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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - Raul Soares - BIBLIOTECA NM
O navio-prisão (4-J)

Clique na imagem para voltar ao índice do livroUma das páginas negras da história santista

 

Este é o texto integral do livro de Nelson Gatto, que a censura do regime militar mandou apreender e destruir. Um raro exemplar remanescente foi cedido a Novo Milênio para esta edição digital, pelo jornalista Carlos Mauri Alexandrino, em 2012.

Impresso pela paulistana Edimax, com 154 páginas e capa de Wilson Cocchi, sem data (foi escrito e apreendido em 1965), tem agora sua primeira edição digital (com ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 127 a 138):

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RAUL SOARES

Navio presídio

A outra face da "Revolução"

Nelson Gatto

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Operação resfriamento

Além dos presos políticos, diariamente chegavam alguns cães ao navio. Os marinheiros apanhavam os cachorros na terra e carregavam na lancha para o Raul Soares. A coisa chegou a tal ponto que chegamos a ter a impressão de que estavam prendendo cães vadios como subversivos.

Por todos os cantos, em todos os corredores, animais imundos e sarnentos, coçando suas pulgas; alguns eternamente com o focinho nos caldeirões da comida a ser servida aos presos, mas isso jamais chegou a causar tanta repugnância como as vestes imundas do marinheiro nordestino encarregado de apanhar o feijão e o arroz com uma concha e jogar na bandeja de cada um.

Um animal mais magro, esquelético mesmo, que os marinheiros chamavam de Elza, muito embora fosse macho, era o que mais estripulias fazia no navio. Ficou conhecido dos presos como Hugo, não como uma ofensa à sua condição de cão, mas sim como homenagem ao tenente Hugo Freitas.

Através das vigias, diariamente víamos um mesmo espetáculo se repetindo: pescadores menos avisados, que passavam com suas embarcações a menos de duzentos metros do navio-presídio, eram perseguidos por lanchas da Polícia Marítima, detidos e conduzidos a bordo para serem interrogados. Eram submetidos a interrogatório durante horas a fio, muito embora nunca tenha sido positivado tratar-se de espião de potências estrangeiras procurando conhecer os segredos do Brasil.

Alguns estavam com seus barcos carregados com cachos de banana. enquanto permaneciam no navio, respondendo às perguntas feitas pelos oficiais da Marinha, soldados da Marítima se encarregavam de roubar grande quantidade de cachos que deveriam se transformar em dinheiro para a alimentação de numerosas crianças filhas dos pobres caiçaras.

Uma manhã, fomos surpreendidos por uma ordem taxativa baixada pelo bravo capitão Astolpho Migueis: nenhum preso poderia, dali para a frente, receber frutas ou doces enviadas por seus familiares. Proibiu, no mesmo dia, que os que estivessem no arejamento, fizessem qualquer espécie de ginástica para desentorpecer os músculos.

Durante os 43 dias em que estive preso incomunicável - sem almoçar, sem jantar, dormindo sem qualquer roupa de cama, num cubículo imundo, cheio de pulgas e percevejos - saí apenas 8 vezes (meia hora por vez) para tomar ar no tombadilho.

Certa feita, fui retirado do arejamento e proibido de sair nos dias subsequentes para esticar as pernas. O motivo chegou a ser engraçado: caminhava em silêncio pelo tombadilho quando um outro preso, Domingos Garcia, presidente do Sindicato dos Estivadores, colocou-se ao meu lado e perguntou se eu trabalhava com certo repórter. Assenti com a cabeça e ele perdeu a calma:

"Pois então você tem que tomar providências. Eu comprei um terreno dele na Ilha bela e já paguei muito dinheiro. Agora estou preso, não posso pagar e minha esposa disse que ele ameaça tomar o terreno de volta. Você precisa tomar providências..."

Dominguinho gritava.

Tentei acalmá-lo, explicando que nada tinha com a venda de terreno. Era tarde. Um oficial da Marinha, que nos observava da ponte de comando, mandou que fôssemos conduzidos à sua presença. Escoltado por quatro soldados, fui o primeiro a ser conduzido à sala dos oficiais. Um tenente - tenente Castelo Branco, por sinal dos mais dignos oficiais da Marinha que os presos foram encontrar no navio-prisão - perguntou se eu não sabia que era proibido conversar durante o arejamento. Respondi que sabia e ele voltou-se então para os homens da Polícia Marítima:

"Ele fica sem arejamento. Podem recolhê-lo".

Muitos dias depois, o cabo Jair, da Polícia Marítima, abriu a porta de meu xadrez e disse que eu havia sido autorizado a sair novamente para o arejamento. Pálido, barbudo e enfraquecido, atravessei o corredor em companhia de outros presos que caminhavam em fila. Minha aparência era de doente, pois raramente fazia a barba.

Todos os sábados, pela manhã, para melhorar a aparência dos que podiam receber a visita semanal, os homens da Polícia Marítima entregavam giletes aos presos e autorizavam que se barbeassem. A mesma gilete tinha que servir para vinte ou trinta homens, sendo levada de xadrez em xadrez pelos guardas, que tomavam todo cuidado para que uma gilete não se extraviasse, pois poderia ser transformada em arma por algum preso...

Como para mim as visitas estivessem terminantemente proibidas e houvesse poucas giletes em uso - compradas em terra com dinheiro que os prisioneiros eram obrigados a entregar aos sargentos da Polícia Marítima - só permitiam que eu me barbeasse de duas em duas semanas. Isso e a fraqueza em que me encontrava me deixava com aspecto de doente. De fato, eu estava doente. Com um começo de bronquite contraída no xadrez úmido onde tinha que permanecer dia e noite.

Andava de um lado para outro do convés quando fui chamado pelo tenente Antônio Rodrigues. Um cabo da Marinha batia fotografias de presos e de grupos de elementos da Polícia Marítima. Mas batia as chapas contra o sol, motivo pelo qual resolveram me consultar.

"Eu vi no jornal as belas fotografias que você tirou durante a guerra na Argélia. Você entende de fotografias mais do que todos nós. Diga, pois, uma coisa: ele não está batendo as chapas em posição errada?"

Expliquei que o cabo deveria ficar de costas para o sol, pois, da maneira como tirava as fotos, as chapas sairiam todas veladas. O tenente apanhou a máquina das mãos do cabo e ordenou:

"Tome a máquina. Bata você uma chapa de nosso grupo".

Contrafeito, apanhei a máquina e bati duas fotografias. Propositalmente, cortei a cabeça do tenente Rodrigues, tipo prepotente e boçal, só enquadrando no visor os seus subordinados. Pensei mesmo em me recusar a bater as fotografias, mas se assim fizesse, por certo seria punido novamente com o calabouço, com o famoso "El Moroco".

Batida a chapa, continuei andando em círculo pelo tombadilho, até terminar o arejamento. Vi que o cabo da Marinha mudara o filme e continuava batendo fotografias a três por dois, formando vários grupos de homens da Marinha para os retratos.

Aproveitando o descuido dos guardas, troquei algumas palavras com os sargentos presos, em cujos olhos via-se ódio. Ódio contra o tratamento recebido, ódio contra o capitão Francisco Renato de Melo, presidente de um IPM que os prendia; para, logo a seguir, fazer propostas desonestas às suas esposas. Diariamente conhecíamos novos fatos sobre o procedimento do capitão Melo e o radialista Orfeu Sales Santos chegou a solicitar do comandante do navio permissão para se dirigir, por escrito, ao comandante da 4ª Zona Aérea, denunciando o baixo procedimento do oficial.

Sábado e domingo eram os dias aguardados com maior ansiedade pelos presos. Muitos tinham visita de familiares nesses dias e recebiam notícias de fora que transmitiam, em cochichos, nas filas do café ou durante o arejamento, aos que, como eu, estavam em completa incomunicabilidade. Foi numa dessas ocasiões que tomei conhecimento da morte do diplomata San Thiago Dantas.

Nos dias de visita, eu passava o tempo pendurado nas grades da vigia, vendo dezenas de mulheres do povo, mal vestidas, com o estigma do sofrimento no rosto, arrastando crianças de ar abobalhado atrás de si, subirem as escadas para visitar os parentes encarcerados a bordo. Era sempre um sacrifício para aquelas mulheres - mães, filhas e esposas - a subida ao navio. Desembarcavam da lancha da Marítima numa plataforma de madeira amarrada ao lado do navio, onde ia dar a perigosa escada que conduzia ao convés. Numa dessas visitas, Caricati retornou com lágrimas nos olhos. Não soubera responder de pronto à pergunta formulada por seu filhinho:

"Papai, quando o senhor vai voltar para casa?"

Embaraçado, olhando do rosto da esposa para o do oficial da Marinha, que vigiava a conversa, respondeu constrangido depois de algum tempo de silêncio:

"Papai está pescando... Quando acabar de pescar poderá voltar para casa..."

Nos dias de chuva, quando se encontrava de serviço o crápula Ariovaldo, os presos mais sofriam. Bastava começar a chover para que ele mandasse colocar os caldeirões de comida na proa do navio, obrigando os homens a atravessar o tombadilho na chuva para apanhar a bandeja, molhando-se inteiramente, ficando com a roupa no corpo até secar por não existir outra para mudar.

Alguns apanhavam a comida e corriam de volta para o corredor coberto para evitar que o arroz e o feijão ficassem transformados numa sopa pastosa. Numa dessas corridas, o advogado Ascendino Vieira escorregou e levou violento tombo. A bandeja voou no ar, a comida se espalhou pelo convés e por pouco o preso não teve as costelas fraturadas.

Mesmo na chuva, jamais deixei de andar em passo normal, o que mais irritava os carcereiros. Sempre procurei ignorar a presença do boçal junto aos caldeirões de comida. Limitava-me a apanhar a laranja ou a banana e, sem tocar na bandeja, continuava na fila para retornar ao xadrez.

Dois dias após terem sido tiradas as fotografias, houve grande alvoroço no navio: os oficiais da Marinha proibiram o arejamento. Reforçaram o policiamento e tomaram medidas excepcionais de segurança, temendo nem eles mesmos sabiam o quê. Foram suspensas as filas para apanhar alimentação no corredor. Os presos saíam em dois ou três, debaixo de severa vigilância. Contingentes de fuzileiros navais foram mandados para o navio. Fuzileiros armados com submetralhadoras corriam de um lado para outro, com ordens expressas de não trocar uma única palavra com os presos ou com os homens da Polícia Marítima. A missão deles, logo se viu, era de vigiar os homens da Marítima que nos guardavam.

Nos corredores onde estão localizados os xadrezes, enormes maçaricos, empunhados por mãos inábeis, trabalhavam dia e noite. Placas de ferro foram cortadas e preparadas aberturas onde seriam colocadas metralhadoras pesadas. O ambiente foi se tornando cada vez mais inquietante. Até mesmo os guardas dos corredores temiam pelo que pudesse ocorrer de um momento para outro.

O médico Bernardo Boris foi o primeiro a ser conduzido à presença de uma comissão especial de inquérito integrada por oficiais da marinha de Guerra para depor sobre as fotografias tiradas e que foram apreendidas com o cabo. Boris tinha que explicar o motivo pelo qual aparecia em várias fotos. O dono da máquina fora preso e posto incomunicável a bordo de um vaso de guerra fundeado em Santos. O aparelho fotográfico, apreendido e anexado aos autos do inquérito.

Manoel de Almeida foi interrogado durante longas horas. Queriam saber se ele dera dinheiro ao cabo para comprar o filme ou mandar fazer as cópias das fotografias, duas das quais foram encontradas em seu xadrez. O advogado Ascendino foi interrogado durante um dia inteiro. Ninguém sabia o que ia acontecer. Na fila do café, pela manhã, todos cochichavam, murmurando que as coisas seriam ruins para mim que batera duas fotos.

Uma tarde, fui retirado do xadrez e conduzido à presença dos oficiais encarregados do inquérito. Fui o último a ser ouvido.

Três tenentes da Marinha receberam-me numa pequena sala do lado da ponte de comando. Um deles - ao que parece João Alberto Coutinho - apanhou a máquina fotográfica de sobre a mesa, ergueu-a à altura de meu rosto e perguntou:

"Você conhece esta máquina?"

Respondi que não, pensando que ele estivesse perguntando se eu conhecia o funcionamento daquela câmera.

Ante minha resposta, os três oficiais se entreolharam e disseram a um só tempo:

"Olhe bem, veja se você não conhece mesmo..."

"Não, não conheço. Estou acostumado a trabalhar com Roleiflex e com Yashica. Essas eu conheço bem.."

"Não é isso o que estamos perguntando. Queremos saber se você nunca teve ESTA máquina aqui em suas mãos..."

"Ah, isso? Sim, peguei uma tarde, por ordem do tenente da Marítima que se encontrava no comando da guarda. E por ordem dele bati duas chapas de um grupo de sargentos de sua corporação..."

"Pois você vai responder a um inquérito por isso."

Esbugalhei os olhos. Fiz ver aos oficiais o ridículo a que se expunham tomando tal medida. Um inquérito policial-militar por causa de fotografias tiradas a bordo por ordem do oficial encarregado da guarda dos presos. Os tenentes procuraram explicar-me que tirar fotografias em presídios constitui crime militar e por isso tinham que fazer o inquérito. O tenente Rodrigues já estava proibido de dar serviço no navio e fora indiciado no inquérito.

De repente, os três oficiais tiveram que suspender o interrogatório a que me submetiam. É que assomara à porta o tenente-coronel Sebastião Alvim, que fora a bordo para interrogar alguns presos do Exército. Todas as sextas-feiras o militar ia ao navio para interrogatório de presos. Os oficiais da marinha receberam com cortesia o coronel do Exército e mandaram que um marinheiro lhe fosse buscar um copo com água gelada no compartimento vizinho. Ignorando minha presença, o oficial do Exército foi dando as novidades:

"Ah, tenho grandes notícias. Apreendi uma carta de um professor de Medicina enviada dos Estados Unidos ao Thomaz Maack. Agora ele terá que confessar suas atividades subversivas, pois o homem que escreveu a carta é conhecido como esquerdista. Ele jamais será solto. Comigo a coisa é assim: se for concedido habeas-corpus pela Justiça e eu tiver que soltar qualquer um de meus presos, mandarei logo que outra comissão de inquérito o prenda para indiciá-lo em outro IPM. Da mesma maneira, se um preso de outra comissão for solto pela Justiça farei o mesmo, isto é, mandarei prendê-lo para indiciá-lo em outro inquérito qualquer. Estamos por cima e devemos fazer o que bem entendermos para mostrar que somos nós que mandamos".

Após tais explicações, o tenente-coronel deu uma gargalhada, demonstrando a grande alegria de que estava possuído. Referiu-se, a seguir, a um preso nipo-brasileiro, um pobre diabo magérrimo, de uns trinta e cinco anos, com uns quarenta quilos de peso, de óculos de grossas lentes. Tomochi Sumida, o japonesinho que vi algumas vezes no arejamento e que me inspirava piedade dado o seu estado físico - parecendo mesmo um homem recém-saído de um campo de concentração nazista - era também preso do tenente-coronel Alvim.

"Pois é - disse o oficial do Exército - hoje continuarei a operação de resfriamento do Sumida. Ele vai ver que comigo a coisa não é brincadeira..."

Dando uma gargalhada, saiu da sala para o compartimento vizinha. Os oficiais da Marinha, em minha presença comentaram o "método de resfriamento" por ele usado. Mais tarde, em conversa com outros presos na fila do café, confirmei a barbaridade. Todas as sextas-feiras, o tenente-coronel Sebastião Alvim ia ao navio para colocar Sumida dentro de uma geladeira. De duas em duas horas, soldados armados com metralhadoras abriam a porta durante 10 minutos para entrar ar e fechavam novamente. A coisa se repetia o dia inteiro. À noite, quando se retirava do imundo navio, o tenente-coronel do Exército ia de rosto alegre, satisfeito por ter cumprido, cristãmente, sua gloriosa missão de militar...

Depois de interrogado pelos três oficiais da marinha, sobre as fotografias, disseram que u seria chamado novamente para assinar o depoimento que haviam tomado à mão e que deveriam passar à máquina. Antes de ser levado outra vez para o xadrez, os três tenentes queriam que eu contasse quais eram os homens da Polícia Marítima que vendiam cachaça aos presos. Cheguei a rir. Se, para adquirir uma escova de dentes, tive que gritar durante muitos dias, se não conseguia, sequer, comprar um sabonete, como perguntavam tal infantilidade sobre venda de cachaça a bordo? Um tanto sem jeito ao absurdo da pergunta, os oficiais determinaram que eu fosse novamente conduzido ao imundo e escuro cubículo.

À noite pendurado nas grades, contei ao Caricati o interrogatório a que fui submetido. Ele também deu novidades: ao lavar o chão da cozinha, ouvira uma notícia engraçada numa emissora de rádio. As autoridades brasileiras propunham às autoridades uruguaias a troca do deputado Leonel |Brizola, asilado naquele país, por grande partida de trigo!... A coisa chegava a parecer piada, principalmente levando-se em conta a celeuma levantada no Brasil quando Fidel Castro quis trocar prisioneiros cubanos por tratores e caminhões.

Conversávamos calmamente, ao sermos pressentidos por um sargento fuzileiro que estava debruçado na amurada da cozinha, bem sobre nossas cabeças. Acompanhado de muitos soldados, o sargento invadiu nossos xadrezes, vistoriou tudo e, nada encontrando, comunicou a irregularidade - conversa de dois presos - ao comandante do navio encalhado.

No dia seguinte, o cabo Jair, da Polícia Marítima, abriu meu xadrez para uma importante comunicação: por ordem do capitão Astolpho Migueis, eu não sairia mais do cubículo, nem mesmo para as necessidades fisiológicas no imundo banheiro coletivo.