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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - OS ANDRADAS - BIBLIOTECA
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A história do Patriarca da Independência e sua família

Esta é a transcrição da obra Os Andradas, publicada em 1922 por Alberto Sousa (Typographia Piratininga, São Paulo/SP) - acervo do historiador Waldir Rueda -, volume II, com ortografia atualizada (páginas 5 a 31): 
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DISSERTAÇÃO PRELIMINAR SOBRE O PAPEL DE JOSÉ BONIFÁCIO NOS FAUSTOS DA INDEPENDÊNCIA

Rebuscas e pesquisas

o encetarmos a narração metódica e o estudo imparcial dos movimentos que precederam e determinaram a nossa emancipação política, e dos sucessos ocorridos posteriormente, seja-nos lícito formular algumas considerações preliminares e relativas ao conspícuo papel que nessa importante fase histórica da vida nacional desempenhou José Bonifácio, poderosamente auxiliado pelo talento e pela energia cívica de António Carlos e sobretudo de Martim Francisco.

À medida que a celebração da data centenária (N.E.: centenário da Independência, em 1922, quando esta obra foi publicada) grandiosamente se aproxima, fazem-se demoradas e cuidadosas escavações nos arquivos públicos do País, dos Estados, dos Municípios, das administrações eclesiásticas, especialmente em São Paulo, onde a Cúria Metropolitana é um perene e fecundo manancial de informações biográficas e genealógicas preciosíssimas; retificam-se e recompõem-se, à clara luz de novos e quem sabe se mais exatos critérios, certos fatos que até agora tinham passado como que superficialmente esbatidos em telas quase apagadas; trazem-se perante a Posteridade os vultos que mais deram que falar de si naquela quadra famosa; analisam-se suas idéias, perscrutam-se suas tendências, ajuíza-se de suas ações; repartem-se entre eles responsabilidades e lauréis; de Norte a Sul do Brasil anda um afã de pesquisas e descobertas; catam-se aqui, recolhem-se ali, copiam-se e arrecadam-se acolá, cartas, desenhos, medalhas, quadros, depoimentos, memórias, reminiscências, manuscritos, toda a casta de documentos, de subsídios, de dados úteis, existentes dentro ou fora das repartições oficiais - em lojas maçônicas, em associações civis de caráter privado, em mãos beneméritas de particulares amantes da tradição.

Divergências de apreciações

Esse ativo trabalho de erudição e de rebusca acentuou as divergências que entre os nossos letrados se operara quanto à intervenção pessoal de cada herói na obra da Independência. Três correntes disputam a vitória na conquista da opinião nacional.

A primeira, a mais volumosa e respeitável, é a dos que deparam, nas novas contribuições vindas a lume, outras tantas provas confirmativas de que a José Bonifácio coube a principal função no movimento separatista, desde a sua fase inicial até os atos posteriores ao Grito do Ipiranga.

Para os da segunda, o Sete de Setembro nada mais foi que a resultante espontânea de um esforço popular generalizado, um grito d'alma de todos os brasileiros, que repercutiu e vibrou simpaticamente no coração liberal do príncipe d. Pedro. Segundo eles, não houve chefes, não houve guias, não houve mentalidades orientadoras: planta caída em chão predestinado, germinou, cresceu, enramou-se, floriu e frutificou por si mesma, sem necessitar de pomareiro que cuidasse dela.

Aqueles que constituem a terceira corrente batem-se com denodo pelo reconhecimento de um novo Patriarca - Joaquim Gonçalves Ledo, a quem atribuem a maior soma de labutas intelectuais e diligências práticas em favor da grande causa, tendo a seu lado auxiliares de excepcional relevo, entre os quais se destaca o português José Clemente Pereira que, de fato, muito fez, não tanto por generoso amor à Pátria que não era sua, mas principalmente em proveito de interesses e conveniências subalternas, como no lugar e ocasião oportunos se verificará.

Os arautos modernos do Patriarcado de Ledo apóiam-se em opiniões emitidas pelos contemporâneos dos acontecimentos - em artigos jornalísticos, em discursos fora e dentro do Parlamento, em atas de associações políticas e de comícios populares, em protestos e representações - todos eivados de suspeição e de parcialidade por serem produtos do tempo e do meio em que as lutas eram cada vez mais acres.

Querer julgar os homens da Independência pelos juízos formulados então a respeito de cada um deles, é um verdadeiro contra-senso crítico. Uns combatiam os outros, segundo os pontos de vista em que se colocavam; e como todos pretendiam escalar o poder para com seus respectivos partidários dirigirem o movimento o sabor de seus ideais, os que estavam por baixo guerreavam sem tréguas os que dominavam a situação; e estes, uma vez caídos, atacavam em represália os que subiam, os quais, por sua vez, alcandorados na suprema governação, tratavam logo de desfazer tudo quanto seus antecessores tinham feito, mesmo as coisas reconhecidamente certas e aceitáveis.

Dos juízos, das opiniões lavradas por adversários, só deve a História recolher como irrefragáveis as que louvam e realçam qualidades e não as que apontam ao desprezo público defeitos supostos ou reais, salvo se a respectiva documentação abona de modo irretorquível os conceitos desfavoráveis ao caráter moral do antagonista. O elogio que nos tecem os que, do campo contrário, nos hostilizam, é o melhor e mais decisivo testemunho dos nossos méritos, o formal reconhecimento de nosso valor intrínseco, a livre consagração de nossos esforços.

Grupos combatentes

Nas lutas epopéicas da Independência, chefes e agrupamentos opostos combatiam-se encarniçadamente, na ânsia, no empenho e no entusiasmo de fazerem preponderar seus objetivos na construção política da nascente Pátria.

Havia os que desejavam apenas a simples, embora ampla, autonomia brasileira, dentro, porém, da união portuguesa indestrutível. Outros propugnavam corajosamente pela separação definitiva e completa, sob a forma republicana, de acordo com as indicações e tendências concretizadas nas anteriores manifestações mineira e pernambucana, e com os moldes peculiares ao sistema que se vinha integralizando na América em todos os paises que de suas metrópoles se tinham finalmente desagregado.

Entre esses dois agrupamentos extremos, que assim revelavam - um, pela sua excessiva timidez, outro, pela sua ousadia exagerada - não conhecerem a fundo a realidade da situação brasileira no momento, formou-se então, rapidamente, o partido que deveria levar a causa nacional a um desfecho vitorioso, quase sem abalos ou graves perturbações da ordem material.

Esse era o partido que trabalhava pela emancipação radical sob o regime monárquico, visando prolongar no Brasil a árvore dinástica dos Braganças na pessoa do príncipe d. Pedro que aqui ficaria investido, como regente, dos mais altos poderes majestáticos que à hora da partida lhe outorgara o pai, para familiarizá-lo desde logo com o exercício das funções supremas, pois d. João VI, com a sagacidade que lhe era inata, e que supria as falhas de sua inteligência e as imperfeições de sua educação política, previra de um golpe os importantes sucessos que se dariam após o seu regresso; e estimulara na alma do filho, com a frase autêntica que a História registra, os seus instintos naturais de orgulho e de dominação.

Armas de combate

Os que se achavam filiados a um dos grupos denegriam e menoscabavam a pureza de intenções dos outros; e, no calor das refregas, ninguém hesitava quanto ao emprego das armas com que se batia. Ódios violentos e profundos originaram-se desses impetuosos litígios e remanesceram no coração dos combatentes mesmo depois de enroladas as bandeiras e terminadas as lutas.

A mera evocação ocasional de um fato, a referência a um vulto, a elucidação de um episódio, no seio das Câmaras Legislativas, no recinto das Lojas Maçônicas, nas páginas dos periódicos ou nas formidáveis arengas dos comícios públicos, bastava para que a relembrança dos passados prélios reavivasse ódios quase totalmente esmorecidos; e os deleites póstumos da vingança ou as tentadoras visões da própria glória reabriam debates havia tanto tempo encerrados.

Os adversários, mesmo vencidos pela vitória dos rivais ou afastados das lutas pela morte, eram de novo flagiciados ou espostejados nas objurgatórias dos vencedores e sobreviventes. Não é com esses depoimentos eivados de paixões que julgaremos os heróis de nossa História.

Entrada de José Bonifácio na luta. Concentração do movimento em suas mãos

Quem lê com a necessária meditação tudo quanto se tem escrito até agora sobre os antecedentes e os subseqüentes da memorável jornada do Ipiranga; os que examinam, com o critério da imparcialidade, os documentos já conhecidos geralmente e os que mais modernamente foram divulgados por investigadores de todos os naipes; os que estudam, com verdadeira inteligência, a têmpera, os talentos, o preparo, as virtudes, a psicologia enfim dos homens daquele tempo, terão que concluir forçosamente que José Bonifácio foi o aparelho regulador de todo o movimento que nos desligou de Portugal.

Encontrando, ao regressar à Pátria, iniciado esse grande movimento, no qual tomara parte em Pernambuco um de seus irmãos - António Carlos; e movimento que a Metrópole prepotente e inepta, longe de amainar por meio de providências úteis, acelerava com a atitude de intransigente resistência a todas as justas aspirações dos brasileiros, José Bonifácio, desde que as circunstâncias o levaram a entrar para a atividade política, trocando as lides do pensamento pelos encargos da governação, tratou de coordenar em torno do príncipe os esforços que se dispersavam aqui e acolá, ao influxo anárquico de agrupamentos desorganizados que prejudicavam a causa comum, graças à divergência de seus propósitos e à intolerância de seus processos de agir.

O essencial era fazer-se a independência; a forma de governo a adotar estaria subordinada e adstrita à marcha dos acontecimentos e à oportunidade das ocasiões. Se fosse, como foi, mais fácil, mais prático e menos sujeito a dúvidas e incertezas angustiosas realizar-se o feito mantendo-se o regime monárquico - por quê se haviam de aventurar os patriotas aos azares de uma insurreição radicalista de êxito pouco provável?

Foi José Bonifácio quem encaminhou a opinião pública para essa admirável solução política, que nos poupou dias dolorosos e impediu o talvez inevitável fracionamento do Brasil em pequenas republiquetas sem importância no concerto universal dos povos livres.

Parte do País, graças aos planos ardilosos das Cortes de Lisboa, prestava direta obediência à Metrópole, não se submetendo à autoridade do príncipe regente, que era reconhecida apenas por uma menor parcela da população ativa, como depois veremos. Não estava aí o perigoso germe da desagregação territorial do Brasil - uns pedaços colonialmente incorporados ao patrimônio português e outros prematuramente constituídos em pátrias soberanas mas de organização precária?

Assim, pois, exalçando-o à dignidade imortal de Patriarca - não quis a História, na serena retidão de seus conceitos, asseverar que foi ele quem, por uma propaganda feita de palavras e de atos, engenhou o evento libertatório na terra brasileira, porquanto esse evento glorioso se viera elaborando aos poucos na alma de cada um e no conjunto de todas as almas, por uma série de motivos justos que já expusemos e analisamos no primeiro volume desta obra; mas foi José Bonifácio quem, com sua desassombrada inteligência e pulso férreo, congregou os elementos que se debatiam sem Norte, ordenou-os, disciplinou-os, dirigiu-os, levando-os à final vitória.

Foi ele o general investido por vontade própria no supremo e arriscado comando de todas as forças. Os outros foram oficiais às suas ordens; e a massa geral compunha a totalidade dos soldados rasos. Todos se portaram com denodo e cumpriram grave e briosamente seu dever até o fim; mas a responsabilidade capital dos planos, com a respectiva e acertada previsão de quanto poderia suceder de lamentável ou de auspicioso, cabe a quem dirigiu a campanha; e as glórias principais do resultado final inteiramente lhe pertencem.

Aliás, os triunfos científicos e literários de José Bonifácio na Europa, e o seu heroísmo pessoal como comandante do Batalhão de Acadêmicos de Coimbra durante a guerra da península, em meio da covardia quase geral do oficialismo português, não contribuíram pouco para que no espírito dos brasileiros se robustecesse e arraigasse a convicção em que estavam de sua superioridade a todos os respeitos sobre os filhos de além-mar; e essa convicção foi um dos fatores que decidiram em grande parte da atitude de franca revolta que a colônia assumiu contra a metrópole.

Pode-se, pois, de certo modo, afirmar que José Bonifácio, mesmo longe da Pátria onde nascera, foi um dos preparadores iniciais da obra da independência, por ter, pela superioridade de seu gênio singular, estimulado e alimentado no ânimo de seus escravizados compatriotas um justo sentimento de valor pessoal e força coletiva, no conjunto dos indivíduos e dos povos que formavam então a raça portuguesa na adiantada Europa, na África indolente e primitiva, na Ásia decaída do seu esplendor histórico de outrora, e na adolescente América, a virgem morena de robustos flancos, que abrira os rústicos seios à brutal fecundação de seus conquistadores.

Revelando que de par com o poeta e o sábio havia a organização completa de um verdadeiro estadista, à altura das circunstâncias do meio e das necessidades da época, o avisado santista soube conciliar, nos primórdios de sua atividade, a energia com a transigência, procurando aliar aos elementos naturais do País os elementos lusitanos de maior prestígio, de maneira que a solução da crise, embora por caminhos mais longos e processos mais demorados, não tivesse que provocar inutilmente lutas esgotadoras e fatais.

E quem acompanha com cuidado a desenvolução dos acontecimentos na sua fase inicial, não pode eximir-se de reconhecer que ele, assim procedendo, agiu com sabedoria, porque ser prudente é ser sábio. A sua alma ardorosa de poeta, subordinada à severa disciplina dos hábitos científicos, adquiridos no estudo calmo das leis naturais e na observação direta dos fenômenos do mundo - soube submeter os arroubos e as impaciências do patriotismo, nem sempre bem inspirados, aos refletidos impulsos de uma ação ponderada e orgânica. Mais tarde, na suprema defesa da obra começada, quando pretendiam criar-lhe insuperáveis obstáculos, teve que assumir uma atitude de relativa intransigência perante os agrupamentos em luta para que se não malograssem de todo seus esforços.

Processos de agir do Patriarca

O problema, pela sua complexidade e dificuldade - repetimo-lo -, não comportava soluções radicais adotadas de repente, porque fracassariam como fracassaram todas as tentativas anteriores. Era preciso agir devagar, vencendo o áspero e alcantilado terreno por etapas, avançando agora para deter-se daí a pouco, até que a oportunidade de um decisivo ataque generalizado determinasse o desfecho da campanha.

De um lado, tinha-se que conquistar primeiramente a indispensável adesão do príncipe, para que a metrópole ficasse de certo modo tolhida e embaraçada nos seus ímpetos de contra-reação e as tropas lusitanas e os reinóis domiciliados na colônia não hostilizassem desde o começo o plano taticamente organizado.

O príncipe d. Pedro. Seus bons e maus pendores

D. Pedro era um jovem estouvado, voluntarioso e mal instruído; não dispunha de discernimento, nem das luzes necessárias para compreender e apanhar os característicos da situação em que se achava perante o governo de Portugal e o povo do Brasil.

Seus amáveis predicados de coração, a natural espontaneidade de sua inteligência eram assaz prejudicados pela sua completa falta de preparo teórico e siso prático, pelos excessos de seu temperamento e sobretudo pela sua índole versátil e mutadiça, irresoluta e caprichosa, incapaz de propósitos firmes e convicções estáveis.

O trabalho preliminar a executar-se não era, pois, traçar determinada rota à opinião nacional, aderente à causa emancipadora; mas ao pé do príncipe e dos que sobre seu espírito pudessem influir direta e proveitosamente.

Daquela contraditória mescla de qualidades e defeitos - mais defeitos talvez que qualidades - é que José Bonifácio tinha de preparar o herói a quem confiaria a magna tarefa de redimir do cativeiro colonial a Pátria.

Árdua, espinhosa, ingrata missão a de transformar de improviso em libertador generoso de um grande povo o jovem príncipe desregrado a quem só apraziam e deleitavam os grosseiros aspectos da vida material: cavalos de raça e mulheres de trinque; mesa farta e comensais alegres; caçadas pela manhã nas matas de Santa Cruz e estúrdias durante a noite na solidão das praias afastadas.

Desde o dia em que entrou para o governo provisório de S. Paulo, como seu vice-presidente, até deixar o cargo de primeiro ministro do novel império, não fez outra coisa o velho Andrada, afora suas pesadas ocupações políticas e administrativas, senão estimular os bons pendores de d. Pedro e corrigir-lhe as viciosas inclinações morais, na esperança de fazê-lo redentor, primeiramente, e depois chefe supremo da Nação que o seu braço ajudaria decisivamente a fundar.

Ao mesmo tempo que lhe entremostrava a grandeza do feito, ligando o seu nome eternamente aos de outros fundadores que a História glorificara, espicaçava-lhe o orgulho, comparando a sua situação privilegiada de monarca de um vasto império, florescente de riquezas e possibilidades, e a sua posição ridícula e subalterna de herdeiro presuntivo, a percorrer a Europa, a mandado das Cortes soberanas, na companhia tutelar de velhos aios autoritários, como se fora ainda um rapazola inepto, incapaz de se governar a si mesmo. Que futuro o aguardava na metrópole? O vacilante, o carunchoso trono de seu pai e um país decadente, empobrecido, desorganizado.

Ao passo que assim se dirigia ao amor-próprio e às aspirações do juvenil regente, apelava o Patriarca para o concurso efetivo das autoridades portuguesas da Colônia e para o apoio cordial dos reinícolas residentes nela, concitando outrossim os nacionais a congraçarem-se com os lusos em proveito dos interesses comuns.

Isto, porém, passava-se na fase inicial do movimento, quando se pugnava simplesmente por uma autonomia ampla dentro da indissolúvel união dos dois reinos, plano que, se fora aprovado pelas Cortes Constituintes, longe de adiar, como alguns pensavam, a solução radical do problema, apressa-lo-ia decerto, porque, depois de ter saboreado o suculento pomo da liberdade, o Brasil, com um monarca à testa de seus destinos, com suas assembléias deliberantes, com sua magistratura separada, com sua administração financeira independente, com seu ensino organizado, com seus exércitos de terra e mar, dilataria cada vez mais e a sua sujeição à metrópole se tornaria em breve puramente nominal, desaparecendo sem que ninguém desse por isso.

As Cortes o compreenderam bem e tomaram em relação às pretensões brasileiras a única atitude que lhes parecera capaz de dar talvez bom resultado: a da oposição tenaz, em todos os terrenos, a semelhantes pretensões. Se com o emprego da violência e da força material não conseguissem dominar a situação revolucionária da ex-colônia americana, reduzindo-a de novo à sua anterior situação, muito menos o conseguiriam fazendo-lhe concessões que a levariam da autonomia relativa à plena independência.

Tal atitude impediu que as autoridades lusitanas e os súditos da mesma origem apoiassem com sua adesão o plano concebido e que o congraçamento entre reinóis e colonos se verificasse, como José Bonifácio pretendia. Trava-se então a luta entre as duas coletividades antagônicas e ódios recíprocos as separam definitivamente.

Foi no memorável dia da aclamação do governo provisório na capital de S. Paulo - 23 de junho de 1821 - que José Bonifácio manifestou publicamente de modo positivo, e pela primeira vez, sua formidável capacidade de estadista, confirmada posteriormente em todas as altas funções governamentais que desempenhou.

Respondendo à arenga de um dos revolucionários reunidos no Pátio de S. Gonçalo para depor o capitão-general e instituir o governo que devia administrar a província até que a normalidade constitucional se estabelecesse, ponderou ele, aos espíritos exageradamente exaltados, que os portugueses tinham dinheiro, tinham navios, tinham soldados e poderiam efetuar em Santos um desembarque de tropas; e que as forças do Rio se achavam ao lado das autoridades constituídas.

Lembrou-lhes o recente e desastroso fracasso da revolução de Pernambuco. Lá, também fora deposto o governador e proclamada a República; organizaram-se batalhões que a defendessem; lutou-se com entusiasmo e com bravura. Mas todos os esforços se perderam; efêmera duração teve o levante. Dentro de pouco tempo os insignes heróis foram batidos pelos exércitos da legalidade; dos chefes principais o nobre sonho logrou seu epílogo aviltante no pesadelo do cadafalso ou das masmorras; e, confiscados todos os seus bens, tiveram suas desgraçadas famílias, criadas no conforto e na abastança, de implorar à caridade pública o dissaboroso pão de cada dia.

A vivacidade com que lhes descreveu José Bonifácio espetáculo tão desagradável, o cunho de sinceridade que imprimiu a seu discurso, pregando a paz, a fraternidade e o congraçamento em dia tão feliz, impressionaram profundamente a multidão revoltada - militância, clero, burguesia e povo - e os seus conselhos, filhos da experiência e da prudência, foram ouvidos e acatados submissamente.

O ímpeto revolucionário cedeu, recalcaram-se os ódios e a confraternização entre portugueses e nacionais manteve-se, em benefício da organização constitucional do Reino Unido, até que os próprios naturais da ex-metrópole começaram a hostilizar as aspirações dos brasileiros e a agir de acordo com as retrógradas tendências das Cortes reacionárias.

Modificaram-se então as disposições anteriores do paulista ilustre que vê, no elemento luso de ambos os continentes, o maior inimigo de nossa almejada libertação; mas, como ainda não tem a seu lado, inteiramente, a prestigiosa figura de d. Pedro, a vacilar entre a pátria de origem e a pátria de adoção, é usando de cautela que inicia a importante série de medidas preparatórias que nos levarão finalmente à independência.

Nas vésperas de partir o príncipe para S. Paulo, já ele estava completamente assegurado da sua cavalheiresca adesão à nossa causa; é por isso que redige e faz d. Pedro assinar o famoso Manifesto às nações amigas, de  6 de agosto de 1822 - que constitui a declaração formal de nosso decisivo e definitivo rompimento com a metrópole; e à medida que o fácil entusiasmo do regente se vai intensificando, os atos governamentais de José Bonifácio vão, paralelamente, revestindo-se de mais acentuada energia, de redobrada firmeza.

A República e suas conseqüências

A sensatez com que se opôs à proclamação da República simultaneamente com a independência abona a sua grande capacidade de estadista. Imagine-se que sucessão de tristes acontecimentos se não desenrolariam no solo natal, se o príncipe, as forças armadas que lhe obedeciam, as autoridades constituídas, os súditos portugueses de além-mar, se levantassem contra a tentativa!... A recolonização far-se-ia rapidamente e a solução da crise ficaria adiada por tempo indefinido; e provavelmente a fragmentação do território brasileiro se operaria nos pontos onde a ação militar do governo não tivesse conseguido jugular a revolta.

Não se pense, entretanto, que na mente de José Bonifácio não se tivesse projetado a possibilidade da solução republicana. Ao contrário: ele pensou maduramente nela, ideando um tipo governamental que, revestido dos característicos fundamentais da República, era todavia isento dos graves defeitos peculiares a esse regime político, tal como o concebe a generalidade dos espíritos modernos.

As idéias políticas de José Bonifácio examinadas à luz do critério moderno

Foi, provavelmente, durante a permanência de d. João VI em nosso país, que José Bonifácio, isolado no seu gabinete de pensador, à sombra frondente dos palmeirais de Outeirinhos, planejou, sob forma genuinamente republicana, a organização política do Brasil independente, procurando libertá-la da retrogradação absolutista caída em descrédito recente, e da anarquia democrática, cujas funestas conseqüências ele tivera oportunidade de observar diretamente na França revolucionada.

Pelo seu projeto, o governo proposto para o novo Brasil ficaria, a um só tempo, escoimado da hereditariedade monárquica e da temporalidade democrática, sendo vitalícia a investidura governamental do magistrado supremo. Era, apesar de empírico, um plano simpático, inteligente, racional e até mesmo positivo, porquanto, pela supressão da transmissão hereditária, impedia que o poder fosse entregue aventurosamente a algum príncipe inepto ou incapaz (e já há muitos séculos pregara, do púlpito católico, o mais insigne escritor português dos tempos passados, padre António Vieira [1] - que o direito da geração, sem a dádiva divina do talento, não é título bastante para o provimento dos públicos ofícios).

E pela adoção da vitaliciedade evitava de modo decisivo a instabilidade dos governos populares, constantemente renovados por assembléias eleitorais sem coesão e sem princípios, movendo-se aos impulsos do arbítrio de cada qual ou sob a deletéria influência de chefes partidaristas, apenas preocupados com a vitória de seu partido e a elevação de seus partidários aos cargos de responsabilidade oficial.

Nas incertezas em que flutuava o mundo ocidental, naquele agudo período de agitada transição, o gênio político de José Bonifácio apreendeu de um golpe todos os aspectos fundamentais do problema que a cada pátria competia resolver. Procurando, com prudente argúcia, conciliar o passado com o presente, idealizou um tipo modelar de governo, que mais tarde seria preconizado por um dos maiores reformadores de que se ufana a Humanidade até hoje, como o que melhor convinha, em caráter provisório, às nações modernas de mais adiantada cultura.

O magistrado vitalício, posto à frente do Poder Executivo, era cercado de corpos deliberantes e fiscalizadores que lhe tolheriam, com eficácia, quaisquer abusivos excessos no desempenho constitucional de suas atribuições.

Outras sábias providências completavam, de um modo sistematicamente republicano, a organização política do Brasil independente. É assim que o projeto abolia imediatamente a escravidão africana e suprimia formalmente os títulos e privilégios de nobreza, punindo com a pena de deportação quem quer que propusesse o restabelecimento de qualquer dessas instituições, que simbolizavam a injusta supremacia das classes dominadoras explorando os fracos oprimidos e contra as quais então se levantava o protesto unânime das almas generosas, guiadas e alumiadas pelo esplendor de novos e mais humanitários princípios.

Não nos importa saber se os nomes dados pelo autor aos magistrados e às corporações estabelecidas, nas suas bases constitutivas da Pátria brasileira, lembravam ou não instituições políticas, essencialmente, profundamente arraigadas no passado humano. Os nomes que as designavam pouco realmente importam à substância, à realidade da coisa criada. O fato é que tais instituições eram inspiradas num sentimento liberal, espontaneamente republicano, e isso nos basta.

Que importa, por exemplo, que o supremo chefe do Governo se chamasse Archonte-Rei, evocando a organização aristocrática de Atenas em certa fase do passado grego - se as suas atribuições eram conformes com as aspirações hodiernas e os seus poderes continham-se dentro de certas e determinadas restrições impostas e sugeridas em nome do bem público?

Em mais de uma das atuais democracias americanas, ciosas aliás de sua apregoada cultura, o presidente eletivo e temporário tem mais força e poder que um orgulhoso monarca de outras eras. As câmaras legislativas, a magistratura em seus diversos graus, os diferentes institutos de classe, as corporações administrativas legalmente autônomas, o jornalismo degenerado e decadente, o mesmo sacerdócio católico, que é ainda hoje o mais numeroso e respeitado, agacham-se em redor desses monarcas espúrios, de reinado efêmero; procuram adivinhar alvissareiramente seus mínimos desejos e esforçam-se, com a mais solícita diligência, por cumprir todas as suas ordens, ainda que insensatas, ainda que liberticidas, ainda que flagrantemente atentatórias das leis positivas em vigor e aberrativas dos princípios abstratos que regem e dominam todas as relações da vida social.

Esses desejos e essas ordens rompem o equilíbrio vital de uma nação, porque são contrários à marcha natural de suas tendências históricas, de suas aspirações e de seus anelos, que aos estadistas capazes cumpre encaminhar com tato, com inteligência e com ponderação, longe de criar-lhes desavisadamente óbices que um justo movimento de revolta destruiria furiosamente.

Semelhantes democracias têm apenas o rótulo republicano na sua fachada constitucional, porquanto, no fundo, na realidade, na sua natureza íntima, não passam de oligarquias tenebrosas, governadas por uma série de régulos enlaçados entre si por grosseiros apetites materiais e que se designam imoralmente para se sucederem uns aos outros, sob a ulterior sanção de assembléias populares irresponsáveis, por falta de luzes, de independência e de vontade própria.

E como são discricionariamente sustentadas por todas as classes, por todas as instituições, por todas as autoridades, por todos os indivíduos que de suas graças e generosas mercês compensadoramente se aproveitam, em câmbio de sua desvelada, incondicional dedicação, eles não conhecem e portanto não estimam a verdadeira opinião pública - única força real com que podem efetivamente contar nos momentos difíceis os regimes livres e os governos sérios - persuadidos erroneamente como estão de que essa entidade é representada pelos jornalistas desavergonhados, que sem convicção os elogiam e com arrojamento os lisonjeiam, a troco de aviltantes gorjetas subtraídas aos defraudados erários oficiais; pelos congressistas sem pudor pessoal nem altivez política, que os aplaudem com a palavra fementida ou com o voto subserviente, tendo em vista a contínua renovação crônica do respectivo mandato; pelos industriais, cuja ambição cresce proporcionalmente com o aumento constante de suas grandes riquezas, e que pleiteiam favores orçamentários escandalosos em prol dos produtos de sua indústria; pelos comerciantes em crise permanente, que precisam de bancos para fomentar, incrementar o curso das transações mercantis, facilitando aos que são amigos dos governos os descontos, os redescontos, as hipotecas a barato juro; pelos juízes singulares que querem percorrer gradativamente a escala de todas as instâncias até os tribunais superiores e pelos ministros vitalícios destes tribunais que, tendo galgado finalmente os mais altos postos da judicatura, submetem-se contudo aos poderosos, porque pretendem empregar seus próprios filhos ou dotar seus genros com encargos honrosos, pouco árduos, bem garantidos e bem remunerados na administração da coisa pública.

Pensam intimamente os iludidos régulos que essa tremenda coligação de interesses privados, danosa aos superiores interesses coletivos aos quais se superpõe ousadamente, exprime de fato o estado real da opinião do País; e daí a arrogância de seus gestos, o atrevimento de seus propósitos, a imoralidade de seus atos, a patente insensatez de suas idéias.

Se, por uma espontânea reação natural contra semelhante desordem generalizada nas classes dominadoras, estala de improviso na alma popular uma dessas irreprimíveis comoções revolucionárias que agitam as cidades e derrocam os impérios - correm eles a dominar pela força bruta a explosão que prepararam por sua inépcia criminosa, por sua desabrida prepotência ou pelo delírio de suas monstruosas ambições.

No plano concebido pelo patriota santista, todas as idéias de organização da nova Pátria subordinavam-se expressamente às inspirações e necessidades do bem público - resumo e síntese de um programa político verdadeiramente republicano. Na seção competente do nosso último volume reproduzimos integralmente esse notável trabalho do estadista egrégio. É digno de ser lido e meditado por quantos colocam os interesses gerais acima das pretensões pessoais, a idealidade dos princípios acima da materialidade das conveniências, o amor da Pátria acima de todas as subalternas preocupações.

***

Discussões atuais sobre quem foi o verdadeiro Patriarca da Independência

Repetem-se ainda hoje contra ele acusações formuladas outrora, ao estrondear dos combates; e entre outras há uma que tomaremos desde já em consideração para apreciá-la devidamente.

Diz-se que até fins de 1821 o insigne Andrada não queria a independência, e por isso não pode ser seu Patriarca. O verdadeiro Patriarca é Joaquim Gonçalves Ledo, escritor de mérito e orador torrencial, que ao movimento separatista se incorporou entusiasticamente, encaminhando-o, dirigindo-o, evangelizando-o com desassombro, no jornalismo, na tribuna e nas secretas deliberações das assembléias maçônicas.

O papel de Joaquim Gonçalves Ledo

Contudo, esse mesmo Ledo, que pretendem substituir a José Bonifácio no patriarcado que lhe conferiu a História - até 3 de junho de 1822 não era independencista: exatamente como o velho Andrada, queria, até então, a simples autonomia brasileira dentro da união com Portugal, segundo se vê na representação por ele redigida, por ele assinada em primeiro lugar, por ele em pessoa apresentada e lida a d. Pedro, e publicada com grandes encômios nos livros de seus modernos incensadores.

Diz a representação, na qual se pedia ao príncipe regente, em nome do povo brasileiro, a convocação de uma assembléia de representantes das províncias:

"O Brasil não quer atentar contra os direitos de Portugal, mas desadora que Portugal atente contra os seus... O Brasil quer ter o mesmo rei... O Brasil quer independência, mas firmada sobre a união bem entendida com Portugal; quer, enfim, apresentar duas grandes famílias regidas pelas suas leis, presas pelos seus interesses, obedientes ao mesmo chefe".

Aí está, como se vê, todo o programa, todo o sábio programa oportunista de José Bonifácio, com a diferença de que este já o tinha formulado muito antes, a 24 de junho de 1819, na memorável sessão em que se despediu da Academia de Ciências de Lisboa, ao ter de regressar para o Brasil: "Consola-me igualmente a lembrança de que da vossa parte pagueis a obrigação em que está todo o Portugal com a sua filha emancipada, que precisa de pôr casa, repartindo com ela de vossas luzes, conselhos e instruções. E que país esse, senhores, para uma nova civilização e para novo assento da ciência!... Que terra para um vasto e grande império!.."

Assim comenta Latino Coelho esse expressivo trecho onde a alma do patriota vibra cheia de consoladoras esperanças: "As aspirações separatistas aparecem reveladas nos discursos do acadêmico em os tempos derradeiros de sua morada em Portugal" [2].

Se, pois, no mês de junho de 1822 vamos encontrar Gonçalves Ledo pensando exatamente como pensava José Bonifácio - segue-se que o nobre e ardoroso propagandista republicano tinha mudado radicalmente de idéias e, longe de querer a nossa inteira emancipação política sob a bandeira da República, mostrava-se conformado e satisfeito com o regime proposto pelo insigne paulista - a união dos dois países dentro da mais ampla, da mais desafogada autonomia.

Repudiando formalmente suas entusiásticas aspirações anteriores para aderir, em documento público irrefutável, ao plano defendido por José Bonifácio, é fora de dúvida que ele sofreu diretamente, como tantos outros, a irresistível influência daquele notável espírito, adotou o seu ponto de vista, seguiu a sua orientação, submeteu-se à sua voz de comando.

Como, portanto, dizer-se que Gonçalves Ledo foi o Patriarca de nossa Independência - se as provas, os fatos, os documentos proclamam que ele nada mais fez do que se converter, um pouco tardiamente talvez, ao pensamento fundamental de José Bonifácio, que já era chefe do governo havia meses e que, nessa alta qualidade, ia realizando, com serenidade, mas com decisão, os pontos principais de seu programa?

***

A suposta indiferença de José Bonifácio pelos destinos políticos do Brasil

Timbra-se em afirmar e insiste-se em repetir hoje em dia, para diminuir-lhe os méritos cívicos em proveito dos seus diferentes antagonistas e rivais - que o nosso Andrada, ao regressar para o Brasil, com a alma lacerada por acerbas desilusões, abandonara completamente a vida ativa, insulando-se egoisticamente na sua vivenda rústica, a contemplar a natureza que o rodeava, a compulsar seus livros favoritos, a amar a sua gente, a lavrar a sua gleba, a repousar, em suma, das extenuantes lides, das atribuladas labutações a que se entregara cerca de quarenta anos, rudes, ásperos, trabalhosíssimos, no Velho Continente.

E assim se afirma tal coisa, e assim tal coisa com irritante insistência se repete, porque ele, nos seus desabafos entre amigos, quer em palestras como em cartas, manifestava com ardor essa preocupação e esse desejo. E a prova positiva de semelhante tendência de seu espírito, na época a que nos reportamos, está - ao que supõem os implacáveis detratores de seus serviços e de sua glória - na recusa constante, peremptória e sistemática, que opôs a todas as solicitações e oferecimentos que lhe fez d. João VI para ocupar no Brasil altas funções na pública administração.

Entretanto, suas palavras e seus gestos, à luz dos fatos que breve se sucederão, têm que ser entendidos de outra maneira, mais justa, mais lógica e mais simpática: semelhantes gestos e palavras não significavam, de forma alguma, que José Bonifácio pretendesse ficar indiferente à sorte futura de seu país, que tanto amava; mas que era firme propósito seu não mais colaborar com o governo português nas circunstâncias em que nos encontrávamos então perante esse governo.

Nas vésperas de seu regresso de Portugal, já ele surpreendera e pasmara a Academia de Ciências, com a memorável proclamação inicial de que a terra brasileira era uma filha emancipada, que precisava de pôr casa [3]. E a desconfiança, de que nos últimos tempos se via cercado na metrópole, acompanhou-o ciosamente até a colônia, onde se quis habilmente neutralizar-lhe os intuitos, patenteados naquela proclamação audaciosa e arrebatada, acenando-se-lhe com honras, dignidades e posições tão eminentes quanto vantajosas.

E ele fugia a todas essas tentadoras solicitações, escusando-se, modesta e simplesmente, com a extrema fadiga dos trabalhos passados e com o peso de sua respeitável idade - escusa que, por assentada em razões verdadeiras, não podia melindrar o orgulho do monarca solicitante.

É claro que, depois de suas afirmações perante os membros da Academia atônitos, ele somente poderia colaborar com um governo que estivesse disposto a conceder autonomia à filha emancipada, que já estava em tempo de se reger por si mesma, administrando livremente sua casa, seus interesses e seu patrimônio. Aquela exclamação, naquela quadra e dentro daquele recinto, equivale propriamente a um programa político, bem formulado, bem delineado e bem definido - que o orador viria posteriormente executar no Brasil, conforme as circunstâncias o permitissem.

Logo depois, dão-se na Lusitânia os acontecimentos de 1820, que põem na mais febril agitação as almas dos dois países, abrasadas ao calor da liberdade. Cogita-se aqui da nossa eficiente remodelação política, sob a larga base de uma autonomia plena, que nos colocasse em pé de igualdade insofismável com a metrópole; e imediatamente José Bonifácio deixa o bucólico remanso de seu tranqüilo retiro à beira-mar, sob a serra, chega à nossa capital e começa de agir, desdobrando, multiplicando sua portentosa atividade, no sentido de congregar todos os espíritos liberais, quer nascidos no reino como na colônia, em torno de sua idéia capital: a livre união dos dois povos, equiparados entre si dentro de um pacto justo, cabendo a S. Paulo, nesse regime, uma organização compatível com a índole independente de seus filhos, com as tradições de sua história e com as fartas riquezas de seu grande território [4].

Destes dois fatos - o seu discurso acadêmico na capital da metrópole e a sua decisiva cooperação, como figura primacial, nas ocorrências políticas de 1821 em nossa província - tem-se que concluir que ele, quando falava em retirar-se para os Outeirinhos, afastado das agitações de uma longa vida pública mal recompensada e até mesmo injustamente apreciada e julgada, referia-se apenas à sua colaboração com um governo que se achava em franco desacordo com as idéias fundamentais de autonomia brasileira, galhardamente sustentadas no seu aludido e magistral discurso.

Compreendera enfim que o momento era chegado de dar ao seu país o posto que, pela sua importância indiscutível, lhe caiba de fato e de direito, na união das duas pátrias. O Brasil, pelo talento, pelo preparo e pela atividade de seus filhos principais; pela extensão de seu território, pelas suas imensas riquezas agrícolas, florestais e minerais, não podia mais permanecer na subalterna posição de colônia de uma nação decadente, que, nas recentes lutas napoleônicas, se cobrira de ridículo diante do mundo inteiro.

Forçoso era, portanto, trabalhar em tal sentido; mas de modo prudente, circunspecto, ponderado, para que, por tentativas impensadas e prematuras, a obra não fracassasse como nas tentativas anteriores, como na última heróica revolução pernambucana, cujos cabeças tinham pago com a morte ou com o calabouço o gesto feito para redimir a Pátria.

Embora não tivesse estado até então nos centros de maior agitação cívica, tais como o Rio de Janeiro e a capital de S. Paulo, insuflando com a sua palavra e com os seus conselhos um movimento que ainda não tinha contornos orgânicos bem acentuados, ele, no seu voluntário exílio dos pitorescos Outeirinhos, preocupava-se intensamente com o problema em debate e com o melhor meio de resolvê-lo positivamente.

É para nós fora de toda a dúvida - repetimo-lo - que o seu plano de organização autonômica, a que nos temos referido por mais de uma vez, fora esboçado durante esse retiro, porquanto, de suas diferentes disposições tomadas em conjunto, verifica-se que d. João VI ainda se achava no Brasil e a revolução portuguesa não estalara ainda dentro dos muros da cidade invicta.

Logo que o liberalismo, triunfante no Porto, dominou Lisboa, e que desse notável sucesso se teve pleno conhecimento entre nós, as idéias de José Bonifácio, sob o influxo das novas e inesperadas circunstâncias que aquela revolução criara para os dois países, modificaram-se de modo sensível, concretizando-se pouco depois nas sábias instruções redigidas para orientação dos deputados paulistas nas Cortes prestes a se reunir na metrópole.

É que já então o futuro estadista, ampliando e melhorando alheias concepções anteriores, entrevira nitidamente a possibilidade, as vantagens e a conveniência de uma forte aliança política luso-brasileira, tendo por duplo centro de gravitação as duas capitais, com a permanência alternada do soberano ora numa, ora noutra, pelo tempo que a Constituição julgasse indispensável às necessidades especiais de cada povo e consentâneo com o permanente e recíproco interesse de ambas as nacionalidades.

Como já tivemos oportunidade de salientar linhas atrás, esse regime conduziria o Brasil, dentro em pouco, a uma separação radical, talvez sem os abalos que nos atormentaram, sem os atritos que se sucederam, sem os injustos rancores, as vivas hostilidades, as prevenções perturbadoras que, por longo tempo, atentaram contra a cordial fraternidade que devera sempre reinar entre as duas porções da mesma pátria, o que redundou deploravelmente num sacrifício incalculável para seus mútuos e grandiosos interesses industriais, morais e intelectuais.

A independência brasileira, que seria, em termo não muito longínquo, o remate fatal da união imaginada e proposta por José Bonifácio, aos dirigentes d'aquém e d'além-mar, manteria utilmente, através das idades e apesar das distâncias, a imperecível unidade moral das duas raças, muito mais garantida, mais eficiente e mais segura do que a forçada sujeição material de uma a outra, porque repousaria nobremente no livre e desinteressado consenso de ambas, que teriam deslumbrado o mundo, ao mesmo tempo cobrindo-se de perpétua glória, com esse raro e sugestivo exemplo de edificante solidariedade.

A mais nova daria à mais velha, para retemperar-lhe a alma desfalecida nos combates da civilização, os influxos ardentes de seu juvenil organismo que a seiva tropical enriquece e vitaliza; e a mãe-pátria ministraria em troca à filha inexperiente sisudos conselhos práticos, hauridos nas mais tremendas provações históricas.

Não quis, porém, a inópia dos estadistas de lá e a impaciência patriótica dos lutadores de cá, que as coisas se passassem como as concebera prodigiosamente o cérebro de José Bonifácio; e o resultado é que ainda hoje nos batemos, quase improficuamente, para converter em realidade concreta a grandiosa utopia dessa unidade moral.

Missões intelectuais vão e vêm; embaixadas políticas transportam-se de um a outro país; convênios comerciais celebram-se entre os respectivos governos; os poetas, os pensadores, os jornalistas, os homens de ciência correspondem-se, trocam idéias, permutam impressões, cortejam-se amavelmente de lado a lado, mas o aspecto prático da questão mantém-se o mesmo porque, no fundo dessas manifestações espirituais das elites de cada nação, ainda latejam vagos pressentimentos de desinteligências futuras, remanescem prevenções do passado; percebe-se que não se aproveitou o tempo transcorrido num trabalho sincero de aproximação, que hoje estaria produzindo ótimos frutos, se a emancipação se operara em condições menos anormais, por sucessivas gradações periódicas.

Tão depressa viu José Bonifácio que a resistência lusa e o ardor brasílico embaraçavam-lhe os planos, não lhe permitindo dar à crise a solução pacífica que imaginara - tratou de aceitar a luta no terreno onde as Cortes Constituintes de Portugal, com a maior imprudência, queriam vê-la travada. Ao fogo nutrido dos canhões de terra e de mar, conquistamos à força a nossa inteira independência, pelas sucessivas derrotas que infligimos aos exércitos e às naus de guerra portugueses; e da forma violenta por que conseguimos essa conquista resultaram as recíprocas hostilidades e desconfianças, que tornaram extensiva aos próprios sentimentos morais a separação que somente devera ter-se realizado na estrita esfera das competições políticas, onde os interesses capitais dos dois povos se tornaram antagônicos realmente, tanto pela excessiva relutância da mãe-pátria em aceder aos justos apelos de sua importante colônia, como pelo demasiado radicalismo desta que, na intransigência de seu orgulho nativista, não consentia em fazer quaisquer louváveis concessões àquela.

Mas, o que é incontestável é que José Bonifácio, no período que decorre entre a sua volta ao Brasil e o seu ingresso na atividade política propriamente dita, como representante dos povos de Santos e S. Vicente no movimento que se desdobrava sobre o duplo cenário paulista e brasileiro - não se conservou indiferente à sorte de seu país natal; nesse instante decisivo de nossa história, ele, no recolhimento de sua casa campestre, pensava sempre no futuro da Pátria natal em formação incipiente, confiando ao papel os projetos de construção política que no seu pensamento solitário se formavam; e quando o momento lhe pareceu oportuno, propício o desenrolar dos fatos, azada e benfazeja a intervenção de sua vontade, não o deteve a menor hesitação: o pensador fez-se estadista e trocou as doces quietações de seus estudos pelas agras responsabilidades do poder, imprimindo desde logo, com a mais pronta e decisiva energia, uma direção orgânica e sistemática aos impulsos patrióticos da alma nacional, que ansiava pela independência imediata, mas não sabia como promovê-la, como realizá-la, como organizá-la praticamente, com a certeza absolutamente certa de que os seus anelos e os seus esforços não seriam esmagados pela força brutal da reação portuguesa.

Nessas conjunturas, torna-se José Bonifácio digno do laurel de Patriarca com que a Pátria agradecida coroou triunfalmente seus extraordinários serviços à causa da Independência, naquela hora de cruciantes angústias e penosos sobressaltos para todas as almas verdadeiramente cívicas.

Patriarca não é apenas o jornalista que divulga inicialmente uma idéia, o tribuno que a propaga nos torneios da eloqüência ou o revolucionário destemido que combina conspirações no recesso misterioso das associações secretas; pois, em tal caso, nossa Independência contaria um sem-número de patriarcas maiores ou menores, segundo o eco produzido no espírito público pelo vigor de suas palavras, pelo brilho de seus discursos, ou pela magnitude de seus feitos práticos.

O povo brasileiro seria, afinal de contas, o único, o legítimo patriarca da memorável jornada, porque vibrou com esses jornalistas, porque aplaudiu esses oradores e secundou a ação conspiratória desses revolucionários.

Quando, porém, se pensa que a entusiástica aspiração geral flutuava dispersa e não sabia como positivar-se em fatos concretos; e foi José Bonifácio quem sabiamente encaminhou para um só objetivo todas essas errantes aspirações populares - havemos forçosamente de concluir que foi ele o herói supremo da gigântea luta.

Não ignoramos que vultos prestigiosos apresentavam para a crise a solução republicana, mas ninguém sabe de que meios, de que planos, de que forças dispunham para conseguir esse ousado desideratum, pois todos os dados que nos fornece a história para podermos julgar dos acontecimentos da época, levam-nos à plena convicção de que a República seria o fracasso completo da Independência, porque dividiria o Brasil em partes que restariam fiéis ao governo da mãe-pátria e noutras que acompanhariam solidariamente a perigosa aventura radicalista.

Ainda que esta não fosse esmagada e se tornasse vencedora em certas regiões, as outras, as que estão, por exemplo, localizadas mais para o Norte, permaneceriam ligadas à Metrópole e quando chegasse a vez de se emanciparem, o que teria fatalmente de acontecer, é claro que não voltariam mais a reintegrar-se no conjunto a que haviam pertencido.

Seria o despedaçamento irremediável do maciço bloco brasileiro, polipartido, fragmentado, dispersado em várias repúblicas de pequena extensão e pouca força, sujeitas, no interior, à ambição dos régulos ousados, com perda de sua liberdade, e, no exterior, expostas à constante ameaça dos povos conquistadores, com perda de sua autonomia.

Quem, com a sua política, impediu esse tremendo fracasso foi José Bonifácio, que se opôs energicamente à tentativa republicana e concentrou em torno da simpática e varonil figura do príncipe regente todas as aspirações de liberdade e independência que inflamavam o coração de nossos compatriotas. Basta isso, par que lhe pertençam integralmente as honras principais do grande fato, e ninguém lhe possa disputar com justiça o título de Patriarca - que a Pátria agradecida lhe outorgou, sob os aplausos irrevogáveis da Posteridade.

Neste volume, em que narraremos com fidelidade e comentaremos com imparcialidade os fatos da Independência - é nosso intuito, arrojado talvez, provarmos tudo quanto asseveramos nestas considerações preliminares. Não são apenas os documentos, na aparente positividade de suas expressões categóricas, que confirmam ou destroem a possibilidade de um sucesso ou a franqueza de uma opinião.

O critério de um escritor que mede a responsabilidade moral de suas atitudes; a lógica desapaixonada de seus argumentos; a firme e natural sinceridade de suas convicções, podem, algumas vezes, mudar sem fraude a fria significação de um documento qualquer. Basta submetê-lo a uma análise rigorosa, confrontá-lo com outros documentos escritos, pô-lo diante dos fatos que queremos esclarecer, estudá-lo com isenção e com método, no só honrado intuito de arrancar de suas palavras a verdade que buscamos - para que cessem as dúvidas e as confusões se desfaçam.

Está subentendido que somente nos referimos a sucessos de há muito passados e a vultos de há muito desaparecidos, sobre os quais a História, por insuficiência da documentação respectiva, ainda vacila na formulação de seus arestos finais.

Não é este, precisamente, o caso de José Bonifácio, sobre cujo papel nos acontecimentos de 1822 a História já pronunciou seu último julgamento. Os documentos que a tal respeito existem não precisam de hábeis interpretações para falarem a verdade quanto ao insigne varão e aos fatos em que tomou parte: é suficiente lê-los de boa fé para que tenhamos a convicção de que a Posteridade não errou, colocando-o no centro do movimento emancipador e dando-lhe as honras de principal organizador de nossa Pátria, de Patriarca de nossa Independência.

José Bonifácio de Andrada e Silva (ao tempo da Independência)

Imagem publicada com o texto


NOTAS:

[1] Sermão da Terceira Dominga do Advento.

[2] Elogio Histórico de José Bonifácio, 1ª edição, página 36.

[3] Discurso histórico na sessão pública de 24 de junho de 1819, da Academia de Ciências de Lisboa (Memórias da Academia, tomo VI, parte II).

[4] Neste ponto, cabe-nos o dever de retificar uma informação que nos ministra o saudoso e competente historiador, dr. António de Toledo Piza, nas suas Chrónicas dos Tempos Coloniaes. A propósito do suplício do Chaguinhas (página 9), narra-nos ele, com abundante cópia de interessantes pormenores, os sucessos paulistanos de 1821, conseqüentes à revolução portuguesa do ano anterior; e afirma textualmente que "José Bonifácio, que se achava a passeio nesta Capital", fora então convidado pelos revolucionários para presidir a reunião de que devia sair eleito o governo provisório, de origem popular, em substituição do governador e capitão-general que administrava S. Paulo por direta delegação d'El-Rei.

Engana-se o provecto e erudito investigador da história paulista e do passado brasileiro: José Bonifácio não se encontrava na Capital meramente a passeio; ao contrário, para aqui viera, de ânimo deliberado e expressamente para tomar parte nos acontecimentos que se estavam desenrolando, na qualidade especial de representante dos compromissários de Santos e S. Vicente, que, de acordo com as instruções reais de 7 de março de 1821, o elegeram, com mais três representantes, em junta eleitoral de 16 de abril do mesmo ano, para intervir nos referidos acontecimentos, como se verá detalhadamente exposto no lugar competente deste volume.

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