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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - QUILOMBOS (5)
Os novos abolicionistas de 1880/81

Movimento abolicionista em Santos ganha novas forças
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Muito ainda precisa ser pesquisado sobre a história da escravatura negra no Brasil e particularmente em Santos. Grandes nomes do Abolicionismo militaram em terras santistas, como foi destacado por Francisco Martins dos Santos, em sua História de Santos, publicada em 1937 (segunda edição em 1986 pela Editora Caudex Ltda., de São Vicente, junto com a Poliantéia Santista do pesquisador Fernando Martins Lichti). Esse trabalho continua sendo apresentado a seguir:
 
A campanha da Abolição

[...]

Entre 1880 e 1881 apareciam as primeiras forças jovens, reforçando ou substituindo as velhas, reavivando o movimento e acentuando a vitória.

Um conspirador destemeroso surgira entre os novos elementos, como uma das melhores esperanças na luta final contra o cativeiro; era Américo Martins dos Santos (a nossa suspeição é nimiamente circunstancial e está perfeitamente ressalvada pelo testemunho da época, pelo depoimento pessoal do citado e pela verdade dos fatos). Moço fortíssimo, de 28 anos, ex-cadete da Escola Militar, descendente de importante e tradicional família santista, irmão mais jovem de um dos iniciadores do movimento - Francisco Martins dos Santos - e decidido a todas as situações, integrou-se Américo Martins na corrente de que participavam todos os seus, congregando desde logo os seus companheiros e amigos, principalmente Ricardo Pinto de Oliveira, Geraldo Leite da Fonseca, Guilherme Souto e mais alguns, para um movimento mais acentuado, de efeitos mais profundos e palpáveis.

Marcaria 1881 o aparecimento da fortíssima e numerosa legião de verdadeiros combatentes da mocidade abolicionista. É aí que se trama a fundação e criação do Jabaquara. Por iniciativa de Américo Martins e Xavier Pinheiro, realizou-se em fins daquele ano uma grande reunião em casa de Francisco Martins dos Santos, na antiga Quadra Mauá (depois Praça José Bonifácio "o Moço"), uma chácara antiga, considerada "o seio de Abraão" dos recém-chegados, sem emprego e sem dinheiro para pagamento de hospedagens, e nessa reunião tornaram parte: Xavier Pinheiro, Américo Martins e seu irmão Francisco, Guilherme Souto, Geraldo Leite, Júlio Backeuser, Santos Pereira (o Santos Garrafão), Ricardo Pinto de Oliveira, Júlio Maurício, Constantino de Mesquita, Joaquim Fernandes Pacheco, Teófilo de Arruda Mendes, José Ignácio da Glória, Afonso Veridiano, Antonio Augusto Bastos, Luiz de Matos e outros entusiastas do movimento.

Tornou-se célebre essa reunião, porque nela foi resolvida a criação de um reduto, espécie de quilombo, onde se reunissem todos os escravos subtraídos à escravidão, por grosso, antes de se cogitar dos seus empregos. Ali seria o refúgio geral, defendido e armado, ao invés de se ocultarem os fujões nos quintais e porões das casas amigas, com inúmeros e compreensíveis inconvenientes.

Feita a coleta inicial entre os participantes da reunião, completou-se o total ali apurado com as importâncias subscritas pelos demais adeptos que o desejaram, incluindo firmas do alto comércio, e, em seguida, eliminado o óbice financeiro, procedeu-se à escolha do ponto onde deveria ser fundado e estabelecido o reduto, que tão respeitável lugar ocuparia na história da Abolição paulista e brasileira.

Atrás das terras de Matias Costa e Benjamin Fontana, ainda em estado primitivo, cobertas de matos e cortadas de riachos, havia uma extensão de várzea trançada apenas de lírios, tibuquinas, cambarás e outras arbustivas comuns, para onde se ia ainda pelo caminho que existia ao lado da Santa Casa da Misericórdia, hoje demolida, subindo a lombada do morro, bifurcado no alto, seguindo um braço para a casa de Benjamin Fontana e para o sítio de Geraldo Leite da Fonseca [36], descendo o outro para o Jabaquara. Era o único caminho para lá.

Naquele ponto seriam, em breve, recolhidos todos os negros até então ocultos nas casas particulares e os outros que apareciam de fora, até formarem um núcleo numeroso e respeitável. Precisavam porém de um chefe, à altura da responsabilidade, que os mantivesse em ordem e disciplina e os dominasse em seus ímpetos naturais, porque chegava a fase heróica do movimento e tornava-se necessária uma ação planejada, conjunta e definitiva, sem preocupações dessa ordem.

Foi Américo Martins quem lembrou um nome: Quintino de Lacerda! E quem era esse Quintino? Muitos o conheciam e todos apoiaram a lembrança. Américo Martins não o conhecia apenas da casa dos republicanos Antonio e Joaquim de Lacerda Franco [37]: era também seu compadre, pois lhe batizara um filho havia alguns anos, e assim prontificou-se a ir pedir ao amigo Lacerda Franco o concurso do seu ex-cozinheiro e homem de confiança, que continuava a viver em sua casa.

Quintino, por sua vez, aceitou o convite, e já no dia seguinte se apresentava no Jabaquara, orgulhoso de sua nova missão e satisfeito por ter de enfrentar perigos, como era de sua índole, empossando-se com alguma solenidade, e diante dos pretos reunidos, comandante do reduto livre, que a própria polícia, sempre chefiada por maçons e abolicionistas, apoiava secretamente.

Num abrir e fechar de olhos, estavam armados duzentos homens no quilombo santista [38]. Ao cabo de um ano, em 1882, já contava o Jabaquara mais de quinhentos indivíduos: homens, mulheres, moços, velhos e crianças, vigiados por atalaias do morro, onde se levantava o posto avançado e sempre alerta de Geraldo Leite, o ardoroso despachante da Alfândega local.

Os generais eram os chefes do movimento, mas o comandante do reduto era Quintino de Lacerda, o fortíssimo e bravo negro sergipano. As reuniões mais secretas a respeito do quilombo santista eram realizadas ora na fábrica de cal de Xavier Pinheiro, no extremo do Paquetá, mais ou menos próxima do atual escritório da Companhia Docas, ora na Farmácia de Teófilo Mendes, ora na chácara de Geraldo Leite, do alto do morro, e algumas vezes na casa de Quintino de Lacerda, a cavaleiro do Jabaquara, na encosta Sul do Monte Serrate, de onde o sergipano vigiava o seu quilombo a salvo de surpresas.

A 24 de agosto de 1882, uma grave notícia abalava os arraiais abolicionistas, numa repetição da fatalidade de 1874: morrera Luiz Gama, o grande negro, o sucessor de Xavier da Silveira, o condutor supremo do movimento paulista. Ficaria faltando desde então o chefe agitador, a força realizadora do advogado paladino, mas estava escrito que assim não seria, e aí - como um milagre de determinação da Providência - surgiu a figura de Antonio Bento (Antonio Bento de Souza e Castro), advogado também, ex-conservador, ex-promotor público e juiz municipal em São Paulo.

Antonio Bento convertera-se, inesperadamente, em favor da campanha. Acompanhara ele, silenciosamente, no dia 25 de agosto, o enterro do colega, mas, no instante da despedida, quando o sacerdote murmurava as últimas palavras do "Requiescat" perante a multidão presente à necrópole, Antonio Bento sentiu, no fundo da alma, viva revolta contra a sua própria atitude; tocou-se da chama divina, ouviu a voz daqueles milhares de infelizes que ele mesmo atacara na promotoria, que ajudara a prender ou a voltar para o ergástulo, ou que condenara como juiz, e cujo sangue empapava as terras generosas de São Paulo, enchendo de horror todos os recantos da Província, onde o "bacalhau", o "viramundo" e a "gargalheira" eram os símbolos máximos da perversidade humana na exploração dos semelhantes.

Compreendeu num segundo o que não compreendera durante anos, o heroísmo daquele homem que se findara assim, sem ter quem continuasse a sua obra, deixando uma raça inteira na orfandade, e aí, ante o espanto dos circunstantes, estendeu as mãos sobre o corpo do apóstolo negro, jurando solenemente, em voz alta, que "a campanha abolicionista deveria prosseguir até a vitória final; que ela não podia findar com aquela morte, e que, dali por diante, ele, Antonio Bento de Souza e Castro, seria o seu porta-bandeira" [39].

Santos inteira exultou com a notícia sobre o novo chefe da ação, e não se enganou, porque, desde aí, a vitória pronunciou-se cada vez mais nítida, levada pela mão firme, segura, tenaz, do seu terceiro chefe provincial.

Tempos depois, Antonio Bento visitava a cidade de Santos, percorrendo as casas dos chefes locais e o reduto fortificado do Jabaquara, convencendo-se, então, de que "se achava diante do ponto alto e confiante da campanha" [40].

Combinou-se, nesta ocasião, que, oportunamente, alguns homens de Quintino de Lacerda fossem acampar na raiz da serra, junto a Cubatão, e no alto, perto de São Bernardo, junto à antiga fazenda do "Ponto Alto", no lugar chamado Zanzalá, a fim de receber os negros fugitivos através das matas e disputar, se tanto fosse preciso, aos capitães-do-mato, a posse dos seus perseguidos. Tal providência visava a completar o trabalho dos "caifazes" do próprio Antonio Bento, que, conseguindo a fuga em massa das fazendas do interior, encaminhavam os fugitivos para a Serra do Mar, ao ponto onde os guias valentes de Santos deviam conduzi-los a salvo para a liberdade do Jabaquara.

Quintino exultou com a perspectiva de luta, e, algumas semanas depois, já seguia ele, pelas primeiras vezes, com um grupo regular de negros decididos, para os pontos determinados da serra de Cubatão, deixando em Santos a outra parte da gente necessária à guarda do reduto. Daí, pelo tempo adiante, surgia de vez em vez, pela estrada ou em canoas pelo lagamar de Caneú, uma escolta do chefe negro, trazendo dez, vinte e até mais escravos famintos e seminus, recebidos junto à raiz da serra ou junto às matas do Zanzalá. Contava-se, então, a respeito de Quintino, várias e verdadeiras façanhas, que ele somente confirmava com um riso rasgado e sem palavras e ainda desculpando-se de fazer tão pouco. Em suas saídas, Pai Felipe, o rei negro, experiente e ainda válido para as lutas, fazia-lhe as vezes no quilombo santista.

Quadro pintado em 1922 por Benedito Calixto mostra como seria Cubatão em 1826,
vendo-se a ponte coberta
Tela conservada no Museu Paulista, em São Paulo/SP

Quando começou a descida maior de escravos de serra-acima, o governo mandava, vez ou outra, guarnecer com escolta a ponte do Casqueiro, impedindo ou tentando impedir o caminho, mas nem sempre os soldados se desincumbiam de sua missão, porque muitos dos cabos e sargentos destacados para tal serviço fingiam não ver os fugitivos, desculpando assim seu ato amigo e disfarçadamente abolicionista. De outras vezes, avisados a tempo, os homens desciam da serra, embarcavam em canoas em Cubatão, vindo ter a Santos por água, contornando a dificuldade.

Um dos poucos autores de Santos que escreveram sobre a Abolição santista [41] refere uma passagem característica da campanha, em que figuravam, como personagens principais, um sargento mandado a guarnecer a famosa ponte contra a passagem dos fujões do planalto e o negro Adão. "Pai Adão", como o chamaram sempre nos círculos do Jabaquara, que foi no refúgio santista um grande assistente de Quintino de Lacerda, na chefia das quilombadas. Essa passagem ele a termina com as seguintes descrições:

"Depois de longos dias de penosa marcha por péssimos e intérminos caminhos, homens, mulheres, velhos e crianças, famintos, cansados, enfraquecidos, esfarrapados, esses míseros componentes da mísera caravana, descida a serra de Paranapiacaba, tendo à frente o Adão, qual outro Moisés, caminhavam da Ponte do Casqueiro, braço de mar que precisavam atravessar para chegar a Santos, a cidade abolicionista por excelência, e daí ao Jabaquara, bairro da mesma cidade, refúgio de fugitivos, onde descansariam, para depois tomar cada um o seu rumo.

"Ora, a ponte estava guardada por uma força da polícia, com ordens terminantes para os não deixar passar, para os prender mesmo e os recambiar para os ergástulos dos fazendeiros.

"Comandava a força um ex-sargento do Exército, correto e bravo militar [42].

"Disfarçados em pescadores, havia ali, no rio Casqueiro, gente vinda de Santos em uma flotilha abolicionista, composta de embarcações miúdas, de diversas espécies, gente pronta para oferecer seus serviços aos pacíficos retirantes.

"O comandante dos soldados deixou que os negros se aproximassem da ponte. Então, a toque de corneta, formou a tropa, fez calar baionetas e bradou forte aos tímidos e apavorados fugitivos:

"- 'Façam alto! Porque por esta ponte não passa nenhum negro fugido! As ordens que tenho serão cumpridas!...'

"O Adão julgou tudo perdido... Notou, todavia, que o comandante continuou a falar, de modo estranho, como quem falava consigo mesmo, mas de maneira a não poder ser ouvido pelos seus comandados e por toda gente, dizendo: '- Ali no rio estão muitos botes e canoas, nos quais pode passar todo mundo que quiser'. O resto não é preciso ser narrado.

"De fato, pela ponte não passara ninguém, conforme ordem recebida pelo sargento: passaram todos por baixo dela, e nessa mesma noite o reduto livre de Jabaquara contava mais duzentos ou trezentos negros arrancados ao eito.

"E cenas como esta eram comuns então."

Outro autor doméstico que depôs larga e verificamente sobre o assunto, pois que vivera a mesma época e os mesmos fatos, convivendo com as principais figuras do movimento, foi Carlos Victorino, em suas memórias, que reproduzimos em diversos trechos [43]:

"Num dos recantos da Vila Matias existia o 'quilombo' chefiado por Pai Felipe, um preto já velho, mas de um tino aguçado, comandando com muita prudência o 'seu povo'. Nesse 'quilombo', embrenhado numa porção de mato e habilmente coberto de vistas perseguidoras, fizera Felipe o acampamento de sua gente que trabalhava no corte de madeira para lenha e construção, e na indústria de chapéus de palha.

"Pai Felipe, aos domingos, franqueava o seu 'quilombo' aos rapazes e homens conhecidos como abolicionistas, tratando-os com esmerada cortesia e contando das fazendas coisas do arco da velha, coisas de fazer arrepiar os cabelos!

"Enquanto ele fazia narrações, a 'sua gente' dançava o samba no terreiro, ao som do 'tambaque', pandeiro e chocalho, a cuja cadência, mulatinhas ainda novas e crioulos robustos, bamboleavam o corpo, meneavam as cadeiras, picavam com o pé, fazendo um círculo vagaroso até encontrarem-se os pares que se esbarravam numa proposital umbigada certeira, cheia, fazendo o corpo dar meia volta.

"Esta dança selvagem era acompanhada de cânticos nos quais a última sílaba da rima prolongava-se muito, repercutindo nas matas.

"Parava de súbito o 'tambaque', cessava a dança e, com permissão de Pai Felipe, era distribuído o 'quentão'. Descansavam um momento para começar a dança, com os mesmos jogos, com as mesmas cantigas, prolongando-se este divertimento até a noite, mormente se havia luar.

"Então era sublime quando as pessoas, que procuravam a distração naquele ponto da cidade, ouviam, logo ao entrar na vila, o eco sonoro dessas cantigas, vindo do fundo das matas, semelhando o gemido duma dor que mais tarde se reverteria em júbilo, pois tudo isso, toda essa agitação em prol dos oprimidos, não era mais que o labor de um parto que deveria dar à luz a Lei Áurea, entregando ao Brasil não um ente, mas todos os entes completamente libertos e que, até o dia 12 de maio de 1888, estorciam-se na opressão terrível da escravidão.

"Não era só na Vila Matias que existiam refugiados, esses homens escravos. Numa dependência do Monte Serrate, tínhamos o Jabaquara, lugar protegido por Quintino de Lacerda, que também fora escravo e, agora liberto, dava conforto àqueles que eram ainda o que ele fora em passados tempos [44].

"Pois bem: Pai Felipe, em seu 'quilombo'; Quintino, no Jabaquara; e Santos Pereira, na cidade, eram os baluartes protetores dos foragidos das violências do tronco e outros instrumentos de martírio usados nas fazendas de café [45].

"Por sua vez, esses homens tinham ao seu lado a proteção de Santos em peso, que não se cansava de promover tudo quanto fosse em proveito da propaganda abolicionista; tanto que altos personagens do abolicionismo, vendo na terra dos Andradas o acolhimento que deram à causa, protegiam os santenses, como José do Patrocínio, que honra Santos com a sua visita, realizando no Teatro Guarani uma conferência, na qual distribuiu a diversos escravos as cartas de liberdade, e isso debaixo de uma das mais retumbantes ovações que já se presenciou, tal era o entusiasmo por tão sublime causa, e a admiração ao nobre orador.

"O espetáculo, o grande espetáculo social, ou por outra, a grande lição dos escravocratas dada por José do Patrocínio em pleno tablado do 'Guarani', diante de inúmeros espectadores, deu mais impulso, agitou mais violentamente a guerra travada contra o escravismo.

"Diante, pois, desses espectadores, José do Patrocínio, depois de falar por espaço de uma hora e meia, chamava, prevenido de uma lista, pelos nomes daqueles que deveriam receber a carta de liberdade.

"Ao chamado, aparecia, saindo dum 'bastidor', uma crioula, de cabeça baixa envergonhada ante a multidão, e ante o seu papel na sociedade - o de escrava!

"José do Patrocínio, com fraternal amor, orgulhoso de seu nobre encargo, entregava à crioula a carta e não admitia que ela se curvasse para beijar-lhe a mão; abraçava-a de leve e apertava-lhe a mão na mais viva expressão de igualdade. Esta cena era coberta de aplausos prolongados, que coroavam o ato.

"A liberta, equívoca, não sabia se ficava no tablado ou se tornava aos 'bastidores', esperava uma ordem; julgava-se ainda uma escrava!

"Seguia-se outro chamado, aparecia outro escravo, repetindo-se a mesma cena. E, assim, montou a dez o número de libertos nessa noite, ante mil olhares, retumbantes aplausos e júbilo geral.

"José do Patrocínio, vitoriado, retirou-se do teatro às 11 horas da noite, hora em que terminava a parte da grande obra pela qual seu coração puramente democrata sempre pulsou: a Liberdade.

"Após Patrocínio, Santos recebeu o ilustre Dr. Cândido Barata Ribeiro, que, no mesmo Teatro Guarani, também realizou uma conferência sobre dois temas, ao mesmo tempo: Abolição e República".

Dois portugueses surgiram nessa altura, desempenhando um grande papel na campanha santista: Luiz de Matos, um nome ligado à vida da cidade, onde residiu talvez 30 anos, homem de espírito liberal, que prestou a esta campanha, como à da República, serviços inestimáveis, assistindo também instituições ou movimentos humanitários, o progresso, a literatura, a arte e a ciência locais, colaborando ativamente na Cidade de Santos e no Diário de Santos(N.E.: não confundir com jornais homônimos surgidos durante o século XX e também extintos) ao lado de Artur Bastos, Vicente de Carvalho, Leo D'Afonseca, Júlio Ribeiro, Silvério Fontes, Alberto Souza, o dedicado Ferreira de Menezes e outros paladinos do movimento.

O segundo era José Teodoro dos Santos Pereira, vulgarmente alcunhado o Santos Garrafão, por ser grande, grosso e ventrudo, em contraste com o irmão, o Santos Alfaiate ou Santos Botija, conhecido depois como tipo de rua e alcoólatra inveterado.

José Teodoro, o Santos Garrafão, chegou a ser considerado a maior figura popular da Abolição. Tomado de verdadeiro fervor pela causa dos negros, desvelou-se em atenções e serviços à gente do Jabaquara, fornecendo-lhe comida, roupas, medicamentos e socorros de toda ordem, obtidos por ele das firmas comerciais e das famílias, que amparavam a grande causa.

Santos Garrafão afeiçoou-se grandemente a Quintino de Lacerda, admirando a bravura do negro sergipano, levando essa admiração aos maiores sacrifícios, demonstrados em trabalho ativo, em dinheiro e em tudo que se fazia mister conseguir para os seus socorridos e comandados ingressados na cidadela santista. Ele foi, sem dúvida, o grande personificador da alma popular, personificação magnífica daquele proletariado integrado na santidade da causa redentora, que se privava do alimento e do conforto, tantas vezes, para socorrer os escravos recolhidos à "Terra Prometida", à "Canaã", como diziam os poetas do movimento.

Tornaram-se célebres os seus bilhetes, enviados aos abolicionistas financiadores da campanha, para obtenção de recursos urgentes, e que começavam quase sempre com estas palavras: "- Amigo fulano. Tenho tantos rolos de fumo para seguir etc.".

Esses rolos de fumo eram os negros arrancados aos potentados, recém-chegados a Santos - os quais, pela importância dos respectivos senhores, convinha que fossem remetidos para outras províncias ou mesmo para o exterior, a fim de escaparem definitivamente à procura dos donos. Nestas ocasiões, funcionava sempre, em articulação com o português Geraldo Leite da Fonseca, ligado a uma companhia de navegação, que recebia os escravos em seus vapores, em falso engajamento ou em viagem clandestina para fora do País.

Santos Garrafão vivia maritalmente com uma preta, a Brandina, figura extremamente popular, afamada cozinheira, que possuía uma pensão na rua Setentrional, e que foi uma verdadeira mãe para os seus irmãos de cor, assistindo-os em todas as necessidades, secundando eficientemente o grande trabalho do português.

Esse homem, a quem por certo ainda se devem as homenagens oficiais que até hoje não lhe foram prestadas, era quem punha em movimento os médicos da cidade, para visitas e consultas, receitas e custeio de aviamentos em farmácias, em favor dos escravos e dos recolhidos ao Jabaquara. A Santa Casa, então, vivia cheia dos fregueses gratuitos, que o Santos Garrafão levava, nos casos mais simples ou nos de mais urgência, e ainda com recomendações do provedor, que não era outro senão aquele benemérito João Octávio dos Santos, um dos iniciadores e um dos grandes financiadores do movimento abolicionista, que, providencialmente, dirigiu o Hospital e a Irmandade durante 14 anos, de 1882 a 1896.

Por tudo isso, pela existência desses homens e do Jabaquara e pela quase unanimidade abolicionista da sociedade santista àquela altura, já não se viam mais nos jornais aqueles anúncios e noticias de anos atrás, publicados pela Revista Commercial, comunicando fugas de escravos e prometendo gratificações a quem os entregasse de volta, oferecendo negras paridas para amas-de-leite, a tantos mil réis por dia de aluguel, ou negros sadios para qualquer serviço, a 400, 500, 600 mil réis e até mais, como animais à venda.

Dos abolicionistas de São Paulo, recebia Santos Pereira, muito amiúde, telegramas aparentemente ininteligíveis e cartas disfarçadas, onde lhe comunicavam a descida de algum escravo ou de alguma leva numerosa para Santos, partindo quase sempre dele a comunicação aos chefes do movimento, para as necessárias providências quanto a recursos, quanto às canoas de prontidão, no Casqueiro ou em Cubatão, ou ainda quanto à movimentação da tropa de choque de Quintino de Lacerda.

[...]

Notas:

[36] A chácara de Geraldo Leite, assim chamada, era propriedade de Maneco Forjaz, seu parente, e nela havia várias negras velhas, ali custodiadas pelo grande abolicionista. Além dessa chácara, possuía Geraldo Leite o Sítio do Icanhema, na Ilha de Santo Amaro, ao lado e nas cabeceiras do riozinho Icanhema, onde ocultava também diversos escravos fugidos e os sustentava.

[37] Os amigos tratavam os dois irmãos, com intimidade, por Totó e Nhô Quim; Antônio tornou-se na República o notável senador Lacerda Franco.

[38]Quilombo como vocábulo tinha sua origem numa voz africana: Quilombo ou Kilumbu, de origem árabe-hebraica, que queria dizer: "Lugar de gente sempre alerta, ou de prontidão", isto é, perseguida, buscada, ameaçada, e por isso mesmo sempre em defesa. Era uma reprodução dos "Lombos cingidos" do Oriente, que se deitavam vestidos para melhor atender ao primeiro sinal de alerta. O elemento hebraico Ki significa "quem".

O grande Quilombo de Santos, formado pela altura de 1780, era situado na serra que ficou com esse nome, ao fim da várzea de Cabraiaquara, onde corria o rio de Cabraiaquara, desde então também chamado "rio do Quilombo". Esse grande Quilombo abrangia os grandes morros Cabeça do Negro e Jaguareguava, cuja  entrada era pela Bertioga, pelo rio Itapanhaú, razão por que a sua história se acha incluída na própria história daquele distrito e subprefeitura de Santos (N.E. que no final do século XX se tornou cidade autônoma).

Seu último chefe, após as destruições e chacinas sofridas em 1835, 1836, 1837 e 1838, foi "Pai Felipe", o rei negro, trazido para o Jabaquara logo em 1882, e mantido em lugar de honra fora da alçada de Quintino de Lacerda.

[39] "São Paulo e a sua evolução" - pág. 34 - Conferência pelo dr. Alexandre Marcondes Filho.

[40] Palavras de Antônio Bento a alguns chefes abolicionistas de Santos que depuseram a respeito.

[41] Castan, em "Cenas da Abolição" - 1921.

[42] Dele só ficou o prenome. Era o Sargento Fiúza, que abandonara o exército espontaneamente, e depois ingressara na polícia.

[43] Carlos Victorino - "Reminiscências", págs. 64 a 67.

[44] Como se vê, Carlos Victorino destacava um quilombo de Vila Matias, sob o comando de Pai Felipe, e outro do Jabaquara, às ordens de Quintino de Lacerda, o que não é perfeito. Já explicamos, linhas atrás, por que razão Pai Felipe vivia em lugar separado, eximido da direção e comando geral de Quintino de Lacerda. Era africano e fora rei.

[45] Não só nas fazendas de café sofriam os cativos. Sofriam mais, talvez, nos sítios diversos, de menores recursos, nos engenhos de açúcar e aguardente, nas lavras, nos armazéns e trapiches e nos ambientes domésticos em que eles eram para tudo, no interior e no litoral.

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