartão com linha vermelha impressa como moldura interrompendo-se na parte superior para identificar a cidade - "S. Paulo" -, e na parte inferior para nomear o local - Escritório da Companhia Paulista, Grande Hotel Paulista, Largo do Carmo, Monumento José Bonifácio, Correio Geral, Rua Florêncio de Abreu, Quartel da Luz, Seminário Episcopal, Igreja da Sé e duas imagens raras do Mercado Municipal, uma delas repleta de passantes e freqüentadores anônimos. O conjunto procura colocar em evidência, ao lado da igreja de taipa da Sé, uma cidade modernizada, com trilhos de bondes, ruas pavimentadas, edificações ecléticas de três andares, gradis envolvendo praças e monumentos, postes de iluminação, banheiro público, quiosques, vegetação ornamental.

Militão teria vislumbrado um mercado local que incluiria, como nota o arquiteto Gino Caldatto, todo o trajeto entre São Paulo e Santos. Porém, as cartas trocadas com representantes no Rio de Janeiro e em Santos não acusam o sucesso que Militão parecia esperar com a produção paisagística. Qual teria sido a razão para que seu investimento não tivesse conhecido o sucesso que os colegas de profissão viriam a vivenciar na década posterior seguindo-lhe os passos de comercialização de vistas avulsas e organizadas em álbuns?

O potencial de comercialização das vistas urbanas em São Paulo e Santos floresceria apenas no início do século XX. São testemunha disso as quase 400 vistas em postais da coleção do Museu Paulista produzidas por Gaensly, Preising, Vanorden, M. Pontes, Union Postale Universelle, entre outros.

Militão soube antecipar esse movimento. Mas talvez sua documentação fora excessivamente descritiva, apresentando São Paulo e Santos ainda com o desenho colonial, em um momento em que o modelo almejado era outro e que se buscava equiparação com as metrópoles modernas. Pois essas imagens já se encontravam em circulação por aqui, ainda que timidamente, trazidas por famílias imigrantes e por aquelas mais abastadas que viajavam à Europa.

A cidade colonial paulista, de feições simples, em contraponto ao barroco mineiro e baiano, era desprezada pelo despojamento, além da natureza fortemente vernacular e funcional, que não a colocava claramente filiada a um estilo arquitetônico de prestígio. Pode-se arriscar a afirmar que Militão acertara no formato de comercialização mas não havia tido a sensibilidade de perceber o que o mercado demandava em termos de conteúdo visual? É possível. Mas se o seu olhar que não poupou o arcaico, o particular da configuração colonial remanescente, não trouxe sucesso à sua época, hoje ele é fundamental.

Muito já se estudou tendo o fotógrafo ou sua coleção como foco. Porém, o conhecimento gerado acaba sempre por apontar novos caminhos. A contribuição desta obra é particular pelo fato de que se debruça de forma minuciosa sobre a produção de Militão relativa a Santos, e nesse sentido é inédita. O sentido é fornecer, ainda que em linhas gerais, o contexto estético da produção fotográfica do século XIX. O intuito era reconhecer, na produção de Militão, as marcas da linguagem fotográfica desse momento de consolidação da fotografia como produto visual distinto de tudo conhecido até o momento, ou seja, entender em que medida a produção paisagística de Militão se encontrava em sintonia com aquela encontrada na Europa.

Perceber a sincronicidade permitirá, acreditamos, identificar o particular de sua autoria e as possíveis consonâncias com o contexto de produção de paisagens fotográficas no Brasil da segunda metade do século XIX.


NOTAS:

[1] Militão Augusto de Azevedo nasceu no Rio de Janeiro, em 1837, e faleceu em São Paulo, em 1905. Com 25 anos de idade, resolve vir para São Paulo com a Companhia Dramática Nacional. Apesar de seu relacionamento com o meio artístico expresso em diversos retratos e do casamento com Benedita Maria dos Santos, também atriz, Militão acaba se estabelecendo na cidade como fotógrafo. Inicia a profissão na filial paulistana do ateliê carioca Carneiro & Gaspar, aberta em 1862. Em 1875, Militão, já sócio do estabelecimento, adquire o estúdio e passa a denominá-lo Photographia Americana, que funcionará até 1885 na atual Rua Quinze de Novembro. Desiludido financeiramente, decide fechar a empresa e leiloar o patrimônio. A coleção chega ao Museu Paulista da USP por meio de aquisição patrocinada pela Fundação Roberto Marinho e vem das mãos de familiares de seu primogênito, Luiz Gonzaga de Azevedo, em 1994 (sobre Militão e sua coleção, ver Lago, 2001; Grangeiro, 2000; Carvalho e Lima, 1997; Laurito, 1982; Toledo e Kossoy, 1981; e Kossoy, 1978).

[2] Cópia de um negativo colocado diretamente sobre o papel fotográfico e que apresenta, destarte, as mesmas dimensões e forma do negativo.

[3] Em meados do século XVIII, a Itália torna-se uma escola para a formação clássica da nobiliarquia européia. As descobertas de Pompéia e Herculano atraíam milhares de nobres, principalmente ingleses e alemães. Esse turismo cultural rendeu toda sorte de cultura material na forma de suvenires - desde fragmentos arqueológicos até retratos pintados por artistas que tinham ateliê em Nápoles, Roma e Florença e os produziam no espírito de lembrança de viagem (Clark, 1985; Irwin, 1997, p. 26).

[4] Baseado em anúncio publicado em 22 de outubro de 1863 no Correio Paulistano, em que J. C. Muller oferece aos estudantes de Direito que estão terminando o curso e deixando a cidade um álbum com trinta vistas "tiradas a photographia", Pedro Correa do Lago constrói a hipótese de que teria sido essa a motivação para a produção das noventa vistas de Militão, um repertório só superado pelo da cidade do Rio de Janeiro (2001, p. 19).


BIBLIOGRAFIA:

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Na mesma obra, consta este artigo de Gino Caldatto:


Marca da Photographia Americana
Imagem: Museu Paulista/USP, reproduzida no livro Santos e seus Arrabaldes - Álbum de Militão Augusto de Azevedo, de Gino Caldatto Barbosa (org.), Magma Editora Cultural, São Paulo/SP, 2004

O álbum de Santos

Gino Caldatto Barbosa

A documentação fotográfica da cidade de São Paulo, realizada entre os anos de 1862 e 1863, levou Militão Augusto de Azevedo a produzir trabalhos similares em locais com expressão cenográfica diversa da paisagem de terra e tabatinga da capital, captadas em incursões ao litoral, Serra do Mar e zona rural do interior do Estado.

É um período que inicia a trajetória profissional do jovem fotógrafo, na época com 25 anos de idade e alguma experiência no ramo, mostrando limitações que seriam, de certa maneira, contrabalançadas pela expectativa favorável diante do amplo universo de trabalho a ser desenvolvido. As inúmeras possibilidades na reprodução e exploração de imagens, a liberdade de criação e organização de ensaios e retratos e o retorno econômico promissor com o novo invento eram atributos compensadores e estimulantes que podem ter influenciado a decisão de abraçar a carreira de fotógrafo.

Nesse contexto, o álbum da cidade Santos se apresenta como um dos primeiros investimentos comerciais de Militão de Azevedo e, em particular, aponta para a tentativa de diversificar a produção e conseqüentemente buscar novas demandas.

É notável que a conservação desse material fotográfico, sensível às rigorosas condições climáticas dos trópicos, superou as vicissitudes do tempo. O mérito da preservação das antigas imagens ganha importância ao se constatar que o acervo de pioneiros da fotografia no litoral paulista, antecessores da chegada de Militão, como Justiniano José de Barros, Eduardo Gnerin, Henrique Deslandes, Jules Casimir entre outros, não teve a mesma sorte, restando infelizmente pouco material em boas condições.

Hoje, as fotos de Santos e arredores agregam valor cultural relevante. O caráter temporal que o registro fotográfico do litoral paulista incorporou serve, entre outras leituras, como preciosa fonte iconográfica para o estudo da arquitetura e do urbanismo da região. Imagens que emergem do passado como último testemunho da antiga cidade colonial à beira-mar, erguida com um "saber fazer" hoje esquecido.

Acanhada e pequena, Santos era o espelho de um porto sem infra-estrutura, poucas riquezas e vida tranqüila, sensivelmente captada pela lente de Militão e casualmente transformada em visão premonitória dos novos tempos que estariam por vir. Possivelmente, o fotógrafo não imaginou que, enquanto caminhava pelas tortuosas ruas do porto em busca de melhores ângulos, estaria registrando o epílogo de um passado que seria radicalmente alterado, poucos anos depois, pela exportação do café.

Os álbuns de Militão - A valorização do trabalho de Militão Augusto de Azevedo é remota. Desde o início do século XX, suas fotografias eram destinadas a propósitos diversos. Serviriam para publicações em forma de álbuns de postais, foram referência para pintores (Carvalho & Lima, 1993) e, nas últimas décadas, continuaram sendo tema recorrente de exposições, estudos acadêmicos e projetos editoriais.

Milhares de fotos que constituem o patrimônio do fotógrafo, hoje com grande parte incorporada ao acervo do Museu Paulista, atestam a incansável dedicação de quase trinta anos de profissão vividos em São Paulo, cidade que adotou e de onde extraiu a matéria-prima essencial de trabalho. Militão comercializou álbuns, atendeu a encomendas, registrou personalidades, tipos anônimos, ruas e casarios, ao sabor dos êxitos e fracassos que a atividade proporcionava.

O despertar do interesse manifestado pela fotografia tem data incerta. Acredita-se que o envolvimento de Militão com a profissão tenha ocorrido em meados de 1862, quando chegou a São Paulo, vindo do Rio de Janeiro, como ator de uma companhia teatral. Talvez a vocação artística lhe tenha aguçado a curiosidade para a nova forma de captar cenários, poses e representações, levando-o a trabalhar na Casa Carneiro & Gaspar, prestigiado estúdio carioca que abrira filial em São Paulo, para em seguida realizar as primeiras fotografias da cidade (Grangeiro, 2000, pp. 82-85).

O entusiasmo pela atividade evidencia-se na determinação e interesse pelo aprimoramento profissional. Militão traduziu manuais técnicos, estabeleceu relações com fotógrafos experientes, realizou viagens ao exterior, onde conheceu inovações, e, finalmente, montou negócio próprio, com a aquisição do estabelecimento de Carneiro e Gaspar, inaugurando o ateliê Fotografia Americana.

Nesse momento, Militão aprimorou certa mentalidade empresarial, redirecionando os trabalhos para as demandas comerciais emergentes. Acompanhou a febre retratista que tomou conta da capital paulista na segunda metade do século XIX e empreendeu ensaios fotográficos na forma de álbuns, conseguindo êxitos comerciais razoáveis (Lago, 2001, p.222).

Talvez o resultado editorial mais satisfatório tenha sido o Álbum Comparativo da Cidade de São Paulo, ironicamente o último trabalho. Produzido em 1887, o álbum juntou imagens da época com os primeiros registros da cidade feitos pelo fotógrafo 25 anos antes, que serviriam para revelar visualmente e de maneira inédita dois momentos históricos do crescimento urbano da capital. Proposta certamente amadurecida na época em que o fotógrafo viajou para a Europa, onde conheceu ensaios similares como o que Charles Marville realizou em Paris (Carvalho & Lima, 1998, p. 114).

Em correspondência enviada a um amigo, Militão manifestou satisfação pessoal na realização do trabalho, que marcou o encerramento de sua atividade fotográfica. A mesma carta revela uma confusão nas datas comparativas do álbum, curiosamente o ano de 1878 é sugerido pelo fotógrafo como o período de finalização do trabalho, quando o correto seria 1887.

"Como Verdi despedindo-se da música escreveu seu Othelo, eu quis despedir-me da photographia fazendo o meu. É um álbum comparativo de São Paulo de 1862 e 1878 [SIC]. Parece-me um trabalho útil e talvez o único que se tem feito em photographia, pois ninguém terá a pachorra de guardar cliches de 25 anos (...).Neste trabalho andam um bocadinho de amor-próprio do artista e gratidão ao lugar em que estou a 25 anos" (Kossoy, 2002, p.71).

Ao longo do século XX, seu trabalho teve merecido reconhecimento. Em 1905, ano de falecimento, é publicado o Álbum São Paulo Antigo, pela editora Vanorden e Co., revelando ao grande público o pioneirismo do fotógrafo, que nos anos de 1862 mapeou visualmente a paisagem da velha capital com um olhar relativamente despreocupado e romântico.

Quase uma década depois de sua morte, em 1914, a Casa Duprat relançou o Álbum Comparativo, que incorporou fotos contemporâneas ao trabalho anterior. A versão promovia um sentido de continuidade histórica diante da organização fotográfica pré-existente. O acréscimo de imagens atualizadas, com perspectiva visual similar à dos registros anteriores, conseguia aguçar a curiosidade do leitor, que buscava compreender a cronologia construtiva do território paulistano ao mesmo tempo em que se espantava com a velocidade renovadora do progresso.

O pioneirismo e a curiosidade revelados no Álbum Comparativo de Militão levaram notoriedade ao fotógrafo para além de sua época. A confrontação entre tempo e espaço é revigorada, sobretudo quando o crescimento desordenado das cidades, ao longo do século XX, foi marcado pela desqualificação da paisagem construída. A leitura visual da rotatividade do capital imobiliário na renovação e adensamento urbano determinou ao trabalho fotográfico comparativo uma herança crítica diante do descaso e da ausência de políticas públicas que coibissem tal destino.

Não foi por acaso que a contribuição iconográfica deixada por Militão mereceu, ainda no início do século XX, o reconhecimento do jornalista Afonso de Freitas, que lhe atribuiu o título de fotógrafo-historiador (Lemos, 2001).

O ensaio fotográfico de Santos e da estrada de ferro - A cidade de São Paulo é por opção o local em que Militão irá estabelecer relações sociais e profissionais até a aposentadoria, no final da década de 1880. Não se interessou pela atividade itinerante, dispendiosa e cansativa, recorrente entre os colegas de profissão que acreditavam ser um meio eficaz para sobreviver do ofício.

Exceção à regra ocorreu nos primeiros anos de profissão, quando realizou viagens para o interior e litoral paulista motivado por novas perspectivas de trabalho e pela oportunidade de aprimorar o olhar a partir do contato com paisagens, luzes e texturas diversificadas do universo visual do planalto paulistano. No litoral, o mar tem presença determinante nas fotos; enquanto, nas imagens do interior e da ferrovia, o meio natural ainda virgem é o cenário predominante.

É impossível precisar as razões que o levaram a fazer um ensaio fotográfico da cidade de Santos. Talvez decorresse de uma iniciativa pessoal, amadurecida durante o período em que permaneceu na região para retratar a construção da Estrada de Ferro São Paulo Railway, na Serra do Mar; bem como poderia fazer parte de um amplo trabalho visual realizado a pedido dos capitalistas ingleses investidores da obra.

A hipótese de as fotos de Santos estarem associadas ao material da ferrovia é reforçada na documentação que acompanha a série de 21 imagens da cidade tiradas por Militão que fazem parte da coleção de Arnaldo Aguiar Barbosa, cujas reproduções estão guardadas no arquivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional de São Paulo – IPHAN/SP.

Segundo Aguiar Barbosa, a promoção das fotografias se deve a seu bisavô João da Fonseca Costa Hayden, banqueiro ligado ao grupo de visconde de Mauá, que havia chegado a Santos antes de 1860, vindo do Rio de Janeiro com a finalidade de instalar o Banco Mauá e comprar terras para a construção da ferrovia (Barbosa, 1964, s/p.).

Hayden possivelmente adquiriu as fotos por interesse pessoal, pois o valor informativo das imagens poderia compor relatórios do banco (Bandeira Júnior, 1967, p. 8) a serem apresentados aos investidores ingleses, ou mesmo para servir como objeto de recordação da cidade, já que a transferência do banqueiro para Montevidéu para assumir o Banco do Rio da Prata (Revista Commercial, 31/out/1865, p. 3) se dá na mesma época em que as fotografias foram tiradas (1865).

Se, por um lado, o registro de Santos inicialmente teve propósito específico; num segundo momento foi reutilizado para atender às necessidades comerciais do fotógrafo, o que se confirma pela encadernação existente no Museu Paulista com o título Álbum da Cidade de Santos e seus Arrabaldes.

O trabalho de documentação do empreendimento ferroviário associado ao da pequena vila portuária racionalizaram tempo e despesas de Militão com a estada. É possível que o desejo de organizar um ensaio dessa natureza tenha surgido anteriormente, já que o fotógrafo estivera na região um pouco antes, o que lhe permitiu ter conhecimento prévio das potencialidades do lugar. Dessa primeira visita, foi identificada uma foto geral obtida a distância, do outro lado do estuário, provavelmente tirada em 1863, que mostra a pequena cidade portuária espremida junto ao Monte Serrate.

Nas últimas décadas do século XIX, Militão tentou negociar vistas da cidade de Santos, dando preferência a tiragens avulsas, que remetia diretamente do estúdio de São Paulo ao consumidor do litoral. A estrada de ferro, que conheceu desde a implantação, passou a fazer parte do cotidiano empresarial do fotógrafo e seus agenciadores. Pelos trens, enviava a mercadoria previamente selecionada pelo representante de Santos, que por sua vez despachava em direção ao planalto material fotográfico recém-chegado ao porto.

Distância e falta de comunicação imediata com o varejo seriam contornadas pela contabilização cuidadosa das remessas. A documentação do material e os procedimentos comerciais eram previamente acertados por correspondência entre as partes, como forma de evitar problemas futuros. As fotos seguiam organizadas por numeração seqüencial para mapear a demanda, controlar o estoque e localizar as matrizes no arquivo de negativos, segundo revela uma carta enviada a Friederich Hempel, dono de chapelaria em Santos, que tinha o costume de vender fotografias como atrativo para o negócio:

"[Senhores] Friederich Hempel e Cia., Santos, rua 25 de março.

Remeto-lhes hoje com encomenda pela estrada de ferro as vistas de seu pedido, mandando-lhes algumas de mais. Incluso vai o recibo da estrada de ferro e a nota das vistas últimas (que) lhe ficão (sic) debita(da) em 1/3 a consignação. Com as vistas vai um index (para) lhe facilitar os pedidos não precisando mais do (que) (vossas mercês) pedirem pelo número sem mais explicação. Será bom (vossas mercês) terem sempre aí uma vista de cada número (...) e assim ficarem com uma coleção completa (...) As vistas mais vendáveis (que) são 8,10,12,14,15, e 18, é bom sempre lá ter demais, e pedir-me antes (que) elas acabem" (23/nov/1886, transcrição de Araújo, 2003, pp. 125-126).

As imagens de Santos são pouco conhecidas na plenitude. Parcialmente foram exploradas em pesquisas isoladas a partir da década de 1960, como peças de ilustração de textos e exposições em geral sobre a cidade de outrora. É difícil precisar o número exato de fotografias diante da insuficiência de informações nas fontes documentais pesquisadas. Possivelmente, a quantidade catalogada não se limita apenas às imagens apresentadas neste trabalho, em razão da possibilidade da existência de material avulso em poder de colecionadores particulares ainda sem alcance do público.

Em 1886, Militão pretendia renovar o acervo de fotografias da cidade, talvez por considerar o material existente já defasado diante do progresso que se evidenciava. Na correspondência a Friederich Hempel, revelava entusiasmo em produzir novas vistas de Santos, a exemplo das fotos comparativas da cidade de São Paulo que planejava tirar no ano seguinte: "Vou tirar vistas daqui e pretendo ir aí tirar algumas também (para) ficarmos com uma coleção completa e nova de vistas" (ibidem).

Não há confirmação quanto à concretização do objetivo almejado, na medida em que o fotógrafo manifestou, tempos depois, pouca ilusão com o mercado litorâneo, o que está demonstrado na correspondência endereçada a Paulo Wilhens, representante de Santos, em 1º de janeiro de 1887.

"Pelo seu silêncio parece-me que não tem vendido muitas vistas, e que as cópias ficarão encalhadas. É uma infelicidade para ambos. Admira-me que ahí não se procurem essas cópias..." (1º/jan/1887, transcrição de Araújo, 2003, p. 126).

Entretanto, a recente divulgação de um álbum da Estrada de Ferro São Paulo Railway ("Santos em 1868 e a construção da SPR", 17/mar/2004), contendo duas imagens da cidade tiradas no final da década de 1860, levanta a hipótese da presença do fotógrafo na região em outras ocasiões. Apesar de a autoria do material estar creditada a Edward Haigh, a maior parte das vistas que configuram a nova coleção da ferrovia é reconhecidamente material de Militão, o que reforça a possibilidade de ocorrência de registros da cidade em épocas diversas.

As coleções e álbuns pesquisados apresentam um conjunto diversificado de produção, são objetos únicos de conteúdo distinto, feitos talvez para satisfazer demandas emergentes ou atender determinados clientes. Organizados individualmente a partir de montagens específicas, divergem entre si na disposição, quantidade e âmbito registrado.

O álbum do Museu Paulista, contendo quarenta fotografias em pequeno formato, serviu como base na sistematização do universo captado por Militão. Uma observação atenda revela que a obra mais se aproxima de uma construção despretensiosa do fotógrafo que de um produto formatado para comercialização.

A organização das imagens insinua certa desordem na montagem, além de não obedecer a seqüência visual lógica. Há fotos repetidas, inúmeras nem sequer possuem identificação, enquanto outras são acompanhadas de legendas imprecisas. Na capa, a etiqueta manuscrita "Vistas da cidade de São Paulo", colada sobre o título original, Álbum da Cidade de Santos e seus Arrabaldes, causa estranheza ao mesmo tempo em que lembra material de arquivo.

Por outro lado, a coleção de Aguiar Barbosa sugere a criação de subprodutos gerados a partir do universo total documentado, direcionados para atender a demandas específicas.

Ao contrário da empreitada comercial que o Álbum de São Paulo assumiu em 1863, os retratos de Santos tiveram resultado de vendas incerto. Embora a intenção inicial fosse a comercialização de um álbum de fotografias, a negociação de imagens avulsas a serem vendidas em lojas e papelarias tornou-se prática comum nos anos subseqüentes ao ensaio.

A série de vistas de Santos, localizada na coleção de Luiz de Azevedo na década de 1970, reuniu cinqüenta imagens, boa parte inédita, cujas reproduções atualmente fazem parte do acervo do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo - Condephaat. Trata-se do registro mais completo de Santos que se conhece e possivelmente teria servido de catálogo para comercialização avulsa. A numeração existente na parte superior de algumas fotos sugere destinação comercial unitária, atividade que pautou o trabalho de Militão até os últimos anos.

Os registros do princípio da carreira revelam um momento de experimentação técnica e visual do fotógrafo marcado pelo desprendimento estético e ausência de comprometimento profissional. Provavelmente, os temas urbanos valorizados nos ensaios estivessem condicionados ao limitado universo fotográfico dos primeiros anos de atividade, considerando a incipiente vida profissional de Militão e os precários recursos técnicos disponíveis: "A opção pela cidade-artefato deve-se, em parte, à baixa sensibilidade das chapas fotográficas, que por isso exigiam um longo tempo de exposição, dificultando o registro com nitidez de elementos em movimento" (Carvalho & Lima, 1998, p. 114).

Fatores de certa forma determinantes no condicionamento da linguagem estética por meio da similaridade entre as imagens dos primeiros álbuns. Enquadramento, posição da câmera, temas retratados, tudo parece conspirar para a ocorrência de registros quase simultâneos de lugares tão distantes.

Nas fotos de Santos, a leitura proposta não difere da narrativa linear contida nos trabalhos de São Paulo e da estrada de ferro. A morfologia da cidade converge como narrativa predominante, construída por enquadramentos rígidos e ponto de fuga centralizado. Na paisagem urbana, predomina o olhar distante, voltado mais para a leitura geral, interrompido às vezes por algumas aproximações particularizadas. Valoriza-se o meio natural, edifícios, perspectivas e vistas panorâmicas; em contraposição aos personagens e tipos urbanos, por exemplo, mostrados como espectadores distantes postados a serviço da escala da cidade e que exemplificam, em certa medida, as limitações técnicas do momento conjugadas a uma percepção em formação.

Outro aspecto inerente às restrições técnicas vivenciadas e quase inevitáveis à fotografia urbana consistia na ocorrência de efeitos visuais indesejáveis, causados pela incômoda presença de pessoas em trânsito captadas como espectro, "fantasmas", que os fotógrafos mais experientes procuravam afastar das imagens (Lago, 2000, p. 22).

Por outro lado, a eternização da foto exigia do retratado a rigidez da pose e uma boa dose de temo. Imobilidade impensável diante da atividade incessante do trabalhador, sobretudo escravo, condicionado a ser um corpo desfocado, objeto inconveniente para a qualidade e precisão da imagem. Enquanto artigo ligado às elites, a fotografia, nos primeiros anos, incorporou de maneira invisível os contrastes sociais do período, obtendo retratos desiguais dos habitantes - isto é, ao mesmo tempo em que registrava o ócio, dissimulava o trabalho.

Militão se revela um fotógrafo despreocupado com as interferências prejudiciais dos "fantasmas" na qualidade final da imagem, talvez por encontrar-se numa fase de superação de outras deficiências técnicas, o que acidentalmente o fez obter um resultado visual próximo ao cotidiano vivenciado. Documentou elementos que identificam os atributos de cidade portuária, os navios ancorados no estuário, as canoas, o mar, observados em certos momentos por curiosos transeuntes. As ruas ora cheias de carroças em movimento contrastam muitas vezes com um cenário estático e vazio. Situações inusitadas e opostas do dia-a-dia da cidade, apresentada como espaço dinâmico e agitado que ao mesmo tempo se revela um lugar desabitado e sem alma.

O aparente cotidiano retratado a partir de uma estética romântica se mostrará ambíguo ao olhar colonizador do europeu. Assim, o casario antigo desalinhado, a rua de terra, os navios ancorados junto às pontes de madeira, a montanha ainda virgem contemplando a cidade passam a ser testemunhos da incapacidade dos habitantes em prosperar: enfim, a própria imagem do subdesenvolvimento, do atraso (Carvalho & Lima, 1998, p. 114).

Com a junção dos três álbuns fotográficos, involuntariamente Militão conseguiu produzir um abrangente enfoque do espaço geográfico paulista. Imagens de Santos, estrada de ferro, São Paulo e arredores revelam estrutura visual sistemática, observada no universo particular dos ensaios individuais, que reunidos se expressam como conjunto uniforme, dialogando entre si por meio da narrativa linear empregada nas fotografias.

Se, por um lado, a produção de álbuns isolados tinha o objetivo de atender a demandas específicas para suprir as necessidades financeiras de Militão; a reunião desses trabalhos, providencialmente ou não, constituiu ampla documentação da paisagem construída do Estado de São Paulo, estruturada pelo eixo inicial do Porto de Santos, até finalizar no planalto rural, serra acima.

Preocupação inerente na elaboração do Álbum da Estrada de Ferro, de 1865, que Militão organiza como uma espécie de guia de viagem, um itinerário fotográfico linear de aspecto quase didático. O observador é transportado como viajante, seguindo os trilhos por meio da incursão visual principiada no litoral, onde embarca na estação ferroviária do Valongo, para percorrer as escarpas da Serra do Mar por diversos planos inclinados, até cruzar a cidade de São Paulo, passando pelas estações Bresser, Luz e Belém, encerrando a viagem em Jundiaí.

Militão em Santos - Em 1865, Militão reaparece na cidade de Santos para um amplo ensaio fotográfico, dando seqüência aos registros urbanos idealizados em experiências inicialmente feitas em São Paulo. A iniciativa para novos trabalhos, exploração de outros lugares, inspiração nos negócios eram atitudes que exemplificam, em certa medida, a motivação profissional dos primeiros anos, que tempos depois se esvaiu.

Na chegada ao litoral, encontrou uma cidade de 8.000 habitantes, quase metade do número da capital, amontoados em casas de pedra junto à tortuosa linha do cais. Santos possuía infra-estrutura precária, não havia esgoto nem água encanada. O movimento dos navios próximo a toscos pontilhões de madeira lançados sobre a costa lamacenta do porto; o barulho das carroças que, em grande número, transitavam diariamente pelas ruas Direita e Santo Antônio; as obras da estrada de ferro, no bairro do Valongo, serviam de componente adicional para arrematar o quadro de deterioração ambiental que se agravaria tempos depois.

O rigor climático da região contribuía intensamente para acentuar as dificuldades de adaptação dos viajantes. Quente, úmido, chuvoso e abafado durante quase todo o ano, o clima era um tormento adicional para quem desembarcasse no porto. Até mesmo o ilustre explorador Richard Burton, nomeado cônsul britânico em Santos, preferiu as temperaturas amenas de São Paulo, mudando-se junto com a esposa, Isabel, semanas depois da chegada à cidade litorânea, em setembro de 1865 (Burton, 1897, p. 250). Similar impressão teve Maurício Lamberg, fotógrafo associado à firma Henschel & C., durante passagem pela cidade em julho de 1887, que no relatório de viagem descreve:

"O clima é em geral insalubre, nos meses de verão, isto é, de novembro a maio, torna-se realmente mortífero, podendo-se dizer que essa cidade pertence ao número das mais insalubres do mundo. Não há verão em que a febre não ceife grande número de europeus. É preciso acrescentar que ultimamente Santos tem melhorado e feito obras importantes no porto: mesmo como higiene e como clima ficou sendo um pouco melhor que antigamente" (Silva, 1995, p. 128).

Se a situação encontrada era desprovida de tranqüilidade e conforto, em compensação a geografia se revela como cenografia privilegiada para ensaios fotográficos. O aspecto plano das ruas em contraste com o elevado morro em frente à cidade, navios repousando no estuário e a Serra do Mar ao fundo atraíram a atenção de Militão durante todo o processo de trabalho.

As inúmeras possibilidades oferecidas pela paisagem devem ter estimulado o olhar do fotógrafo na escolha dos melhores ângulos para a lente da câmera. Incansável, explorou a região em busca dos pontos ideais, atravessou o estuário e subiu o morro tentando registrar a cidade por inteiro, percorreu todas as ruas até alcançar o subúrbio mais distante, junto à serra, para mapear completamente o cenário vivenciado. Abusou de montagens panorâmicas por meio da junção de fotos, recurso usualmente adotado em outros trabalhos que oferecia o máximo de fidelidade do local observado. Ao todo, reuniu um conjunto expressivo de imagens, próximo da dimensão do ensaio feito para a cidade de São Paulo.

Curiosamente, algumas fotografias fazem lembrar o trabalho de William Burchell, viajante inglês que registrou em aquarelas, no ano 1826, a pequena cidade de Santos. Burchell pintou dezoito paisagens e uma vista geral, parcialmente publicadas na década de 1980 por Gilberto Ferrez.

A proximidade entre o registro de ambos levanta a probabilidade de um mesmo cenário indutor. Ao adentrar o universo explorado de Santos, estabelecem métodos similares de reconhecimento territorial, persuadidos pela morfologia linear do vilarejo portuário, às vezes com a escolha de vistas comuns. A permanência da paisagem urbana colonial, inerente às fontes iconográficas, se apresenta como fio condutor atemporal entre os dois momentos distintos e oferece um sentido complementar para a construção visual da cidade no passado.

A narrativa, empregada à guisa de mapeamento fotográfico, tem início na abordagem geral da cidade, por meio de leituras panorâmicas, para em seguida focar ângulos particulares, feitos passo a passo, onde a rua estrutura todo o roteiro visitado. Nesse ponto, os recursos da fotografia não são explorados apenas como instantâneo do tempo-espaço, nem como registro isolado de imagens, mas posicionados para perfazer em papel a totalidade do ambiente observado.

Beneficiando-se das características físicas da pequena cidade, Militão procurou reinventar à sua maneira a espacialidade da região. É como um processo de reconstrução da paisagem em que os fragmentos urbanos fotografados são remontados em seqüência para rematerializar a leitura e a percepção plena do lugar.

Em cada ponto, observa-se uma preocupação em reunir o máximo de informação possível diante das restrições técnicas impostas pela câmera. Realiza panorâmicas com fotos seqüenciais, registra planos opostos de um mesmo ponto, reinventa perspectivas com a junção de imagens sucessivas, como se buscasse transgredir os limites de enquadramento retangular inerente à chapa fotográfica.

Os registros feitos nas ruas São Bento, Santo Antônio, Direita, Caminho da Barra e Meridional são exemplos de tomadas conseguidas pelo movimento circular da câmera a partir de um ponto. Na montagem de vistas consecutivas, o fotógrafo recorre às referências arquitetônicas e geográficas para balizar a justaposição de imagens, a exemplo de William Burchell, que empregou equipamentos auxiliares para reproduzir com exatidão a representação gráfica da cidade, em jornadas distintas, do lugar onde havia parado (Ferrez, 1981, p. 23).

Militão utiliza expediente menos sofisticado, elegendo em mais de um caso o telhado de sobrados como ponto de contato entre duas fotografias, demonstrado em panorâmicas tiradas das ruas do Campo, Meridional e da Praia. Registros feitos do alto de um sobrado parecem constituir um quadro fragmentado em que a ausência de partes complementares impede a leitura visual em 180 graus. Outro grupo de vistas realizadas do porto demonstra uma provável seqüência interrompida, certamente composta por mais do que as cinco fotos remanescentes.

Indiferente à disposição quase aleatória das imagens do álbum conservado no Museu Paulista, a abrangência do universo fotografado deixa supor a existência de um roteiro viário previamente traçado por Militão para o deslocamento da câmera. Assim, é possível construir uma seqüência visual quase didática, dentre as inúmeras possíveis, a partir do universo produzido, que, de certa maneira, condensa a intenção descritiva do fotógrafo.

Apesar da organização descontínua do material, a montagem do Álbum de Santos revela indícios de estruturação seqüencial denotados, inicialmente, pela disposição de imagens gerais da cidade como forma de estabelecer aproximação com o objeto retratado.

Tomadas do alto do morro, as primeiras fotografias se convertem em mapas de reconhecimento do local, de onde se constroem as referências iniciais do sítio, identificando os eixos viários, a geografia e o adensamento das construções na orla portuária. Do outro lado do estuário, a cidade, horizontal e uniforme, é revelada por inteiro. A presença da arquitetura é o contraponto ao meio natural, que se impõe e determina a fragilidade do lugar, que sucumbe diante da proximidade do Monte Serrate. A imagem, articulada por meio da justaposição de duas fotos, desperta atenção pelo olhar romântico, semipictórico de Militão, que posteriormente irá influenciar a linguagem visual de todo o ensaio.

Na seqüência proposta, o porto, retratado em quase toda a extensão, é o ponto de chegada de onde se avistam navios atracados que induzem o observador ao sentido de desembarque. A descida prevista poderia ser em qualquer pontilhão, entretanto o cais da Alfândega, no coração da cidade, se destina como local mais adequado, que atraiu o interesse de Militão, o que se denota em face da quantidade de imagens feitas do logradouro, constituindo cerca de vinte por cento do ensaio.

O mapeamento fotográfico se desdobra no sentido Sul, pelo Caminho da Barra, onde realiza algumas tomadas, redirecionando o trajeto para o lado Oeste da cidade, pelas ruas Áurea, Rosário, Direita, Santo Antônio, da Praia, até alcançar o bairro do Valongo, pelo eixo viário das ruas Formosa e São Bento.

Nesse ponto, a presença da estação ferroviária, recém-construída, com galpões e atracadouro para navios, somada ao registro do cemitério dos ingleses, no bairro de Paquetá, insinuam o compromisso do ensaio com uma clientela específica. Pelos trilhos da estrada de ferro, a incursão termina no encontro com a Serra do Mar, mostrando a pequena estação de Cubatão, as obras e o acampamento precário dos operários.

Mesmo com recursos técnicos limitados, Militão realizou experimentações centradas na composição das fotos, sobretudo na montagem de panoramas obtidos nos registros urbanos de São Paulo e Santos entre os anos de 1862 a 1865.

Talvez fossem oportunidades momentâneas para exercitar a criatividade com a câmera se comparadas com a rotina do retratista, passada a maior parte do tempo dentro do estúdio em meio à repetição de poses rígidas e limitação cenográfica. A simplicidade das cenas de ruas e casarios, quase uma reprodução dos enquadramentos e perspectivas que a pintura havia explorado no passado, ganha sentido renovador por meio das tomadas panorâmicas que organizou. Constituídas da divisão do espaço em planos, uma vez agrupadas possibilitam uma visão peculiar da paisagem registrada, método que estranhamente ficou restrito aos primeiros ensaios fotográficos.

Militão nunca mais empreendeu experimentações similares; mesmo com a produção do Álbum Comparativo, em 1887, sua preocupação ficou limitada a cotejar dois momentos históricos da cidade, deixando de lado a leitura seqüencial do espaço documentado 25 anos antes.

Um olhar cuidadoso para a natureza da representação das duas cidades revela o vocabulário comum a cada trabalho e, paralelamente, sugere a tentativa de Militão em organizar uma linguagem fotográfica própria. A configuração das imagens em termos de forma e conteúdo - quase sempre pautada pela imobilidade do enquadramento, horizontalidade da composição, montagem de panoramas, despojamento e informalidade nas cenas registradas, recorte angular das arestas do papel fotográfico - desperta atenção para o perfil homogêneo de seu trabalho. Ao mesmo tempo, é o reconhecimento do maneirismo que exercitou, ainda que de forma inconsciente, nos primeiros anos de atividade profissional, quando realizou o Álbum de Santos.


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