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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - PERSONAGENS
Tipos curiosos (17)

Este relato de Alcides Abrantes foi publicado pelo falecido jornalista Olao Rodrigues no seu Almanaque de Santos - 1971 (editado por Ariel Editora e Publicidade, em Santos/SP, com impressão por W. Roth & Cia. Ltda., da capital paulista), páginas 105 a 107:

Seu Perdiz

Alcides Abrantes

Quando aquele rapazinho espanhol, de 16 anos de idade, nascido em Lamas, Pontevedra, chegou a Santos, esta apresentava aspectos completamente diferentes dos atuais.

A Rua do Comércio, por exemplo, chamava-se "Santo Antonio"; o Largo do Rosário (Praça Rui Barbosa) era insignificante cantinho meio triangular, por onde circulavam com estrépitos de ferraduras sonolentos bondinhos puxados a cavalo, e a febre amarela ainda dizimava gene, mas tão nacionalista a danada, que sua preferência recaía quase sempre nos estrangeiros.

Desconheciam-se o Gonzaga e o Boqueirão como bairros residenciais, mas aí já moravam pessoas em estiradas chácaras com cambucás, goiabeiras e outras fruteiras, apreciadoras dos ares lavados da Cidade, ao invés das sufocantes vielas do Centro. Só mais tarde é que viria o intendente Malta Cardoso rasgar praças e outros logradouros públicos, de modo geral arborizados, ao contrário dos tempos atuais. Júlio Conceição foi um daqueles moradores, muitos se lembram ainda de sua chácara existente alguns anos atrás no final da Conselheiro Nébias, lado esquerdo de quem vai rumo à praia. O famoso advogado santista, espírito irônico, Martim Francisco, foi outro.

À tardinha, essa gente, quase toda de bom nível social, regressava de seus escritórios à Praia da Barra (Boqueirão hoje) e adjacências, nos maneirosos bondinhos, ainda com largo tempo para um gostoso bate-papo com os habituais passageiros ou contemplar a paisagem amaciada pelas cores do crepúsculo.

Na construção do porto - Na cidadezinha pacata, um acontecimento despertava a atenção de todos. Construía-se mais um trecho do porto, que já contava com faixa acostável da Alfândega até o Valongo. Desapareceram os primitivos trapiches e pontilhões perigosos e ineficientes, até núcleo de contrabando, como se chegou a comentar, então, a respeito de certa empresa estrangeira.

O rapaz não hesitou, engajou-se nos trabalhos da construção do armazém 6, início de novo segmento. O tempo foi passando, a dedicação e o dinamismo do jovem foram recompensados com o posto de encarregado em determinado setor.

O Brasil acabava de sair de uma monarquia, procurando afirmar-se como nação republicana. Havia movimentos reveladores de insatisfação, e Santos, apesar de centro urbano, talvez ainda revelasse algumas semelhanças com o lugar de origem, já que o País era ainda essencialmente agrícola, exportador de café ou matérias-primas.

Cenas e fatos da época - Na Rua Marquês do Herval e na Travessa Maria Loureiro moravam muitos carroceiros, classe numerosa na época, pois o transporte do café exportado pelo porto efetuava-se em carroças ou carretões, nome de algumas delas. Parece-me que o Bairro Chinês também era um dos locais preferidos por essa categoria. Gente boa e trabalhadora, mas de sangue caliente, principalmente durante as greves. A cavalaria, vez ou outra, incursionava pelo local, distribuindo com generosidade golpes de chanfalho. A reação não se fazia demorar por parte dos moradores, que chegavam a estender, sob a proteção noturna, fios para a derrubada dos cavalarianos.

Um desses carroceiros, Bolanho, adquiriu triste fama com façanhas sanguinárias, sempre se safando com a proteção do proprietário de jornal Isidoro Campos, que o utilizava como cabo eleitoral. Tantas fez o facínora, que um dia, depois de ter matado um membro da colônia síria, temeroso de vingança por parte desta, safou-se a muito custo, embarcando para a Europa a bordo de um navio, na Fortaleza da Barra, com o auxílio daquele jornalista. Não chegou a viver muito na Espanha, de onde era natural: foi anavalhado por adversário em rixa de baile.

Era comum, por esses dias, encontrar-se Quintino de Lacerda, o famoso líder dos negros do quilombo do Jabaquara, passeando a cavalo em plena via pública. As campanhas eleitorais entre o dr. Manuel Tourinho e Cesário Bastos, dois apaixonados adversários, pegavam fogo, e anos após sucederia o mesmo, embora em doses menores, com a jornada civilista de Rui Barbosa contra Hermes da Fonseca.

Outro fato, a vinda do almirante Alexandrino de Alencar a Santos, para participar da missa campal na Praça da República em homenagem aos mortos do encouraçado Aquidabã, destruído por explosão na baía de Jacuacanga em Niterói, marcando assim a maior tragédia naval da marinha brasileira.

Tudo isso Maximino Perdiz Pinheiro vira ou de tudo isso tomara conhecimento. Já não era mais estrangeiro, mas um santista integrado, ainda que como testemunha distante. O trabalho não lhe deixava tempo para mais nada na história da Cidade, absorvido em sua alma, principalmente depois que aqui constituiu família.

Curiosidades no trabalho - Por ocasião da derrubada do velho prédio da Alfândega, no mesmo lugar do atual, cujo erguimento se deu com auxílio humano e técnico da Docas, Seu Perdiz encontrou moedas datadas de 1756, com jota maiúsculo no meio, talvez designativo do monarca português D. José I. Depararam, também, com esqueletos, tendo presos aos ossos do pescoço um rosário.

Não se soube, pelo menos que fosse do conhecimento do serviçal portuário, a causa desses encontros. Mas não nos esqueçamos de que no local ou pelo menos nas redondezas houve hospital militar e até fortaleza, isto é, o Forte de Monte Serrate, onde é hoje exatamente a antiga Guardamoria.

Quando a concessionária do porto inaugurou em 1918 o frigorífico, o mesmo dos dias presentes (N.E.: em 1971. Mais tarde, seria desativado e em seguida transformado em terminal marítimo de passageiros dos navios transatlânticos), destinado à estocagem da carne a ser consumida pelos aliados da Primeira Guerra Mundial. Seu Maximino Perdiz Pinheiro é quem descerrava as portas para a ilustre caravana de visitantes, com o próprio presidente Wenceslau Brás à frente.

Seu Perdiz - O que nos obrigou a trazer a esta colaboração a figura humilde e rica ao mesmo tempo do velho serviçal da Cia. Docas não foram tanto os fatos acima narrados, que constituem ponderável parcela da história santista. Ele viveu-os como tantos da época viveram e nós estamos vivendo presentemente, mas foram, sobretudo, as marcas características do homem, principalmente do funcionário.

O velho Perdiz trabalhou na empresa portuária durante 58 anos, deixando uma lenda de capacidade, não daquela oriunda de conhecimentos técnicos, mas do largo tirocínio e, principalmente, de qualidades intrínsecas.

Dono de boa memória e de um sexto sentido especial, que o fazia tomar decisões rápidas, tornaram-se conhecidas algumas de suas tiradas funcionais. Chegava-se até a achar graça nisso, porque embaixo daquela singeleza rude se escondia uma inteligência atilada.

Falecido com avançada idade, já aposentado, são bem poucas as pessoas, pelo menos as mais antigas, que nunca ouviram falar de um caso a respeito do lendário mestre de obras. E essa lenda, são bem poucos os que a alcançam.


Seu Perdiz
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