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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - HOSPITAIS - BIBLIOTECA
Hospital Anchieta (4-f36)

 

Clique na imagem para voltar ao índice do livroEste hospital santista foi o centro de um importante debate psiquiátrico, entre os que defendem a internação dos doentes mentais e os favoráveis à ressocialização dos mesmos, que travaram a chamada luta antimanicomial. Desse debate resultou uma intervenção pioneira no setor, acompanhada por especialistas de todo o mundo.

Um livro de 175 páginas contando essa história (com arte-final de Nicholas Vannuchi, e impresso na Cegraf Gráfica e Editora Ltda.-ME) foi lançado em 2004 pelo jornalista e historiador Paulo Matos, que em 13 de outubro de 2009 autorizou Novo Milênio a transcrevê-lo integralmente, a partir de seus originais digitados:

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Na Santos de Telma, a vitória dos mentaleiros

ANCHIETA, 15 ANOS (1989-2004)

A quarta revolução mundial da Psiquiatria

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NA TEORIA DE FOUCAULT, O ESPÍRITO DA

 ABERTURA PIONEIRA NO MANICÔMIO SANTISTA

 

No prefácio que o  psiquiatra Michel Foucault escreveu junto com Gilles Deleuze no livro de Felix Guattari (o psiquiatra que explica a Reforma Psiquiátrica francesa em seu livro A Revolução molecular), denominado O anti-édipo, introdução à vida não-fascista, editado em 1996 pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade, Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Clinica da PUC-SP, o autor formula um pequeno guia da vida cotidiana, em que afirma, com precisão, alguns princípios inerentes ao trabalho desenvolvido na intervenção do Anchieta em Santos, coordenado pelo psiquiatra Roberto Tykanori Kinoshita. Escreve Foucault na introdução do trabalho do reformador da Psiquiatria francesa em 1960 no Hospice de La Borde:

 

·     Não imaginem que é preciso ser triste para ser militante, mesmo que se o que se combate é abominável;

·     É a ligação do desejo com a realidade que possui uma força revolucionária;

·     não exijam da política que ela restabeleça os "direitos" do indivíduo, ele é um produto do poder e o que é preciso é desindividualizar pela multiplicação e pelo deslocamento, o agenciamento de combinações diferentes;

·     O grupo não deve ser o liame orgânico que une os indivíduos hierarquizados, mas um constante gerador de desindividualização;

·     E finalmente, não se apaixonem pelo poder.

 

Cada um destes princípios está inscrito na história da intervenção, que atuou (com alegria, elemento essencial) para dissolver o manicômio, não apenas restabelecer direitos dos pacientes. Foi coletivizando, nas eufóricas festas e eficientes cooperativas, que se criaram meios para que aqueles seres assumissem sua individualidade. E não houve paixão pelo poder na constituição de um novo manicômio, um novo sistema melhorado de contenção dos pacientes, que, por ironia, apenas reduzisse a voltagem dos eletrochoques e ampliasse a alimentação e a limpeza, oferecendo camas com travesseiros e cobertas que não haviam antes. Era preciso desconstruir.

 

Era preciso instituir o não-poder, para restabelecer o princípio humano daqueles seres. E extinguir a instituição.

 

"Todos sabem que existem cidades que foram construídas para serem destruídas", inicia uma matéria do D.O. Urgente de 14 de agosto de 1989, 3 meses após a intervenção, entrevistando Tykanori. A frase, tirada de uma canção do cantor e compositor Caetano Veloso, conta Roberto Tykanori Kinoshita, então com 30 anos, sobre suas concepções a respeito do Anchieta, para o que foi nomeado interventor – reproduzindo e ampliando o que fizera o psiquiatra Franco Basaglia em Trieste – quando os próprios pacientes derrubaram os muros com picaretas.

 

Antes de ser nomeado para coordenar o Programa de Saúde Mental de Bauru, interior do Estado de São Paulo - de onde veio para trabalhar no Anchieta -, Tykanori trabalhou no Ambulatório de Saúde Mental de Vila Brasilândia, em São Paulo, Capital, na coordenação do ERSA/7 – Escritório Regional de Saúde do Governo estadual -, e também no Posto de Emergência Psiquiátrica de Ferraz de Vasconcelos, a primeira experiência do gênero em um hospital geral.

 
Tikanory, estagiário de Basaglia

 

Em 1982, Tykanori fez um ano de estágio no Centro Psiquiátrico Regional de Trieste, Itália, onde manteve contato com as teses da Psiquiatria Democrática idealizadas por Franco Basaglia, que morreu em 1980. Que defendia, numa análise simples, não só a humanização do tratamento do doente mental, mas também a desativação progressiva dos hospitais psiquiátricos e a integração dos ex-internos ao contexto do resto da sociedade.

 

Expondo as linhas gerais do programa que prevê a desospitalização progressiva dos pacientes, ele analisa o programa santista, "o primeiro em termos de Brasil", classifica, checando na prática o funcionamento de um hospital. Organizando e dissolvendo o manicômio, trazendo cidadania e dignidade e sua dissolução para progredir rumo a um atendimento descentralizado.

 

Tyka diz que 90% das verbas do Inamps destinadas à Saúde Mental são utilizadas para a compra de leitos psiquiátricos em instituições privadas. "Hoje, diz Tykanori, existem 40 mil vagas em São Paulo, metade disso seria suficiente", considera. "A média de permanência é de 5 anos e há, logicamente, interesse em reter por mais tempo possível para dar lucro, sem quaisquer resultados positivos para a recuperação do cidadão que ali é confinado".

 

"É preciso reconstruir a história pessoal dos pacientes, pois o arquivo do Anchieta está entulhado de envelopes empoeirados com a ficha dos pacientes" - explica, sem a história clínica dos indivíduos e os processos aplicados, apenas a doença em que foram rotulados à época da internação. "Assumimos o hospital com 76 funcionários, hoje estamos com 180, porque prioritariamente, precisávamos implantar uma filosofia de atendimento humanitário, mesmo desconstruindo o hospital, com respeito aos direitos humanos", explica o psiquiatra.

 

Como medidas, ele fala sobre a instalação de uma casa preparando as pessoas para viver lá fora: reintegrar, recuperar, reviver. Redescobrir o que se era antes, o que se é agora e o que se será depois. O Anchieta agora tem uma casa dentro dos muros, preparando para viver lá fora. Diz a reportagem: quem vê o Anchieta agora, acompanhando o processo de intervenção desde seu início, certamente tomará um choque, não um eletrochoque, com os cenários reformados e transformado, portas trancadas agora abertas, pacientes que recebem visitas de parentes e ex-internos. Guarda-roupa, televisão, fogão, tudo de um lar. É o novo Anchieta, se preparando para não mais existir.

 

O pioneirismo do trabalho executado no Anchieta

 

Tykanori explica o pioneirismo nacional e mundial do processo executado no Anchieta, da substituição dos métodos de tratamento, reuniões de grupos, encaminhando os pacientes para suas profissões, "devolvendo-os" para a sociedade. "Há vários pintores, pedreiros, cozinheiros, garçons etc., entre os internados", diz Tykanori, "em condições de suprir a sua total subsistência,  cabendo ao hospital apenas fornecer o apoio médico necessário a essas pessoas". "Aliás, segue, não se deve nem falar no hospital como ponto de apoio, já que nossa intenção é descentralizar o atendimento, através de ambulatórios descentralizados por toda a cidade".

 

Ele conta sobre as festas, passeios e atividades esportivas mostrando ao paciente o que existe lá fora, em passeios ao Orquidário, à praia, concertos de música, cinema. "Estamos apenas começando, começando", diz, observando ser esta uma parte "indissociável" do programa.

 

"A discussão da estrutura dos manicômios ficou restrita a um debate teórico", considera o psiquiatra, que expõe ser em Santos que os princípios debatidos desde as décadas de 60 e 70 no mundo se concretizaram. "No início dos anos 80 é que os técnicos defensores de uma nova abordagem para o tratamento da doença mental assumiram cargos importantes em alguns dos governos estaduais eleitos em 1982 - e se registraram alguns avanços concretos", explica.

 

"Houve um avanço da psiquiatria comunitária e preventiva, com a instalação em São Paulo, especificamente, de redes de ambulatórios. Mas a discussão se restringia a um âmbito interno. Nunca se chegou a interferir direta e profundamente na estrutura de um hospital, como fizemos em Santos", finaliza.

 

Disse Kant que nem todos os homens são felizes, mas todos tem o direito de sê-lo. A altitude política de resgatar a cidadania e a felicidade de um contingente marginalizado e oprimido, tomado no episódio da intervenção no Anchieta, fez parte de uma ampla proposta de regeneração social, que agiu redimensionando prioridades, invertendo demandas de recursos públicos, modificando o cenário da cidade.

 

Alguns dos objetivos foram alcançados, outros adiados, mas todos perseguidos no objetivo da justiça comum. Foi o tempo novo de tratamentos especializados, internação, passeios, terapia ocupacional, laços com a família, atividades culturais ou alta – cada caso era um caso, como sempre deveria ter sido. Mas era a primeira vez que os pacientes eram tratados individualmente.

 

Disse uma vez o psiquiatra Tykanori que no Anchieta não se inventaram coisas novas - apenas se seguiram os ensinamentos básicos da Psiquiatria. Foi a vontade política de um conjunto que fez possível esta reversão rumo à regeneração humanitária, baseado na ética, palavra que, originária do grego clássico, significa costume. É o conjunto dos costumes, dos nossos costumes, que impede que façamos ou permitamos crueldades contra nosso semelhante.

 

Foi assim com o Anchieta, ética da cidadania. Pelo seu significado, no contexto da luta política, este esforço contribuiu para erradicar as mazelas de uma sociedade historicamente baseada na força e no medo, como métodos de dominação.

 

Outras lutas e vitórias viriam, derrotando resquícios da mentalidade escravagista imposta desde a colonização, recolocando o homem no centro do universo: "Gente é feita prá brilhar", se escrevia na época. Assim, esta história não poderia se circunscrever aos profissionais do ramo ou a uma elite: ela exige ser transmitida para o conjunto da população, dando vez à compreensão de seu sentido. E é o que tentamos fazer, década e meia após esta (mudança da) história.