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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - SANTOS EM... - BIBLIOTECA NM
El Brasil (M)

Clique na imagem para ir ao índice da obraUm país recém-entrado no regime republicano, passando por grandes transformações políticas, econômicas e sociais, sob o império dos oscilantes preços do café. Assim é o Brasil encontrado pelo jornalista argentino Manuel Bernárdez, que em 1908 vem tentar decifrar o que aqui ocorria. É dele a expressão "Metrópole do café", com que alcunhou a capital paulista [*]. Sua obra El Brasil - su vida - su trabajo - su futuro foi editada na capital argentina, em castelhano, sendo impressa em Talleres Heliográficos de Ortega y Radaelli, Paseo Colón, 1266, Buenos Aires.

O exemplar pertencente à Biblioteca Pública Alberto Sousa, foi cedido em maio de 2010 para digitalização, através da bibliotecária Bettina Maura Nogueira de Sá, a Novo Milênio, que apresenta nestas páginas a primeira tradução integral conhecida da obra para o idioma português - páginas 152 a 171:

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El Brasil

su vida - su trabajo - su futuro

Manuel Bernárdez

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Imagem: reprodução parcial da página 152

O chanceler do Brasil

No palácio de Itamarati - As casas e as coisas do Brasil ganham vendo-se por dentro - A oficina de trabalho de Rio Branco - Sua "casa" na chancelaria - Uma vida de trabalho - Noites fecundas - A explicação de um prestígio - O homem, seu meio, suas idéias e sua obra - Genealogias ascendentes - O ministro Paranhos - A tradição paterna - Reportagem para o Prata - Rumos da política do Brasil - A paz, a justiça, o direito e o progresso, a riqueza comum e a ordem como bases do prestígio da América do Sul - Três países para todos? - Argentina, Brasil e Chile - A aliança política e os tratados econômicos - Nosso inimigo é nossa desconfiança - "Só a loucura poderia trazer discórdias" - Alguns rasgos do "grande brasileiro" - Seu esporte - Por quê não faz política Rio Branco - "Tudo para o Brasil" - Alguém que podia não ser nada e ser tudo

Haviam me dito que o barão de Rio Branco era muito matinal, como o são geralmente os homens de trabalho no Rio, porque o clima o pede. Fui em conseqüência ao Itamarati, por volta das nove. Desci de um pequeno bonde dos poucos movidos a sangue, tirado por uma mulinha diligente, e penetrei em um vasto vestíbulo. Um homem de aspecto palatino – o mordomo da chancelaria – saiu a me atender, deferentemente. Disse aonde ia e para quê. Desejava saudar o senhor de Rio Branco em nome do El Diario de Buenos Aires.

- Sua Excelência – me disse o mordomo – se deitou às oito; assim é que, até depois das doze, considero difícil...

Eu não pensava do mesmo modo, crendo que se tratasse das oito da noite anterior. Mas o mordomo me tirou do erro, acrescentando à guisa de explicação cortês: - Como sua excelência esteve dois dias em São Paulo, seu trabalho se atrasou e por isso ficou despachando a noite toda...

Sem dificuldade fiquei com isto convencido da judiciosa opinião do mordomo. O barão de Rio Grande havia se deitado apenas uma hora antes... O fato era curioso, mas segundo me informei, não era raro. O barão fica com muita freqüência trabalhando até o amanhecer – pelo menos duas ou três vezes na semana.

Vive com sua família em Petrópolis [*] mas quando um trabalho qualquer o retém no Rio até o anoitecer, deixa-se seduzir pela tarefa urgente que o solicita, se recolhe em seu gabinete, faz ali uma ceia frugal e vara a noite em claro, estudando protocolos, meditando soluções de problemas grandes e de assuntos pequenos, de questões exteriores e de coisas caseiras, edilícias (N.E.: legislação edilícia é um conjunto de leis, regulamentos, portarias e resoluções relacionados à edificação de obras públicas), policiais, de ornato público, de acolhimento de viajantes distintos, de fomento urbano, de cultura ou de estética de ruas – de tudo, menos de política. A atividade do chanceler é enorme e minuciosa - à semelhança de uma tromba, que tanto arranca uma árvore pesada como levanta uma agulha do solo.

Montanhas de expedientes, cordilheiras de telegramas, esperam-no sempre, transbordando das mesas – e ele, com sua mobilidade, repousada, sem um gesto inútil nem um minuto vazio, sem um bocejo de cansaço, sem um assomo de aborrecimento, sem abrir mais escape à sua energia que a minúscula chaminé, sempre fumegante, de seu cigarro negro armado em chala (N.E.: termo de origem quéchua, usado em Argentina, Bolívia, Chile, Peru e Uruguai, referindo-se a uma folha que envolve a espiga de milho), se submerge na tarefa e vai girando a roda de suas decisões como o volante de um mecanismo mental, que não se equivoca, nem vacila, nem volta atrás.

Quando pude dar uma olhada àquele trabalho desmedido e metódico, me veio a idéia, talvez um pouco absurda, mas gráfica, de uma dessas debulhadoras a vapor que se vê funcionar aos milhares em nossas campanhas (N.E.: áreas campestres extensas e planas, geralmente dedicadas à pecuária) durante a colheita, recebendo incessantemente pilhas inteiras de espigas, e sem esforço nem demora lançando a palha ao ar por um lado e jogando pelo outro o grão limpo, ensacado e pronto para ser pão...

Estas imaginações comparativas me ocorreram outra vez em que, acompanhado de um gentil amigo que era muito de casa no Itamarati, voltei a intentar a entrevista, desencontrando-me com o barão, que acabava de sair para o palácio presidencial.

Meu desejo era uma visita simples – um discreto e não premeditado contato jornalístico, sem as solenidades coibitórias de uma audiência oficial.

Sabia que o ministro tinha experiência de sobra para não levar a mal uma abordagem em tal estilo e não quis fugir ao meu propósito. Mas o desencontro, longe de me fazer perder a tarde, me sugeriu o vivo desejo de dar uma olhada furtiva ao misterioso escritório de trabalho internacional sem a presença do dono da casa; e o amável companheiro acedeu à minha pretensão, introduzindo-me no palácio sem inconveniente.

*

O Itamarati é, como o Catete, a obra de um grande senhor, opulento e refinado na complexa e estranha ciência da vida. Também como o Catete, o palácio da chancelaria, comprado a um nobre do Império, não diz o que é, visto de fora. Parece um casarão.

O amigo que me acompanha me diz, respondendo a uma observação minha a respeito: - Você verá que as casas e as coisas do Brasil são quase sempre melhores que seu aspecto exterior e ganham à medida que são vistas por dentro...

Com agrado vou concordando. O palácio, de fato, uma vez subida a escada de honra, vai revelando as magnitudes, a suntuosidade severa e artística, o nobre sabor antigo de uma grande residência senhorial. Vastos salões, com magníficas tapeçarias persas e tapetes de Albusson que representam fortunas como valor e como arte, se sucedem, decorados por bustos de diplomatas e estadistas e por profusão de quadros que invariavelmente levam assinaturas de artistas brasileiros.

Um belo parque tropical forma o centro do extenso edifício, flanqueado por salas, escritórios, dependências, arquivos; e ao fundo, um corpo inteiro de dois pisos, construído ex-profeso, encerra o tesouro de uma biblioteca diplomática inestimável, que é o amor, o orgulho e o arsenal de combate do barão de Rio Branco.

Depois de uma rápida volta bisbilhotando os salões e escritórios, todos abertos, passamos defronte de uma porta fechada. Meu acompanhante me disse:

- Este é o escritório do barão.

Bem desejava vê-lo, porque até então não havia encontrado ali nada característico, nada que concretamente se referisse ao homem, cujo nome, cuja popularidade, cujo prestígio, como uma lenda e uma obsessão, havia visto presente sempre, desde que pisei terra do Brasil, flutuando em todas as conversas, surgindo em todos os discursos, centro de um fervor, de um carinho, de uma confiança apaixonadas, por parte de todas as classes do país.

Havia ouvido dizer a bordo: - Rio Branco é adorado no Brasil; e esse adorado me parecia algo excessivo. Mas depois de quase um mês circulando por cidades e áreas interioranas, sabia já que a expressão era exata. Não vi exemplo de prestígio semelhante, tão total, tão sem sombra de suspeitas, nem distinções, nem reservas, nem zelos. Mesmo os políticos que combateram o chanceler em empresas como a do Acre, que deu ao Brasil o monopólio da borracha, se haviam rendido, convencidos ou levados pela onda; e hoje a adesão a Rio Branco é um fato nacional.

Por circunstâncias especiais tive em meu giro ocasião de ouvir numerosos discursos, com objetos que não tinham relação com os negócios exteriores ou a tinham muito remota. Mas nenhum orador deixou nunca, com amáveis pretextos ou sem eles, de se referir a Rio Branco. E o público, seja de damas e cavalheiros de fraque ou de morenos camponeses, esperava a referência como uma coisa indispensável. E quando a alusão assomava, quando o orador, elevando o tom com um largo gesto de expectativa, começava a dizer, por exemplo, acentuando a frase:

- Mas há um brasileiro...

Já se sabia de quem ia falar, e o público rompia em saudações: "Rio Branco! Rio Branco!". O êxito oratório estava assegurado, qualquer que fosse o resto do discurso, porque apenas o deixavam escutar os aplausos.

*

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VINHETAS FLUMINENSES - Paisagem da barra do Rio de Janeiro, atalaiada pelo Pão de Açúcar e guardada por duas fortalezas, que cruzam seus fogos na estreita entrada, apoiadas ainda por outras três, espalhadas em ilhotas próximas
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Desejava, pois, ver um pouco por dentro o homem que tal amor havia chegado a inspirar a todo um povo, espalhado em tão imensas distâncias. E pedi o favor de permitir uma olhada ao escritório particular. Meu acompanhante se escandalizou um pouco com a pretensão – mas dando-se conta de que me era sugerida por algo mais que uma trivial curiosidade, concordou, com uma cláusula condicional: "não olhando para os papéis pode..." A condição era até algo ofensiva! Pois, tratando-se de um jornalista, poderia ser admitida!...

O escritório é simplesmente um enorme salão de uns quinze metros por oito, e seu aspecto à primeira impressão era mais para desencantar. Nada extraordinário, nem sequer nada monumental, nada decorativo, nada sugestivo; as paredes nuas, nenhuma obra de arte, nenhum busto evocador, nenhuma recordação, nem sequer um triste rastro de jornadas memoráveis – nem mapas com sinais estratégicos pelas paredes... nem sequer tapetes no solo.

Aquilo parecia melhor o refeitório de um convento convertido em cela de um padre prior dado a coisas de letras. Porque papéis, sim, existiam! Papéis amontoados em mesas de todo tamanho, em áreas de trabalho de todo gênero, desde o estilo ministro até o modesto de uma gaveta e o mais modesto de nenhuma. Mesas de mogno, de cedro, de pinho branco, de qualquer forma, até o número de quatorze ou quinze, suportando montões de papéis, obstruíam o vasto salão, impondo, para circular, desde a marcha oblíqua até o trabalhoso desfile de lado.

À direita, uma mesa, a mais importante por seu tamanho de vários metros, está formada por tábuas de pinho postas sobre cavaletes; mas como ainda isso resultasse escasso à avalanche dos papéis, recebeu as honras de um mezanino, fazendo-se um piso inferior com ouras três tábuas, postas sobre o cruzamento dos cavaletes. E ali também os papéis alçam seus blocos e suas pilhas, fazendo curvar as tábuas.

Onde trabalha o barão? Para responder à pergunta, o acompanhante investigou sobre as mesas. "Não há mais que ver onde está o candeeiro..." De fato: todo aquele recinto de trabalho mental não recebe mais luz que a de uma vela. Ali não há aranhas (N.E.: denominação de uma espécie de candelabro sem pé e com vários braços, pendurado do teto ou de uma lança), nem focos portáteis – um modesto candeeiro de louça branca perambula com o operário daquele escritório, de mesa em mesa.

Quando uma se abarrota até o ponto de não se poder já escrever nela, traz-se uma nova, a primeira que se encontre vazia no palácio, e ali se instala o barão, com seu candeeiro, sua cadeira – porque nem sequer usa um cadeira de braços maior, dessas tão cômodas para ver como sobe a fumaça do cigarro – uma garrafa de água, um copo e um tinteiro – um tinteiro comum, desses que ficam parados, como para vagabundear, sem tombar, nessa vida de contínuos traslados.

Cada mesa tem normalmente três montões: o montão dos telegramas, à direita, sem dúvida, porque, sendo de índole urgente, deve estar à mão; o montão dos ofícios e papeis epistolares à esquerda; e um terceiro montão à frente, que digo eu que será o montão do que não serve – como quem diz, a palha da debulhadora.

Todos aqueles papéis estão copiosamente anotados com a grossa letra do barão, que escreve sem preguiça, pondo sempre, nas notas marginais ou nas resoluções, o pensamento inteiro e definitivo, formulado de uma só vez por seu critério certeiro e sua erudição colossal, especialmente enquanto tem que ver com o Brasil, tanto seja com sua história, como com sua diplomacia, sua geografia ou sua natureza, sua flora, suas raças e fenômenos étnicos, seu comércio e suas indústrias, sua fauna ou seus costumes, seus insetos ou suas lendas – pois o barão tem fama de ser o brasileiro que mais sabe sobre o Brasil.

A impressão de desencanto sofrida a princípio por minha curiosidade dava lugar a uma sensação de interesse crescente, ao observar naquele recinto tão característico traços íntimos do chanceler do Brasil, cuja obra de estadista, depois de haver obtido a adesão total de seu país, realçado, considerado, livrado de questões de vizinhança, e posto em um nível de considerável importância internacional pela ação de sua diplomacia, atraía agora com crescentes curiosidades o interesse das nações de América e Europa, ainda das grandes potências – que no congresso de Haia se haviam visto obrigadas, com certa admiração e talvez com um pouco de impaciência, a atender, primeiro com relutância e depois com maneiras diferentes, àquele novo interlocutor exótico, entre cujas verbosidades tropicais, que a princípio se acreditavam simplesmente pitorescas, assomam inesperadas altivezas e maneiras de dizer terminantes e claras, e que sem muita cerimônia, atuando de igual para igual com todo mundo, tomava para si um assento, que parece definitivo, em todo futuro debate internacional onde se ventilem interesses ou ideais da América do Sul.

Aquele retiro de trabalho, simples e severo, carente de toda gala, de todo conforto, até das pequenas comodidades elementares que qualquer modesto burguês busca para suas curtas meditações – aquela imensa sala, iluminada por uma só vela, tão inospitaleira e diferente de quanto se acredita propício às misteriosas gestações do pensamento, revelava todo um modo de ser, um temperamento com rara aptidão de encerrar-se em seu próprio universo e gozar a lisonja do trabalho sem testemunhas, sem incentivos visíveis, sem estímulos desses que, por vaidade ou interesse, movem normalmente a energia dos homens.

Aquela forma severa e superior da tarefa intelectual me trouxe à memória, por uma relação fácil de afinidades selecionadas, a recordação de outro poderoso trabalhador – de Mitre, trabalhando também pelas noites, até que a alvorada visitava seu retiro – iluminado também por um castiçal que viajava com ele desde a biblioteca até o dormitório do piso térreo, onde a pequena cama de ferro, alheia ao sensualismo do repouso, parecia resumir em sua simplicidade, como uma síntese cotidiana, a moral e a vida do solitário trabalhador.

Tem também ali Rio Branco seu dormitório das noites laboriosas. Em um ângulo do escritório, um biombo de uma tela qualquer, cravada em ripas pregadas de cedro, encerra um espaço reduzido – o indispensável para que caiba ali uma cama de mogno, de quadrado e meio, e uma cadeira. E em relação com este aposento elementar, um lavatório de ferro fundido, sem espelho, posto nas costas da porta de entrada, completa esse conjunto, no que se refere à toilette do chanceler.

Nestas noites faz seus lanches sobre a mesma mesa em que escreve – ladeando apenas a folha úmida da escritura recente, onde vai formulando um tratado ou um plano de recepção, ou um comunicado de instruções diplomáticas, ou um informe geográfico ou histórico para qualquer academia ou sábio europeu, dos muitos que solicitam dados do barão, sabendo que responde sempre, esgotando o tema e na volta do correio.

Um servidor hábil em improvisações culinárias – à base de legumes, pois o chanceler não come carne – tempera a ceia frugal, em um pequeno fogão a gás, ali contígua – ocorrendo entretanto ao barão desfrutar, nessas suas ceias sobre a mesa de trabalho, do encanto de uma gentil companhia – a de mademoiselle Hortênsia de Rio Branco, exemplar galhardamente representativo da mulher brasileira, que amiúde fica também no Itamarati, como a dulcificar, com o eflúvio ondulante da graça e do talento feminino, as austeridades retilíneas do trabalho paterno.

Minha entrevista com o barão do Rio Branco se efetuou tão a meu gosto que até o encontrei fora de seu escritório oficial, fora de todo conjunto de preocupações e de todo vestígio de cerimonial, em um amável quarto de hora expansivo e propício à condescendência.

Um grupo de estudantes de Direito que o havia acompanhado desde São Paulo lhe pediu que fosse fotografado com eles, e o barão acedia comprazido, encontrando-se, quando cheguei para saudá-lo, posando entre o grupo juvenil, remoçado também ele, com um visível encanto da companhia, contando anedotas de seu tempo de estudante na claustral e ilustre academia paulista, cujo orgulho por haver tido em suas aulas, quarenta anos atrás, o travesso, magro e garrido estudante Silva Paranhos, atual chanceler e ídolo do Brasil, acabava de se traduzir nas mais vivas formas do regozijo.

De pé, levemente reclinado contra o batente de uma porta, tendo por diante a claridade das galerias altas do palácio e o belo espetáculo do jardim onde luzem sua simples e magnífica galhardia palmeiras imperiais - recebeu o barão de Rio Branco minhas saudações rio-platenses e teve amáveis gentilezas para meu jornal e para numerosas pessoas de Buenos Aires, que nomeou e recordou com acentuada simpatia.

Risonho, muito erguido em sua estatura forte e corpulenta, elaborando com certa lentidão suas frases em castelhano, generalizava idéias amáveis, qual se não houvesse caído em conta de que um repórter concreto estava sobre seu rastro. Passeamos um momento, apresentou-me a várias pessoas, fez um parêntesis e assinou um expediente que lhe trouxeram, recostando-se na balaustrada da galeria. Vi que outros expedientes o espreitavam e um empregado desdobrava desde longe um mapa que, visivelmente, levava os olhos do chanceler. A reportagem perigou um breve minuto. Mas o afrontei bravamente:

- Senhor ministro... Não penso incorrer, certamente, na pueril pretensão de intentar uma reportagem de arte maior; mas convirá V. E. em que não é possível vir de tão longe, subir tão alto e regressar... V. E. compreende!

Compreendeu, com efeito, o que provavelmente havia compreendido fazia tempo. E me disse com sorriso cordial:

- Bem, mas então vamos falar em brasileiro!

E falou em brasileiro, detidamente, sem abandonar seu simples e substantivo estilo verbal, sobre as conveniências materiais e a tradição moral nas relações do Brasil com seus grandes vizinhos da América do Sul.

Nem por um instante o vi semi-cerrar seus olhos, de um cinza penetrante, plenos de certezas, nem envolver seus pensamentos nessas reservas cautelosas e reticentes com que os Metternichs (N.E.: o príncipe Klemens Wenzel Lothar Nepomuk von Metternich - nascido m 15/5/1773 e falecido em 11/6/1859 - foi um diplomata e estadista do Império Austríaco, apoiou a restauração da dinastia dos Bourbon na França, e a reconquista do trono português por D. Miguel, após a queda de Napoleão) de calibre menor ampliam a importância de suas declarações, soltando-as com precaução, como se cada palavra sua, dita de golpe, pudesse alterar o ritmo das esferas.

A cordial e despreocupada sinceridade, que notara já em todas as conversações tidas com vários estadistas brasileiros sobre matéria internacional, alcançava em Rio Branco suas formas superiores de simplicidade concreta e conclusiva, desdenhando toda imprecisão, todo eufemismo, para afirmar convicções de fato e de princípio, puras e simples.

A impossibilidade de choques e conflitos de espécie alguma entre Brasil e Argentina, a completa fé em que o grande país do Prata cifrava seu afã em trabalhar em paz, e a confiança de que igual convicção teria a respeito do Brasil a honradez argentina - que se diminuiria duvidando sem motivo da honradez alheia - a demonstração material das mútuas conveniências, que são de ordem imperativa, quanto a cordiais entendimentos entre ambos os povos, tudo isso foi exposto pelo chanceler brasileiro com uma precisão de fórmula algébrica, impossível de alterar seriamente, como ele dizia, com nenhuma sugestão maligna de índole individual - com nenhuma loucura!

"Com nenhuma loucura!" Foi curioso que o chanceler chegasse por diferentes processos mentais a empregar a mesma expressão de Bocaiúva - que só enlouquecidos uns e outros poderia haver discórdia entre estes países - e que só um critério ofuscado ou insensato poderia supor, não já que o Brasil fomentasse, mas que, por algum interesse, lhe conviesse qualquer transtorno argentino ou de outro país, qualquer conflito continental, com ele ou com outra nação, qualquer prejuízo de qualquer vizinho, material ou moral, político ou econômico, interno ou exterior.

Para ganhar o quê? A política do Brasil, como já o fizera notar o presidente Penna, era afirmada pelo chanceler sobre o conceito de que o mal de um se vê de fora como mal de todos - que o descrédito de um fere ou salpica os demais - e que o que há de fazer é tender a aclimatar as sementes preciosas da ordem e da paz em todas as terras da América - é cultivar a civilização geral, a justiça, a lealdade e um insuspeitável conceito de interesses solidários, para que tudo isso faça escola e forme um corpo virtual de doutrina sul-americana - E não para meros fins platônicos, expressou o chanceler -, mas com o objetivo conciso de garantir os bens comuns, de território, de soberania e de dignidade contra qualquer emergência, não impossível se todos nos empenhássemos em nos mantermos foscamente isolados em nossas fronteiras.

É preciso tender a entendimentos concretos. Não é possível, infelizmente, por razões óbvias, pretender a aliança material de todos os países da América do Sul - mas sim, é possível, e deve ser nosso ideal, buscar, com um fim de utilidade superior para todo o continente, que isso se verifique entre os países que, de imediato, estejam - como estão, por exemplo, a Argentina, o Brasil e o Chile - em condições de formar um conjunto de poder efetivo, associando um capital de força mais ou menos equivalente.

- É claro que ninguém sonha em impor tutelas, declarou o barão, pois ante o Direito somos todos iguais - e o Brasil professa este princípio com tal convicção que, apesar de nossa notória amizade com a América do Norte e do interesse sincero com que a cultivamos, não temos vacilado um minuto em adotar a atitude definida que é notória no Congresso de Haia, não aceitando, nem para o Brasil, nem para ninguém, que possa haver nações com mais direito e nações com menos direito ante o conceito da justiça, que deve atuar segundo a moral, não segundo a geografia ou o diferente poder das esquadras - trata-se de por em segurança nossa herança e assegurar nosso direito comum a trabalhar e prosperar em paz.

- Para isto é que devem ser nossas forças eficazes; mas enquanto não se unam deliberadamente não o serão senão em grau precário. Eu penso em tudo isto como pensava meu pai; e sei que estas coisas hão de vir, conosco ou sem nós, porque não as faz nem as desfaz o capricho nem o talento de um só homem. São obra de fatores mais complexos e potentes que uma vontade, má ou boa. O que podem fazer nelas os homens, é desconhecê-las e retardá-las, se os perturba uma paixão qualquer ou um critério receoso e estreito - ou bem reconhecê-las e lhes abrir o caminho, antecipando-lhes o dia, se têm a boa sorte de interpretar a tempo e com verdade o anseio e o interesse de seus povos.

- As hegemonias, como as concebem os espíritos superficiais, nem são possíveis nem úteis para ninguém; mas isto sim... E o dia em que não haja senão um pensamento e uma ação em toda questão internacional que afete ao continente, não haverá ousadia nem arbitrariedade bastante forte para impor-nos um vexame. Quando já não seja questão de ocupar um porto, mas de bloquear todo um continente sobre dois oceanos, as coisas mudarão substancialmente, não só para a segurança, como para o prestígio e para o nível da América do Sul.

*

Tal é, expressado por seu chanceler, o pensamento do Brasil no que respeita à utilidade internacional de entendimentos explícitos como os indicados; e quanto ao interior continental não poderia ser difícil pôr à luz as vantagens que daí derivariam: desde logo, obteríamos o precioso benefício de terminar com todas estas desconfianças que a intervalos nos põem chocados, e a ninguém incomodaria então que o país que possa e queira gastar em renovar sua esquadra, ou fortificar suas costas, ou aumentar seus efetivos militares, o faça, porque tudo será para benefício geral.

Ninguém julgará então indispensável fazer gastos bélicos pela única razão de que os faça um vizinho - e ademais, eliminada a desconfiança, que nos traz sempre em pé de suscetibilidades irritáveis, poderemos chegar a acordos de ordem econômica e comercial, que hoje nem mesmo sendo razoáveis e convenientes prosperam, porque perdemos o melhor de nossa boa fé buscando a segunda intenção entre as linhas de nossos memoriais!

*

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VINHETAS FLUMINENSES - Os pequenos paraísos serranos do Rio de Janeiro - Panorama do belíssimo Alto da Boa Vista, no Morro da Tijuca
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"Penso nisto como pensava meu pai..." Na conversa do chanceler se destacou ante minha atenta observação sta frase, que não só sublinhava com o traço firme de um austero e insuspeitável sentimento filial as expressões do estadista, mas lhes imprimia o selo de uma herança moral, ao evocar a eminente memória, grata em ambas as margens do Prata, do ministro Silva Paranhos, cuja influência moderadora e cordial em horas de receio e até de ódio deixou luminosos rastros em tratados e acordos que honram as vistas diplomáticas do Brasil e pelas quais soube afrontar o hoje glorificado estadista do Império, até as tristezas da impopularidade.

Em verdade, ao chanceler atual vem em herança o amplo espírito sul-americano, o conceito elevado e eficiente das conveniências com fins de bem comum, de liberdade e de civilização. A tradição está no sangue e na mente, havendo sem dúvida ascendido a uma evidente plenitude; e ao fixar-me neste interessante fato psicológico, não pude menos que generalizá-lo, detendo a atenção no singularmente propício que o Brasil mostra ser, como meio-ambiente, para o desenvolvimento das estirpes mentais.

A escassez de renovação nos sangues originais, a falta de cruzamento com outras raças - havendo-se desenvolvido quase totalmente a população brasileira sobre a base étnica portuguesa - deixaria temer melhor, unida à ação depressiva do clima, um desenvolvimento degenerativo, diagramado em curvas descendentes.

O fato, entretanto, é bem outro: poderiam minhas investigações feitas a respeito referir-se a numerosas famílias com cinco e seis gerações brasileiras, desenvolvidas sem mescla alguma de sangue estranho ao original sangue português, e que, longe de degenerar, vieram melhorando e produzindo temperamentos de seleção; mas limitando agora a observação a esta família de Silva Paranhos, radicada na Bahia - no centro tórrido - e com quatro gerações de pura origem portuguesa, veríamos que, partindo, segundo creio, de um modesto funcionário, continua em um coronel de milícias e dá em seguida um homem superior, como foi aquele ministro Paranhos - que enobreceu a estirpe adquirindo do império a baronia e da humanidade um timbre todavia mais alto com a lei de liberdade de ventres, que virtualmente aboliu a escravatura - e em quarta evolução a genealogia ascendente culmina no atual chanceler, cujo equilíbrio mental e fisiológico se mostra, tanto no vigor juvenil com que, à sua idade, se entrega inteiro a um enorme trabalho, forçando as molas da vida, como em sua ação mental ponderada, sem vícios nem arrebatamentos, até sem impaciências - pois havendo sido já secretário de seu pai em missões de ressonância, e deputado logo, foi como cônsul para Liverpool e lá passou cerca de vinte anos, desempenhando então e depois diversos cargos e delicadas missões diplomáticas no exterior, mas sem ascender à suprema direção dos negócios exteriores até que as circunstâncias o põem em sua elevada situação.

E ele toma esse lugar, já com mais de cinqüenta anos, sem pressa, simplesmente, como quem retoma sem esforço uma tarefa familiar - resultando evidente para seu país, desde tal dia, que nasceu para aquele cargo, e que se não o tomou antes, é porque, decerto, não o havia movido até as altas honras públicas nenhuma espécie de ambição pessoal.

Isto é tão aceito ali que deu lugar ao seguinte episódio:

Logo que comecei a dar-me conta do que significava Rio Branco na opinião do Brasil - crendo que lá, como em outras partes, ninguém pensaria em felicidade maior que em ser presidente - disse em uma roda de pessoas, em cuja companhia viajava:

- Mas esse homem pode ser tudo! Seguramente que a futura presidência...

Meus novos amigos se riram, verdadeiramente divertidos com minha suposição. E um disse, resumindo o conceito geral:

- Não, senhor! Isso poderia ser um grande sonho do Brasil; mas é bem certo que não seria nunca um anseio do chanceler. Rio Branco não é mais do que é um presidente, mas é outra coisa, que talvez não seria se estivesse obrigado a gastar na política o melhor do que hoje consagra ao país. Ele não vive nem trabalha para os Estados, nem para o congresso, nem para si, nem para seus amigos, nem para nada particular - vive e trabalha para o Brasil. Por isso não faz política - porque lhe estorvaria para essa outra função, em que todo o país se gloria de vê-lo consagrado.

- Se ele fosse presidente, teria que continuar sendo também chanceler - e ainda que é homem superior a qualquer dificuldade, sofreria talvez uma das duas coisas, a que mais nos importa, porque o Brasil viveu desacreditado e hoje reclama que lhe façam seu crédito, e para isso necessita uma ação altamente imparcial e superior, que influa sobre todas. Rio Branco seria tudo o que quisesse, mas ele mesmo jamais desejará ser outra coisa; em todo caso, o único que poderia ser é não ser nada - porque assim continuaria sendo tudo.

*

Esta é, em essência, a convicção do Brasil no que respeita ao chanceler, acerca do qual faria, depois das sugestivas peculiaridades de vida e de trabalho que deixo referidas, uma série de anedotas, as mais variadas, sobre sua vida, costumes, fatos e ditos - motivo preferido dos comentários de seus compatriotas.

Mas, entre todas, nenhuma me pareceu mais adequada para acabar esta crônica que uma relativa ao esporte do barão. Seu esporte? Sim, pois, seu entretenimento das horas da meditação, a sós em seu refeitório conventual de prior dado às letras. Foi me contada por um amigo que assegura sabê-lo - e consiste em um sistema especial de caçar moscas. Caçar moscas! Nem mais nem menos.

O chanceler está abstraído - medita algum plano transcendental - imagina acaso uma fórmula nova para dar realce ao conceito do Brasil, algum modo especial de dar vida à entidade sul-americana que sonha em ver harmonizada, forte e gloriosa. De pronto, sua vista errante se fixa em um ponto: seu corpo vasto e pesado se move suavemente; levanta-se em silêncio, toma o candeeiro, sempre com sua vela acesa sobre a mesa, e desliza com doçura até aquele ponto, donde já não se apartaram seus olhos. Um passo, outro, chega ao misterioso destino; alça a vela, a inclina, cai uma gota de estearina e debaixo dela fica infalivelmente presa e fulminada uma mosca. Esse foi o único objetivo capaz de interromper o trabalho do chanceler, que ninguém se atreveria a perturbar - e tal é o esporte do barão de Rio Branco... a valer a amistosa confidência.

O amigo que me contava a anedota, dizia: "Para um generalizador como você, este detalhe oferece base a sutis induções psicológicas... Matar moscas com gotas de estearina! Bom... parece banal; mas desde logo, veja que o sistema é novo e é de um procedimento simples, sem crueldade nem perfídia; não há aí tortuosidades traiçoeiras de aranha, que pareceriam tão próprias no esporte de um chanceler! Em troca, o infalível da gota que cai, pac! prova o pulso do homem; e pode falar tanto da retidão de procedimentos como da clareza das idéias, pois se o chanceler caça suas moscas sem teias de aranha, diz seus propósitos sem hipocrisia!"

Vale a humorística indução, ainda que seja só como um espiritual mot de la fin; mas a última parte, é-me grato reconhecê-la exata. A política exterior do Brasil, pelo que ouvi e creio poder dizer, está informada em uma claridade de intenções que deve fazer escola na América do Sul - em cuja diplomacia, como na rio-platense dos grandes tempos, a palavra humana tende a abandonar o ofício rasteiro e miserável de encobrir as idéias, para exercer a função augusta e maternal de pari-las desnudas, como Verdades ou como Deusas!


FIGURAS DA AMÉRICA DO SUL - O barão de Rio Branco
Imagem e legenda publicadas na página 162-A

[*] Em minha segunda visita ao Brasil, tive o prazer de satisfazer por completo minha curiosidade acerca da vida e hábitos de trabalho do barão de Rio Branco, graças à iniciativa de sua gentil cortesia. Depois da amável honra de um almoço em sua residência de Petrópolis, permitiu-me ver sua Sancta-Sanctorum das grandes meditações e do trabalho metódico, dizendo-me com sua habilidade de homem do mundo que, já que o havia eu pintado no caos de sua sala de trabalho no Itamarati, queria que visse que era também homem ordenado e capaz de minuciosidades burguesas...

Na realidade, o escritório de sua residência – em cujos detalhes se notam os costumes e gostos de um grande senhor – não o reflete tanto como o outro, senão depois que se examina as estantes, os tesouros bibliográficos, os códices valiosíssimos que ali guarda o barão, como raros manjares para seu exigente paladar de erudito.

Um manuscrito sobre a batalha de Ituzaingó, escrito e preciosamente ilustrado por um oficial alemão a serviço do Império, me fez pensar nas perversas delícias de um saque. Mas o que mais chamou minha atenção, mostrando-me uma nova face do trabalho mental do barão, foi sua extraordinária faculdade de colecionador de documentos, seu gosto e sua destreza de papelista, em cuja tarefa se requer uma dose de paciência elevada à virtude, que se diria incompatível com as grandes sínteses mentais que ocupam de preferência o pensamento do chanceler.

A história das questões de limites concluídas sob sua direção está feita, virtualmente, na ordenada acumulação de documentos encadernados em enormes in-folios cuidadosamente numerados e catalogados. A Questão de Missões ocupa dez ou doze volumes que encheriam um carro; A Questão do Amapá, que é todavia mais ampla, a do Acre e todas as demais, estão ordenadas do mesmo modo.

Abriu o barão um tomo, ao acaso, de A Questão de Missões e observei com viva curiosidade a diversidade de documentos ali arquivados, com uma lógica que à primeira vista não se percebe, mas que um breve exame põe em evidência, notando-se, ao lado de um telegrama cifrado, o menu de um banquete ou um recorte de jornal – junto a um documento secular que trouxera luz inesperada ao debate, o retrato de uma dama da diplomacia que tivera algo que ver em certas tramitações delicadas.

Tudo isso tinha entre si uma conexão íntima – uma relação de causa e efeito... Parecia que os fios com que fora tecida a sólida alegação pericial deixavam ver aqui e acolá algumas de suas pontas, ao ser aberto bruscamente o volume que os guardava...

O barão fez ali, naquela sala de homem de letras, um substrato de seu imenso labor, acumulando de passagem materiais para trabalhos históricos sobre o Brasil, nos quais pensa por vez com delícia intelectual e com melancolia, pois parece temer que a diplomacia, com suas exigências demasiadas, ocupe e inunde os aprazíveis recintos em que medita da expansão e espaço a seus caros projetos de historiador.

Sem dúvida alguma, a história da diplomacia brasileira e a história da guerra do Paraguai – tema este que muito ama e anseia poder abordar o barão – não encontrariam numen (N.E.: expressão advinda do latim: deidade dotada de um poder misterioso e fascinador, inspiração do artista ou escritor) mais forte, mais informado, mais autorizado, mais capaz de imparcialidade e de serenidade filosófica, que o do filho e companheiro do pacificador do Paraguai, e ator por sua vez, conspícuo e vitorioso, nas mais transcendentais jornadas diplomáticas de sua pátria.


CIVILIZADORES DO BRASIL - Sr. Silva Paranhos, visconde de Rio Branco - Fundador de sua estirpe. Autor da Lei do Ventre Livre. Diplomata ilustre, grato no Prata
Imagem e legenda publicadas na página 168-A