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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - SANTOS EM...
1944 - por Guedes Coelho (9)

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Em 26 de março de 1944, o diário santista A Tribuna publicou uma edição especial comemorativa do cinqüentenário desse jornal (exemplar no acervo do historiador Waldir Rueda), que incluiu matéria de três páginas escrita pelo médico sanitarista e vereador Heitor Guedes Coelho (1879-1951), que também se destacou como filantropo e historiógrafo, membro do Instituto Histórico e Geográfico de Santos (grafia atualizada nesta transcrição):
 


Imagem: reprodução parcial da matéria original

A metamorfose de Santos

Panorama santista do último quartel do século passado (N.E.: século XIX) - O flagelo das epidemias que dizimavam a população adventícia - Obras de melhoramento urbano - Vultos notáveis que muito contribuíram para o saneamento e aformoseamento da atual "Cidade-Ninféia"

Guedes Coelho
(Especial para a edição do Cinqüentenário da A Tribuna)

[...]


Cruzados do Bem

Dr. Manoel Maria Tourinho - Dr. Raimundo Soter de Araújo - Dr. Silvério Martins Fontes - Dr. Tomas Catunda

No vertiginoso rolamento deste caleidoscópio evocativo, em suas expressivas miniaturas de sucessos pretéritos, alegres ou tristes, propícios ou nefastos; neste geral "Memorandum do Passado", deve-se render reconhecida vassalagem aos grandes vultos, credores de nossa gratidão.

E esse débito moral, astronômico nas proporções, absorveria toda a nossa possibilidade saldante, insolvabilizando-nos, se possível fosse retribuir-se devidamente a imensurável benemerência, toda votada a Santos, durante quase meio século, por esses quatro grandes cruzados que se chamaram dr. Manoel Maria Tourinho, dr. Raimundo Soter de Araújo, dr. Silvério Fontes e dr. Tomas Catunda.

Santos lhes deve mais do que o aformoseamento, a sanidade, o elevado teor econômico que a superiorizaram entre suas congêneres, porque lhes deve a saúde de seus filhos porfiadamente defendida, arriscadamente buscada por eles, incólumes e impávidos, através a agressividade letal e apavorante de múltiplas epidemias, qual a salamandra, destemerosa e incombusta, a pisar o braseiro rubro.

Deles, não só no caráter profissional, mas noutras modalidades de seus talentos e capacidades múltiplas, Santos muito se aproveitou. Vindos contemporaneamente da Bahia, o grande celeiro das celebridades brasileiras, dois da pequena Sergipe, donde emergiu para a imortalidade Tobias Barreto de Menezes, o outro; aqui no Sul é que seu valor se manifestou, granjeando-lhes a gloriosa apreciação da Posteridade. Equivalentes nos méritos científicos, paralelos no porte profissional, a se evadirem de nossa análise pelo conceito público que os sagrou grandes clínicos, no raro desinteresse, na sublimada caridade, na competência, na desvelada assistência prestadas ao enfermo, jamais colega algum os superou.

Produto de esmerada ancestralidade - descendente daquele prestimoso donatário da Capitania de Porto Seguro, Pero de Campos Tourinho, cuja diligente ação, equânime, cordata, suasória, a suavizar as asperezas da colonização incipiente, na cata da amizade indígena, muito contribuiu para o desenvolvimento da Pátria, nos primórdios de sua formação; e neto ainda do conselheiro Demétrio Cyriaco Tourinho, celebridade médica, ex-diretor da Faculdade de Medicina da Bahia -, e. por isso, de dons e qualidades realmente atávicos, o dr. Tourinho foi também grande administrador e digno político.

De sua atuação na direção de Santos, como presidente da Câmara Municipal de 1893 a 1894, e como primeiro prefeito eleito pelo voto popular, de 1895 a 1896 -, naqueles negregados tempos em que, entre Seyla e Carybdes, se se escapava às fauces da Febre Amarela, era para se cair nas garras da Varíola - fale ele próprio em dois candentes períodos do relatório apresentado pelo prefeito à Assembléia Municipal (que assim se chamava a Câmara Municipal), a 15 de janeiro de 1894:

"Na seção de higiene pus logo em campo todo o pessoal médico (quatro clínicos, dr. Adolfo Porchat de Assis, dr. Benedito de Moura Ribeiro, dr. Ernesto Moreira, dr. José Astério Tourinho), obrigando-os a visitas domiciliares em prédios particulares, armazéns de gêneros alimentícios, padarias, tavernas, hospedarias, casas de pasto, cocheiras, estábulos, cortiços etc.

"Tanto o corpo médico desta Prefeitura como o da Comissão do Serviço Sanitário, com quem estou perfeitamente ligado para a guerra de extermínio, sem tréguas nem piedade, contra o abuso da porcaria e do envenenamento de alimento e bebidas espirituosas de má qualidade e falsificadas, têm prestado relevantíssimos serviços, e creio poder afirmar-vos que os miseráveis envenenadores mudarão de rumo".

Bastam essas palavras, que não foram apenas retórica loquela, porque se realizaram materialmente, para se aquilatar dos méritos e da extensão da ação administrativa do dr. Tourinho.

Couberam-lhe a iniciativa da construção do Mercado Novo, da melhoria do rudimentar Corpo de Bombeiros, do calçamento e da abertura de novas ruas, do aterramento e dessecamento do Cemitério do Saboó, das constantes imposições à Cia. Melhoramentos para o aperfeiçoamento do péssimo serviço de esgotos, e de muitas outras obras. Retilínio da estatura moral e política, ele jamais se curvou em zumbaias aos poderosos do momento, nem se arrastou ante o mandonismo eventual.

Durante a revolução de 1893, quando o marechal Floriano dominava vitoriosa e discricionariamente em terra, não escondeu suas simpatias pela causa de Custódio de Melo e Saldanha da Gama, deixando de reunir a Assembléia Municipal de que era presidente por estar a nação em estado de sítio, e por isso suspensas as garantias constitucionais e individuais. E o intemerato político de franco caráter e claro proceder foi preso, e no cárcere se manteve até a volta da paz.

Assim, entre amargos dissabores e a remover agros percalços na estrada profissional e pública, viveu o dr. Manoel Maria Tourinho.

***

O dr. Raimundo Soter de Araújo também exerceu com brilho invulgar cargos administrativos na Municipalidade, tendo sido durante muito tempo inspetor literário, e por isso fundador de muitas escolas públicas. De sua diligência se enriqueceu a nossa cidade com inúmeros melhoramentos, reclamados nas constantes indicações que apresentava em sessão, como eu observei, seu colega de vereança que fui.

Pai da pobreza de Santos, na Santa Casa ele se dedicou durante muitos anos à luta contra a tuberculose, na cuidadosa assistência prestada aos internados do Pavilhão. Dedicado homem público, médico caridoso, a Bondade era o traço predominante do seu caráter - todo ternura e sensibilidade. E, para medir-lhe a extensão, para temperar o aço damantino de sua alma, quis o Destino, como a um novo Job, experimentá-lo em duras provações, em cruciantes torturas morais, na perda de duas filhas queridas, moças gentis, vítimas daquele mesmo mal que ele guerreava no hospital.

Chefe de família exemplar, desvelado esposo e pai, de quanto ele sofreu durante largos anos, em perene recordação, a todos os instantes presente, de suas filhas infortunadas e do triste quadro de seu sofrimento, eu fui testemunha porque, médico como ele da Sociedade Espanhola de Socorros Mútuos, quase diariamente nos encontrávamos em conferências clínicas.

Muitas e muitas vezes eu o vi, debruçado sobre o dorso do doente, que escutava atentamente, perladas lágrimas lhe penderem dos cílios para, num pranto silencioso e recalcado, logo tombarem sobre o leito. A pungir-lhe a dolorosa saudade das filhas, a sofrer amargamente, mesmo assim, a atenção prestada a seu exame clínico não esmorecia, nem se turvava a clareza de suas frases em nossos diálogos profissionais. Ante mim então ele se elevava a descomunais alturas, não de um homem, mas de um semi-Deus. E nem por lhe ferir a graça divina naqueles transes cruéis, se lhe estiolou a crença religiosa intensa, nem feneceu a fé em Deus, profunda, mais afervoradas ainda, sublimadas que foram no crisol do sofrimento. Esse foi o dr. Raimundo Soter de Araújo.

***

O dr. Silvério Martins Fontes foi talvez o maior erudito que pisou nestes chãos. Verdadeiro sábio, sua cultura era ilimitada; e aqui, meio ainda acanhado, e cujos horizontes restritos não permitiam largos remígios intelectuais, ele foi o pioneiro do Livre Pensamento e do Marxismo. Denodado defensor de grandes ideais, muito pugnou pela extinção da escravidão, pela palavra ou pela pena, na "Evolução", revista da qual existem alguns números na Biblioteca Municipal.

Em prol de suas convicções, renhidas polêmicas entreteve na imprensa com adversários valorosos.

E aí, por outros títulos ele não merecesse de nós reverente admiração e ilimitada gratidão, um só, maior do que todos, para tanto lhe bastara - ter sido pai de Martins Fontes.

***

Do dr. Tomas Catunda que se pode dizer, tão recente é o seu desaparecimento, tão viva é ainda na saudosa retentiva de toda Santos a sua figura simpática e bondosa? Que ele, aqui chegado quando já desaparecera a febre amarela, tanto quanto os colegas que a esta assistiram, trabalhou, multiplicando-se, como se ubíquo fora, a todos assistindo, confortando, curando, na grande pandemia de 1918. Poucos foram os médicos que não se acamaram então, como eu, também assistido por ele na minha congestão pulmonar.

Provecto clínico, era a um tempo bom cirurgião e ótimo médico; de grande competência, extensa ilustração e profundo conhecedor de Literatura e História, sua palestra era encantadora.

O maior título de seu valor é ter sido, durante muitos anos, o médico dos médicos de Santos. Afinal, cansado da estrênua luta profissional, durante muitas décadas exercida sem compensadora retribuição, pois sempre foi desinteressado e desambicioso, ele, batalhador incessante e infatigável, para quem o trabalho era uma necessidade fisiológica, dedicou os requintes de sua bondade, a energia ainda supérstite, malgrado seu perdulário gasto em atuação clínica, à difusão da instrução primária por meio das aulas mantidas pela Sociedade Amiga da Instrução Popular, a cuja incorporação, ciclópico trabalho, todo se devotou.

E a sua obra surge hoje esplêndida nessas muitas escolas onde se redimem da ignorância as crianças pobres, grandes homens de Amanhã, que em homenagem ao dr. Tomás Catunda honrarão o Brasil.

***

E hoje, que é Santos?

Qual, desatada crisálida, a libélula grácil, a esplender no espaço, em adejos graciosos, a louçania de seu talho mínimo, o colorido maravilhoso de suas asas policrômicas, Santos também desperta de longa hibernação no Atraso, na Ignorância, impelida por patente surto de constante progresso, é esta magnífica cidade, dotada de todo o conforto da civilização, higiênica e urbanisticamente.

E, como a grande metrópole ianque, a crescer vertiginosamente na sua Manhattan de São Vicente, já se lhe delineiam, dentre as brumas de próximo futuro, os contornos da esplêndida "urbe" que vai ser. Onde outrora era um vasto pantanal, cruzam-se boas ruas apojadas de extenso tráfego; e erguem-se os vastos armazéns portuários de suas docas modelares, donde partem, rumo ao estrangeiro, atestados os porões de preciosa rubiácea, os transatlânticos imensos.

Através corte das matas espessas, percorrido antes pelos vetustos bondinhos, e hoje largas avenidas, esteticamente arborizadas, perdulariamente iluminadas, marginadas de belos edifícios, deslizam, céleres, autos confortáveis e "tramways" (N.E.: = bondes) elétricos.

Às baixas, rasteiras casas do Passado, substituem-se agora, em ousados arremessos para as alturas, na previsão dos futuros arranha-céus, monumentais, graníticas construções de oito a dez andares. Em suas praias pitorescas, lindamente recortadas pela Natureza e enfeitadas pelo Homem, avultam hotéis tão suntuosos que honrariam Miami, Trouville, Pocitos, Mar del Plata; e pisando-lhes o asfalto lustroso em pós das ondas sedantes e estimulantes, correm, a surgirem dos estilizados e garridos "shorts", cavalheiros finos e damas elegantes.

A monótona sensaborona cavaqueira noturna das farmácias d'antanho, conseqüente à ausência de diversões e entretenimentos, troca-se agora pela freqüentação de luxuosos cinemas, do Atlântico, do Roxy, do Coliseu, do Miramar, donde se ouve a deleitosa música de Fantasia, delírio deslumbrante de sons e cores, se aprimora a Cultura, viajando-se mundo afora, na visão do "Tapete Mágico", se regalam os olhos maravilhados pelas revistas aparatosas, recheadas de chiste e de formosas mulheres.

E eis, palidamente descrita, a Santos atual, nosso berço estremecido, donde se escoa para os mercados consumidores, e enriquecendo o Brasil -, produto da maior organização agrícola do mundo - o Café de São Paulo!


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