Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/santos/h0300q3.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 07/05/06 23:07:22
Clique na imagem para voltar à página principal
HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - SANTOS EM...
1944 - por Guedes Coelho (3)

Leva para a página anterior
Em 26 de março de 1944, o diário santista A Tribuna publicou uma edição especial comemorativa do cinqüentenário desse jornal (exemplar no acervo do historiador Waldir Rueda), que incluiu matéria de três páginas escrita pelo médico sanitarista e vereador Heitor Guedes Coelho (1879-1951), que também se destacou como filantropo e historiógrafo, membro do Instituto Histórico e Geográfico de Santos (grafia atualizada nesta transcrição):
 


Imagem: reprodução parcial da matéria original

A metamorfose de Santos

Panorama santista do último quartel do século passado (N.E.: século XIX) - O flagelo das epidemias que dizimavam a população adventícia - Obras de melhoramento urbano - Vultos notáveis que muito contribuíram para o saneamento e aformoseamento da atual "Cidade-Ninféia"

Guedes Coelho
(Especial para a edição do Cinqüentenário da A Tribuna)

[...]


A tragédia espantosa do Lombardia

Bem criança eu era naquele trágico ano de 1889, mas, num esforço introspectivo, recordo-me. Senegalesco o calor, na frase de Júlio Ribeiro, da Carne - o célebre romance realista que todo o santista deve ler -, era tão intensa a ardentia solar que facilmente se fritariam ovos nas calçadas ou nos grossos matacões das vias públicas; e se os dias eram árduos, dolorosas eram as noites em branca insônia atravessadas. Nas ruas, compungia ver-se aquele constante deslizar de enterros, nobres geralmente, a reclamarem uma nova necrópole, no Saboó.

E eram tantos jovens, nórdicos na maioria, tripulantes de navios americanos, noruegueses, ingleses, alemães e suecos - postos os olhos num ideal desfeito, e numa última pungente recordação da mãe, da namorada, jacentes lá na pátria distante - que caíam diariamente, às dezenas, vítimas da picada do stegomya fatal, só muito depois expulso daqui, pela harmoniosa ação do Serviço Sanitário, no despistamento e na segregação dos enfermos; da Comissão de Saneamento, na construção dos canais de drenagem para o dessecamento telúrico, e da Companhia Docas, no aterro dos pântanos litorâneos.

Era isso ao tempo em que na baía de Guanabara, em meio àquela esplendorosa natureza, cobria-se de crepe todo o cruzador italiano Lombardia, mortos de febre amarela seus tripulantes, do comandante ao último marinheiro, a merecerem, qual se em belicosa ação tombaram, no cemitério do Caju, um monumental mausoléu dedicado "Aos mortos do Lombardia", cujo regresso à pátria se fez à custa de nova tripulação, toda brasileira.

Para temperar o trágico mister, havendo de recorrer-se à nota cômica, aluda-se a certo estrangeiro, recém-chegado da terra, de poucas letras e minguado descortino intelectual, o qual, comentando o obituário do jornal, disse ser "mentira que a amarela matasse tanta gente", pois nele se lia: "Fulano de tal, morto de febre amarela" e, seguidamente, dezenas de idem... O "idem", esse era o grande mal.

Ir-se-á à janela então, para arejar o corpo e espairecer a alma, observando-se agradáveis aspectos citadinos, era contraproducente e não aprazia, na constante e triste visão dos negros carros fúnebres a rodarem sem tréguas quase, que era grande a freqüência; a relembrarem o Nada que somos, e o desalentador "Nunca mais" do famoso "Corvo" de Edgard Poe.

Cadáveres que riem à face das estrelas...

Regurgitante de enfermos os hospitais públicos e enfermarias particulares, muito constou, emprestando-se-lhe laivos de veracidade, a ocorrência de casos tragicômicos no enterramento de amarelentos ainda vivos e imersos no coma pré-agônico. Ao que parece, burlando os cuidados do clínico e escapando à observação dos enfermeiros, isso deu-se duas vezes ao menos.

Corria o "alegrinho" pela Rua da Alfândega (Senador Feijó hoje), quando, no cruzamento com a das Flores (Amador Bueno agora), justamente na esquina da casa do dr. Silvério Fontes, onde nasceu Martins Fontes, e hoje sede do Café Sul América, uma das rodas dianteiras, batendo violentamente no meio-fio da calçada por descuido do cocheiro, determinou a queda do carro, que tombou de lado, abrindo-se-lhe a porta por onde se escoou o caixão, do qual, desvanecido o prolongado delíquio, levantou-se o defunto.

E, envolto na tétrica mortalha negra, escandalosa e desabaladamente, o "cadáver", em meio a geral pânico, fugiu pela Praça Visconde de Mauá, assim chamada por situar-se em terrenos do grande brasileiro, denominação essa que, substituída pelo nome do Patriarca da Independência, ao depois seria transferida para o antigo Largo da Coroação.

De outra feita, certo morto, acordando-se noite alta na capela do cemitério, descerrando-lhe a porta mal fechada, saiu, e não podendo transpor os muros da necrópole, adinâmico e falho de forças, puxando o caixão até o portão, nele sentou-se, pacientemente, à espera do coveiro, o qual, pela manhã, em vez de dar-lhe saída, mal o viu, apavorado, deitou a correr pelo descampado circundante ao cemitério do Paquetá, em busca do administrador seu chefe.

***

Pois Santos era isso.

E a despeito de todos esses entraves, seguia sempre a mesma derrota ascensional, e em porfiada conquista da Perfectibilidade, a nossa terra, futuro escoadouro do Sudoeste brasileiro e do "hinterland" Bolívio-Paraguaio, e, sobrepujando Buenos Aires e Rio, proximamente máxima metrópole comercial da América do Sul.


A praça Mauá em 1894, ano da fundação da A Tribuna, vendo-se o antigo mercado de frutas, aves e verduras. A fotografia constitui reprodução de uma tela do pintor Rowley Mendes e pertencente à viúva Alex Grieg
Fotos publicadas com a matéria

Um descendente dos Távora

Focalizando a decisiva ingerência da Comissão Sanitária no cerceamento e na extinção do "typho icteroide", devemos render sincero preito de gratidão aos médicos seus componentes e precipuamente aos seus três grandes chefes, os drs. Tolentino Filgueiras, Francisco Cavalcante e Guilherme Álvaro.

Deste, sobretudo, expressões não há bastantes para enaltecer-lhe a decidida, incansável, ciclópica intervenção na árdua, perigosa campanha desenvolvida através vários anos ininterruptos, sem pausas, e apenas galardoada com a ascensão à Diretoria Geral do Serviço Sanitário de S. Paulo e à merecida aposentadoria por invalidez.

A irradiar simpatia na risonha e insinuante fisionomia, elegante, rubro cravo à lapela sempre; ele, que morreu relativamente moço, merece bem melhor homenagem que a simples imposição de seu nome nas placas de remota e feia rua do José Menino.

Dotado de viva, aguda inteligência, a par de fino espírito crítico, bastante cáustico, às vezes, eu o chamava de "Voltaire" mirim, de que lhe aflorava aos lábios complacente sorriso. A vastidão de seus conhecimentos impressionava, ilimitada, polimorfa e enciclopédica que era; e sua cultura sem barreiras, e extensiva das ciências concretas às abstratas, da Medicina à Filosofia, permitia-lhe versar, na conversação agradável, qualquer assunto de súbita proposição sem recurso à consulta livresca.

Da altíssima cordilheira mental de Santos, ele era o Everest.

Ignorada de muitos era a sua ascendência, mesclada à mais alta nobreza lusitana, pois, em suas veias, circulava o sangue da nobre família dos marqueses de Távora, protagonistas da maior tragédia desenrolada em Portugal, aos meados do século XVIII.

Era quinto neto de um Távora colateral, emigrado para Santa Catarina, em fuga à vingativa sanha do Marquês de Pombal, votada a todos os que usavam o fatal apelido, trocado por um plebeu e anônimo Silva, razão por que ele se chamava Guilherme Álvaro da Silva, simplesmente.


[...]
Leva para a página seguinte da série