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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - OS ANDRADAS - BIBLIOTECAClique na imagem para ir à página principal desta série
Produções de José Bonifácio (3)

A história do Patriarca da Independência e sua família

Esta é a transcrição da obra Os Andradas, publicada em 1922 por Alberto Sousa (Typographia Piratininga, São Paulo/SP) - acervo do historiador Waldir Rueda -, volume III, com ortografia atualizada (páginas 410 a 417): 
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TERCEIRA PARTE - PRODUÇÕES INTELECTUAIS DE JOSÉ BONIFÁCIO

Capítulo II - Trabalhos científicos e filosóficos

[...]


Memória sobre a pesca da baleia

(Excertos)

 

Reprodução fac-similar das Memórias Económicas da Academia de Ciências, de Lisboa

Imagem publicada na página 410 do volume III de Os Andradas

 

Seção I

Dos erros desta pesca, e danos resultantes

As baleias, cujas pesca faz o assunto da presente Memória, com os mais cetáceos servem na pasmosa cadeia animal de no que ata os quadrúpedes aos peixes. A estes se assemelham pela forma exterior, e com os mesmos, até ao renascimento da História Natural na Europa, se confundiam de ordinário; diversificam porém inteiramente pela sua organização e funções internas; seu sangue abundoso, e quente; o coração de dois ventrículos; a respiração pelo bofe; a geração; e modo de criar seus filhos; a grossa camada de gordura porosa e tendinosa; a mesma posição da sua cauda; os espiráculos da cabeça; enfim  a estrutura de suas barbatanas laterais com ossos articulados à maneira da mão humana; tudo isto de comum com os quadrúpedes as aparta de necessidade da classe dos peixes.

Destinadas a viverem no meio do Oceano, cumpria à Sabedoria do Criador dar-lhes para isso apropriada configuração; a forma da sua cabeça, aumentando a superfície do contato em um dado volume de água, diminui a pressão e a resistência; a cauda musculosa e forte, pela sua figura depressa dirige seus movimentos rápidos, e é ajudada em seus esforços pelas barbatanas laterais que lhe servem de remos.

Se eu pretendera descrever miudamente todo o gênero inteiro das baleias, seria converter uma Memória Econômica em um Tratado de História Natural: os mesmos Naturalistas quase até hoje por falta de notícias, e descrições exatas, e de conhecimentos da sua economia, não têm sido pela maior parte mui exatos na sua classificação; mas (graças aos trabalhos de Fabricio, Anderson, Hunter, Pennant, e Bonaterre) podemos vangloriar-nos que pouco resta de caminho para andar nesta matéria.

Porém, entre as 8 espécies conhecidas de baleias propriamente tais, como a grande baleia da Groenlândia (Balena mysticetus de Linneo); o Nord Kaper dos Ingleses (Balen, glacialis de Bonaterre); o Fin fish (Balen, physalus de Linn.); o Campon (Balen, nodosa de Bonaterre); o Humback Whale (Balen, gibbosa do mesmo); a Jubarta (Balen, loops de Linn); o Rorgual (Balen, musculus do mesmo); e a baleia bicuda ou rostrada de Fabricio, dificultoso me h é em verdade afirmar qual seja destas espécies a que se pesca no Brasil; contudo parece-me provável ser a Balena physalus de Linneo, porque, segundo minha lembrança, tem ela o ventre liso, três barbatanas, e as maxilas iguais e agudas, sinais que caracterizam esta espécie.

Passando agora a apontar os defeitos desta pesca; o primeiro erro capital que encontro é, sem dúvida, não se estabelecerem novas armações em todos os sítios próprios desde a Bahia até ao Rio Grande de S. Pedro. Na costa da capitania de S. Paulo apenas existe a Armação da Bertioga na Vila de Santos. Assim, em perto de 80 léguas de costa, fertilíssima toda ela de baleias, apenas há uma, e esta muito mal regulada.

Que utilidades se não tiravam do estabelecimento de novas Armações nas entradas e barras dos rios e nas baías, de que abunda toda a costa, onde vai ter imensidade de baleias, que podiam ser apanhadas facilmente pelo pouco medo que têm de se chegarem à terra? Não me será dificultoso apontar os sítios mais próprios e cômodos para semelhantes fundações: nem estes estabelecimentos trarão gastos demasiados, porque sendo construídas as Armações e governadas pelo modo que exporei na Segunda Memória, de mui poucos pretos, lenhas e utensílios carecerão.

Nas ilhas de Cabo Verde, onde número grande de baleias dá à costa, utilizara também o Contrato em estabelecer Armações; que bem servidas podiam ser, e com mui pouca despesa, pelos naturais, que assaz são expertos e hábeis nos trabalhos marítimos: principalmente se ao mesmo tempo se procurasse tirar conveniência dos diferentes pescados, que há em todas elas.

O segundo defeito, que faz diminuir muito o lucro que se poderá tirar desta pescaria, é o pescarem somente nas barras, e não se afoitarem os pescadores a dar caça às baleias ao longo das costas do Brasil, e da América Espanhola para o Sul. E porque fazendo-se a nova pesca do Cazelote em corvetas desde Paranaguá até ao Rio Grande, e extraindo-se no mar o espermacete, que vem em barris, para o Rio de Janeiro e Lisboa, se não poderá cuidar igualmente em pescar as mesmas baleias, como fazem as demais Nações da Europa? [1].

Sem se exporem a tormentas perigosas, e contínuos medos de morrer presos entre o gelo, com quanta comodidade não podem nossos pescadores (agüentando o número das Armações, para nelas se acoutarem sendo-lhes preciso, ou descarregarem as barricas do toucinho) ir dar caça às baleias em quase toda a costa da América Meridional? Se aos anglo-americanos e ingleses faz hoje conta vir pescar nas costas do Brasil com tantas despesas de viagem; quanto maior lucro devemos esperar, nós que temos todos os cômodos e facilidades das Armações e do país? Acrescento que, a haver nisto demora, os espanhóis nas costas desde o Rio Grande de S. Pedro até ao Cabo de Horn poderão interceptar ou diminuir esta pescaria.

Deve certo merecer também grande contemplação a perniciosa prática de matarem os baleotes de mama, para assim arpoarem as mães com maior facilidade. Têm estas tanto amor aos seus filhinhos, que quase sempre os trazem entre as barbatanas para lhes darem leite; e se porventura lhos matam, não desamparam o lugar, sem deixar igualmente a vida na ponta dos farpões; é seu amor tamanho, que podendo demorar-se no fundo da água por mais de meia hora sem vir respirar acima, e escapar assim ao perigo que as ameaça, folgam antes expor a vida para salvarem a dos filhinhos, que não podem estar sem respirar por muito tempo.

Esta ternura das mães facilita sem dúvida a pesca: e o método de matar primeiro os baleotes pequenos para segurar as mães, que enraivecidas muitas vezes viram as lanchas, parece vulto a vulto excelente, mas olhado de perto é mau, e trará consigo, a não se prover nisso, a ruína total desta tão importante pescaria.

É fora de toda dúvida que, matando-se os baleotes de mama, vem 1º a diminuir-se a geração futura; pois que as baleias, por uma dessas sábias leis da economia geral da Natureza, só parem de dois em dois anos um único filho; [2] morto o qual perecem com ele todos os seus descendentes; 2º Que proveito pode tirar-se de um baleote pequeno (ainda quando no Brasil se aproveitassem esses baleotes) em comparação de uma baleia, que há chegado ao seu completo estado de crescimento? 3º Os de dois anos, depois de desmamados, ficam magríssimos, e apenas dão metade do azeite dos primeiros; 4º As baleias mortas no tempo em que criam os filhos pouco fundem, pela extrema magreza em que se acham; e causa isto o irreparável prejuízo de ir-se anualmente diminuindo o número das fêmeas, crescendo à proporção o dos machos, que assim de nada servem.

Eis aqui uma das razões por que as Armações da Bahia e Rio de Janeiro estão abandonadas; e em geral, porque tem vindo grande quebra à pesca do Brasil; o que também se observa na Groenlândia, como todos aqueles o podem certificar, que são meãmente instruídos nestas matérias; nem isto precisa de maiores provas. Ora, alguma desculpa mereciam os diretores, se esta pesca tivera concorrência; mas sendo nós os únicos pescadores em todo o Brasil com as comodidades das Armações, podemo-la mui bem fazer com lucro, sem a danificarmos para o futuro.

Requerem emenda também as lanchas chamadas de socorro, que podiam ao mesmo tempo ter arpoadores; nem isso tolhe poderem-se umas socorrer às outras mutuamente. Todos os bons pescadores da Europa não usam de lanchas de socorro; e nem por isso morre maior número deles. Esta só falta de economia dobra os gastos da pesca ao Contrato em lanchas, remeiros e timoneiros, que utilizam muito pouco.

Merece igual contemplação o modo com que se provêm as lanchas de baleeiros: os administradores do Rio de Janeiro e os das outras Armações, levados de empenhos indiscretos e injustos, ou de interesse seu próprio, surtem as lanchas com afilhados sem prática, e pretos seus boçais, que servem meramente de embaraçar os outros companheiros. Isto pede melhor recato; e ninguém duvidar pode que os destros e esforçados remeiros, o prudente timoneiro e o experimentado arpoador decidem quase sempre do feliz êxito e lucro desta pescaria.

Não devo aqui também esquecer-me, que os pretos do Contrato, e demais remeiros, podiam em parte sustentar-se com a carne das baleias novas, principalmente daquela que vai da vulva até a cauda; e das línguas bem salgadas e espremidas. Os vasconços, e alguns outros ainda hoje, depois de bem espremida e salgada a carne (cujo método direi se for preciso), a embarricam, e dela usam no mar. Mas é útil advertir, que se tire a das baleias frescas, que não têm sido trazidas a reboque de mui longe; porque aliás, derretendo-se a gordura com o calor excitado pelo movimento, introduz-se na fibra muscular, e dá mau gosto à carne.

Aqui tinha lugar dizer alguma coisa acerca da boa construção dos arpões, lanças e ganchos, seu preciso tamanho e peso; sem o que de pouco servem, e de certo causam grandes prejuízos; mas noutro lugar trataremos disto, e daremos as regras para se emendarem os do Brasil; correção de que necessitam, como bastantes motivos tenho de me capacitar.

Pela mesma razão deixamos de falar alguma coisa na forma e capacidade das lanchas, de que lá se servem, que devem ter certos requisitos para melhor se conseguir o desejado fim. Quantas vezes, por falta de capacidade das lanchas, e aparelhos necessários no corte do toucinho, e outras coisas, se perde infinidade de baleias, que escapando aos pescadores vão dar à costa em praias arredadas, ou não podem ser conduzidas a reboque para as Armações!

Estas são as principais considerações, que julguei devera manifestar, para dar idéia dos numerosos erros cometidos na maneira de pescar baleias no Brasil. Talvez algumas delas pareçam à primeira vista fúteis, ou assaz dificultosas pela sua novidade, e por isso se não ponham em execução; contudo não me desanimo, e espero razoadamente, que não suceda comigo o mesmo, que há tantas vezes com outros sucedido. E com efeito o comum das gentes olham para as empresas novas com certo escárnio e desconfiança medrosa; e contanto que estejam de alguma maneira bem, não forcejam por estar melhor.

A atividade e brio nacional, o espírito ardido, que impelia a longas navegações, e estabelecimentos úteis, com que tanto nos distinguimos os portugueses em tempo dos senhores reis d. João II, d. Manuel e ainda d. João III, arrefeceu de todo, e caímos em tal esmorecimento que apenas lançamos mão de alguma coisa boa, que nos mete à cara o acaso; e ainda isso nunca pela maior parte o melhoramos e aumentamos, como nesta pescaria se verifica. [3]. Mas já hoje (graças ao governo benéfico e maternal da nossa Augusta Soberana) há quem fomente as boas idéias e as ponha em execução.

[...]


NOTAS:

[1] (a) Os vasconços foram os primeiros que, partindo de França, iam pescar as baleias ao Mar Glacial, e ao longo das costas de Groenlândia e Islândia; e nos fins do XVI século, e começo de XVII, se apossarão os ingleses desta pesca nas costas de Spitzberg, que por muitos anos forcejaram em excluir as outras nações. Os holandeses, porém, pela sua economia, e grande destreza na arte de pescar, vieram quase de todo a excluí-los; e de presente são os que fazem a maior e mais lucrosa pesca.

Em 1677, por 201 navios de várias nações, dos quais 129 eram holandeses, se apanharam 1.968 baleias, que deram 6.788 tonéis de azeite, que juntos com o importe da venda das barbas renderam 3.784.490 florins; e ainda que ao depois não fosse tão lucrosa, não deixam contudo os holandeses de exportar, ano comum, o valor de 1.000.000 florins; em cuja pesca que dura 4 meses empregam 300 até 400 embarcações, e perto de 3.000 marinheiros e pescadores. Desde 1669 até 1780, têm eles apanhado em Spitzberg e Groenlândia mais de 55.000 baleias.

Os armadores de Nantucket nos Estados Unidos da América em 1769 expediram para esta pesca 125 navios de 150 toneladas, dos quais os primeiros 50 que voltaram trouxeram 11.000 barris de azeite; no ano seguinte, 135 embarcações de 13 homens de marinhagem partiram para a chamada grande pesca.

Mas onde se achará outra pequena ilha arenosa como esta, cujos moradores em pouco mais de 100 anos tenham adquirido, por este só ramo de indústria, mais avultada riqueza e povoação? Hoje em dia a pesca de Spitzberg ocupa anualmente quase 350 navios de Inglaterra, Holanda, França, Dinamarca, Bremen e Hamburgo, dos quais perto de 100 são holandeses. Ora, que conveniências certas e vantajosas sobremaneira não tiraria o Contrato, se de algum modo rastejasse pela pesca dos holandeses?

[2] (a) Mr. Dudley, e os Naturalistas subseqüentes afirmam que as baleias fêmeas andam 10 meses pejadas, e não se ajuntam com os machos senão de dois em dois anos. (Philosophical Trant. n. 337) Hunter, Bonaterre.

[3] (a) Creio que o que faz esquecer estas economias aos diretores do Brasil são os prodigiosos lucros do Contrato: digo prodigiosos, porque no ano de 1775, só na Armação de S. Catarina se pescaram perto de 500 baleias, e são 400$000 o que rende de ordinário cada uma.

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