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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - GREVE! - LIVROS
Uma saga em um porto do Atlântico (8)

Em 1994, durante a gestão do prefeito David Capistrano, do Partido dosClique nesta imagem para ir ao índice da obra Trabalhadores, diversas publicações foram produzidas pela Prefeitura Municipal, resgatando a história de Santos e especialmente a sua atividade sindical. Uma dessas obras é o livro Caixeiro, Conferente, Tally Clerk - Uma saga em um porto do Atlântico, dos jornalistas Paulo Matos e Carlos Mauri Alexandrino, aqui reproduzido integralmente a partir de sua edição única, de março de 1996.

Com 144 páginas e ilustrações (registros CDD - 331.879816 - M433c), o livro inclui ainda textos de Marcos Augusto Ferreira e fotos de Carlos Nogueira, dos arquivos do Sindicato dos Conferentes de Santos e do Departamento de Comunicação da Prefeitura. Esta primeira edição digital, por Novo Milênio, foi autorizada em 19/2/2010 por Paulo Matos. Veja:

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Caixeiro - Conferente - Tally Clerk

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 Uma saga em um porto do Atlântico


Recriação em line-art digital de detalhe de foto anônima do navio Raul Soares, que serviu de cárcere para os presos políticos de Santos, logo após o golpe militar de 1964

Imagem: reprodução parcial da página 77

 

Capítulo IV - Os tempos de ferro

O difícil período que se seguiu ao golpe de estado, a perda de direitos, as mudanças ao sabor dos donos do poder e o longo caminho de volta

"Atenção para as janelas do alto, atenção ao pisar o asfalto, o mangue, você vem? Atenção, menina, quantos anos você tem? É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte".

Caetano Veloso falava das passeatas estudantis de 1968, contestando o golpe de estado ocorrido quatro anos antes e que, aparentemente, podia ser enfrentado nas ruas pelo grito de "abaixo a ditadura" de punhados de jovens entusiastas.

Os mais velhos, que haviam enfrentado os porões do golpe já em seu início, sabiam que deviam preparar-se para uma resistência prolongada, porque seria bem longo o caminho de volta. E que seria preciso viver, prosseguir, navegar, mais que nunca, navegar.

Em Santos os trabalhadores adivinhavam o que estava por vir depois daquele agitado 1968. O Brasil inteiro sentiria em sua pele nos anos seguintes o que a cidade rebelde conheceu antes.

31 de março de 1964. O golpe militar está nas ruas. Encarado como uma área de segurança nacional, o porto não é mais de quem nele deixa o suor para ganhar a vida. É agora guardado por olhares de soberba arrogância, que se sustentam empunhando armas e patentes. Há quem acredite que é a verdadeira revolução e marche em favor dela.

A Marcha da Família com Deus pela Liberdade leva milhares de pessoas às ruas, mobilizadas em nome da retomada da ordem e do civismo, dando sustentação ao golpe e lutando contra coisas que poucos compreendiam o que significavam: "comunismo, subversão, anarquismo sindical" são termos usados para justificar a truculência.

Santos é uma cidade dividida nos primeiros dias de 1964. A classe média e a Igreja Católica, assustadas o suficiente para produzir grandes manifestações "cívicas", foram a base social do golpe de estado, aqui e na maior parte do País.

Com o golpe já fato consumado, instaura-se uma onda de violência e perseguição a todos aqueles que passam a representar "perigo" à ordem que se estabelece. Sindicalistas encabeçam a lista, que constará ainda com músicos, escritores, intelectuais e uma infinidade de cidadãos comuns que só queriam aquilo a que têm direito: a liberdade de viver e pensar.

Estão proibidas as greves e as convenções coletivas. Os trabalhadores e dirigentes sindicais perdem garantias constitucionais.

Orlando dos Santos, também dirigente da União Sindical da Orla Marítima, é destituído da presidência e levado para o navio-presídio Raul Soares, que desde 24 de abril daquele ano havia baixado suas âncoras no estuário, para abrigar os "rebeldes" em seus porões.

Instaura-se no País um processo que objetiva anular toda e qualquer manifestação política. Vão suceder-se atos institucionais, centralizando, cada vez mais, o poder nas mãos dos militares. O primeiro deles, o AI-1, concede o direito ao "Comando Revolucionário" de cassar mandatos parlamentares e coagir o Congresso mutilado a eleger, presidente do Brasil, o general Humberto de Alencar Castello Branco.

Aumenta a ingerência do governo nas organizações trabalhistas. Na área portuária, o capitão dos portos torna-se um poderoso intruso nos métodos de trabalho, acumulando também as funções de delegado do Trabalho Marítimo.

Em Santos, este onipotente cidadão atendia pelo nome de Júlio de Sá Bierrembach, almirante vindo do Rio de Janeiro por determinação do governador paulista Adhemar de Barros. É o almirante quem se encarregará de nomear os interventores para os sindicatos da Baixada Santista.

Além do poder da Delegacia do Trabalho Marítimo, a Superintendência Nacional da Marinha Mercante passa a ser dirigida quase que totalmente pelos empresários do setor, decidindo de acordo com seus próprios interesses, causando prejuízos aos trabalhadores com supressão de direitos adquiridos.

Fecha-se o cerco às organizações trabalhistas. Passamos a enfrentar uma nova luta. Agora, contra a extinção da categoria. Sob a truculência e o chicote dos marinheiros de primeira viagem, tínhamos que dançar conforme a música, para não sermos atirados ao mar da violência que se instaura.

Assim, em 1º de abril, vivemos sob a direção de um interventor. Serafim Mendes chega com o estigma de patronal, mas se não fosse ele, seria um militar estranho à categoria, argumentava-se na época.

Como interventor, Serafim Mendes trazia, também, suas divergências sobre a distribuição do trabalho. Um dos exemplos era justamente com relação ao sistema de rodízio. Desde que fora implantado - argumentava ele numa assembléia em outubro daquele 64 -, não se encontrara a fórmula ideal para o trabalho. Acabava de ser instituído o rodízio por turmas de mando, cada um com 15 trabalhadores. Os filhos dos sócios - mais uma vez - que tivessem completado três anos na profissão seriam aproveitados nos cargos de mando.

Na época, tratava-se de mais um acordo coletivo e, nas negociações no Rio de Janeiro, na Delegacia do Trabalho Marítimo, ficava claro que, tanto o Ministério da Viação quanto o do Trabalho, pretendiam cancelar o rodízio, uma das conquistas dos conferentes.

Na verdade, no início de 1965, nas esferas patronais e do governo federal tramava-se a extinção da categoria. Então, atendendo apelo do presidente da Federação Nacional dos Portuários, Walter Menezes, Serafim vai ao Rio tentar a interferência do ministro da Viação, Juarez Távora, para que o decreto que dava nova forma à "lei dos conferentes" não fosse assinado. Obtém resultado.

O ministro envia aviso interno ao Ministério do Trabalho, afirmando que somente seria permitida a exclusão do rodízio do conferente-chefe; o aviso falava em "ganho excessivo" deste contingente. Em assembléia de 15 de janeiro daquele ano, o interventor relata sua estada no Rio e pede sigilo quanto ao fato narrado. "É um momento delicado", registra a ata da reunião.

A delicadeza do momento transparece não apenas na relação política, mas também na organização do nosso próprio sindicato. A interferência do governo é cada vez maior, acomodando interesses políticos e eleitorais, que servirão de trampolim aos apadrinhados do poder.

Em mais uma intervenção da Capitania dos Portos, Serafim Mendes deixa a direção da categoria. Desta vez, porém, não havia destituição, mas sim uma jogada articulada com a própria Capitania, para que Serafim pudesse candidatar-se a um novo mandato.

Era ilegal que o titular da interventoria concorresse à eleição. Então, como parte do acerto, a Capitania nomeia uma junta governativa, comandada por João Moraes da Silva, que assume em julho de 1965 para um efêmero mandato.

A cartada não passaria de um blefe, pois na eleição Serafim não está sozinho. Para concorrer com ele, surge outro ex-presidente do Sindicato, Nelson Mattos, antigo aliado. O jogo estava trucado. Cartas abertas, Mattos leva a melhor e, em setembro de 1965, assume o cargo, iniciando um verdadeiro império sindical: dirigirá a categoria por seis mandatos consecutivos, até 1982.

Na eleição seguinte, em 67, Serafim Mendes ainda tentaria voltar à direção, mas foi derrotado, como tantos outros que tiveram a mesma idéia. É o tempo certo para Mattos, um momento mais das articulações de gabinete e vias transversas do que das ruas.

Com os militares optando por endurecer o jogo, as batalhas contra a extinção da categoria intensificam-se. Logo que assume, Nelson Mattos inicia a luta pela revogação de uma série de leis e resoluções que trazem em suas entrelinhas artifícios de controle da vida sindical.

A resolução 2.755/65, da Comissão da Marinha Mercante, por exemplo, nos tirava, entre outros direitos, as férias remuneradas e o 13º salário. O decreto-lei nº 127, de autoria do presidente Castello Branco, praticamente extinguia a categoria, convencionando o ganho dos conferentes pelas entidades estivadoras. Eram os contratos individuais e não haveria mais limite de registro de conferentes na Delegacia do Trabalho Marítimo. Além disso, nós só seríamos requisitados em quantidade estabelecida pelas entidades estivadoras. Colocava em risco a organização sindical e, mais, previa o término do pagamento das horas paradas. O decreto foi revogado antes mesmo de ter sido aplicado.

Segundo Nelson Mattos, o primeiro veto rejeitado no Congresso Nacional, de autoria do presidente Castello Branco, foi relativo às férias remuneradas. O Legislativo não permitiu a anulação desse direito e, contrariado com tal decisão, Castello Branco não regulamentou a lei. Como lei não regulamentada não é auto-aplicável, nós tivemos que esperar por muito tempo e só no governo Costa e Silva passamos a receber o benefício.

A categoria conseguiu inviabilizar, também, um projeto de lei da Superintendência Nacional de Marinha Mercante, de 1969, que atribuía às entidades estivadoras a competência para fixarem os ternos, as equipes de trabalhadores avulsos para cada trabalho.

Conseguimos reverter uma mensagem do presidente Emílio Garrastazu Médici, transformada em lei, que enquadrava os trabalhadores avulsos como autônomos, obrigando o pagamento da Previdência Social, da contribuição em dobro, além de prejudicar nas férias e no 13º salário.

Outro ataque superado pelos conferentes foi quanto à redução dos salários do trabalhador avulso, prevista em mais uma resolução do governo. Esta limitava a equipe de trabalho e excluía os conferentes nas escalações para operações de granéis sólidos.

Os exemplos são muitos e tornam-se enfadonhos se forem relatados minuciosamente. Mas os fatos enumerados aqui dão a dimensão do poder que os golpistas haviam se atuo-conferido.

Os acordos não eram tão fáceis como deixa transparecer a narrativa escrita. O Ato Institucional nº 2 (AI-2), editado por Castello Branco em 27 de outubro de 65, havia fechado ainda mais o cerco. Dissolvera os partidos políticos, polarizando a política nacional: ou se apoiava o governo, através da Aliança Renovadora Nacional (Arena), ou ficava-se na oposição, no Movimento Democrático Brasileiro (MDB).

Vereador desde 1956, nosso então presidente Nelson Mattos, antes filiado ao Partido Democrata Cristão (PDC), com a reforma partidária realizada pelos militares, ingressou na Arena. Isso facilitava nos contatos diretos com autoridades governamentais e empresários do setor e abria-lhe espaços políticos na cidade. As conquistas foram muitas no período de Nelson Mattos, não só na área política, como também na social, graças à sua política de boa vizinhança.

Mas chegava-se no final da década de 70 e, após longo período de confronto direto com os militares, com luta armada, guerrilha, torturas e mortes, ventos novos pareciam trazer esperanças.

Com a posse do general João Batista Figueiredo, em 1978, a palavra "abertura" volta a ser utilizada, depois de arrancada do nosso vocabulário político pela sucessão de atos institucionais, principalmente o AI-5, de 13 de dezembro de 68.

Os anos 80 pareciam anunciar novos tempos. As manifestações populares voltam à cena; trabalhadores do ABC paulista voltam a reivindicar seus direitos através da reorganização de suas categorias. Já em 1980 ocorre a primeira greve portuária após o golpe.

Para nós, 1982 seria um ano de mudanças. Chegávamos ao cinqüentenário de nossa organização sindical, sob o impacto de boas novas. A primeira delas: na noite de 25 de junho daquele ano, os trabalhadores do porto puderam voltar mais cedo para casa, pois entrava em vigor a jornada especial de seis horas corridas, no período noturno (das 19 h à 1 hora).

Era o resultado de uma luta iniciada em 1979, quando um ofício fora enviado ao ministro das Minas e Energia, César Cals, e ao do Planejamento, Mário Henrique Simonsen, propondo alteração do horário de trabalho no porto de Santos. O objetivo era melhorar as condições de trabalho e economizar combustível (25% apenas no transporte de trabalhadores da madrugada). O ofício partira do Sindicato dos Conferentes e mudara o secular sistema de trabalho de oito horas (19 h às 23 h e da zero hora às 4 h).

Outra novidade foi o fim do período de 17 anos da gestão de Nelson Mattos à frente do nosso sindicato. A categoria, desmotivada após a eleição de agosto de 9179, quando Matos concorreu com chapa única, viu no pleito de agosto de 1982 a chance de mudar.

Nesta onda de renovação, a oposição liderada por José Bartolomeu de Souza Lima, o Bartô, vence a eleição. É o fim de um extenso mandato e início de um tempo de rearticulação da categoria, em assembléias e comissões de trabalho. Tempo de resgate da cidadania perdida com o golpe.

Mas este processo de mudança não foi tão simples como parece. O que mais tarde transformar-se-ia em abertura política ainda era apenas um ideal sobre o qual começava-se a conversar. Os militares golpistas não entregariam de imediato o jogo e nem haviam deixado de lado o medo pela esquerdização do Brasil.

Bartolomeu tinha tudo o que os militares adoravam combater. Fora militante do Partido Operário Revolucionário dos Trabalhadores (PORT), de tendência trotskista, lutando no Nordeste pela reforma agrária. Atuara também nas Ligas Camponesas de Francisco Julião, em Pernambuco, e quando chegou em Santos, entrou para o movimento estudantil.

Como se não bastasse, viera de Pernambuco perseguido pela polícia, por conta de um processo pela Lei de Segurança Nacional, a partir de 66. Mais: em sua chapa de oposição a Nelson Mattos, trazia novamente à cena Orlando dos Santos, que havia sido destituído da direção do sindicato pelos militares.

Definitivamente, não tinha um currículo suportável pelos donos do poder. Dias antes da eleição no sindicato, em 82, nota na imprensa dava conta da preocupação dos órgãos de segurança com a possibilidade de Bartô vir a dirigir nossa categoria.

As notícias diziam que ele era um "velho conhecido" dos militares, desde o tempo em que, "sob os codinomes de Hugo ou Bartô, adquiriu destaque nas fileiras do comunismo trotskista".

Sob o título de "Eleição em sindicato preocupa", a notícia divulgada na imprensa também falava da condenação de Bartolomeu no processo da Lei de Segurança Nacional. Julgado, ele havia ficado preso em Fernando de Noronha, de 4 de agosto a 2 de outubro de 73, época em que fazia parte da chapa liderada por Antônio José de Toledo, em mais uma oposição a Nelson Mattos, então no auge do seu império sindical.

Numa tentativa de inviabilizar a eleição de Bartolomeu, a mesma nota fora enviada para toda a categoria, pelo correio. Em contra-ataque, José Bartolomeu publica uma Carta Aberta aos Conferentes, esclarecendo os fatos. Entre outras coisas, explicava que a pena aplicada pela Lei de Segurança Nacional, que seria de cinco anos e seis meses, havia sido extinta pelo Supremo Tribunal Militar em 1973, ou seja, nove anos antes da publicação da nota.

Na "Carta Aberta", Bartolomeu afirmava que a distribuição daquela nota para a categoria era parte de uma campanha visando impedir sua vitória nas eleições daquele mês de agosto de 82. Não acusava ninguém, mas jogava uma carapuça a quem quisesse vesti-la.

Nessa onda de ataques, Nelson Mattos desmente que tenha produzido a notícia, mas reafirma seu objetivo: lançar dúvidas sobre a capacidade de José Bartolomeu de negociar com as autoridades constituídas, devido ao seu passado. A política da boa vizinhança ainda deveria ser a lei.

Em setembro de 82, Bartolomeu assume o Sindicato dos Conferentes e inicia uma briga mais direta pela reconquista dos direitos usurpados pela ditadura militar. Começamos do zero, não admitimos a continuidade das mesmas práticas, mudamos tudo. A base estava acomodada, havia o paternalismo e o medo de que uma alteração pudesse trazer conseqüências ruins.

Assim, ele amplia contatos com a Capital Federal e retoma a luta pela volta do repouso semanal remunerado, retirado em 65: desde aquele ano, o dinheiro era apropriado pelas agências e armadores, que não o descontavam do frete cobrado.

Para obter mais força, adota uma prática de realizar assembléias conjuntas com as demais categorias do porto, nas questões de interesse comum. Queria a reorganização a partir das bases, a partir da maior participação dos conferentes. Por isso, lança a imprensa sindical, com o jornal O Conferente, que vai reforçar a luta que se trava.

Se a posse do presidente João Figueiredo, em 78, trouxera um pouco de esperança, a eleição de Franco Montoro, membro da oposição, para o governo de São Paulo, em 82, vai acirrar ainda mais os ânimos. Mas justamente quando a ditadura militar parece dar sinais de que abriria para o diálogo, surgem as primeiras manifestações em favor da privatização dos portos.

Partiam dos armadores e empresas estivadoras, que queriam a criação de terminais privativos. De imediato, a proposta interferiria no ordenamento jurídico das categorias envolvidas com o porto: conferentes, estivadores, vigias e consertadores passariam de avulsos para empregados, com redução do mercado de trabalho, desemprego e aviltamento salarial.

Contra a falácia de que a ineficiência no porto era fruto da má vontade e das greves dos trabalhadores, o nosso sindicato realiza um levantamento em dez navios, no mês de março de 83, apontando os culpados pelas interrupções no trabalho. Naquele período, em 32,6% das horas disponíveis, o serviço estivera paralisado, mas a mão-de-obra havia sido responsável por apenas 0,02% da interrupção do trabalho. A administração portuária, exportadores e transportadores, além de causas fortuitas (chuvas, ventos fortes, neblina etc.) tinham sido responsáveis pela maior parte do tempo perdido.

O levantamento foi enviado ao Ministério dos Transportes, junto com um pedido de inclusão de representantes das entidades sindicais de trabalhadores nos conselhos de usuários do porto. Na pesquisa, os conferentes mostravam os obstáculos que, se vencidos, dariam maior eficiência ao porto. Era nosso primeiro contra-ataque.

O ministro do Trabalho, Cloraldino Severo, garantia que os trabalhadores seriam ouvidos. Sinais de novos tempos? É o que veremos.

Contratada por 33 armadores nacionais e estrangeiros, a multinacional COntainer Transport Technology realiza estudos sobre movimentação de contêineres nos portos de Santos, Rio de Janeiro, Paranaguá e Rio Grande do Sul. Propõe à Portobrás investir no reaparelhamento dos portos, em troca de concessões aos grupos econômicos que representa. Estava em andamento o processo de privatização, embora a Portobrás desse respostas evasivas. O Lloyd arrendaria um terminal de contêineres no porto. A Imprensa noticiava que os estudos já estavam prontos, aguardando apenas a decisão ministerial. Os trabalhadores não tinham sido ouvidos.

Postávamo-nos no front de novas batalhas. Se nos anos 60 e 70 as leis fizeram-se na base da porrada, na década de 80 elas ganhariam legitimidade pelo ritual democrático que cumpriam. Os lobbies tornavam-se cada vez mais presentes no Congresso e na própria Superintendência Nacional da Marinha Mercante. Os deles e os nossos.

Estávamos prontos para enfrentar os desafios dos novos tempos.


Manoel Gomes Duque, um dos fundadores do Sindicato, recebe o título de "Cidadão Santista", na Câmara Municipal, em 26 de dezembro de 1967, num tempo em que se acreditou em uma rápida volta à democracia. No dia 8 de maio de 1969, o general Costa e Silva decretaria o recesso do Legislativo santista, que só voltaria à atividade em 8 de julho de 1970. Mais um episódio a nos lembrar que o poder tinha dono e que Santos não estava em seus planos de "abertura política"

Foto publicada com o texto

O vale-tudo contra o presidente Orlando dos Santos naqueles dias complicados de 64

"Era época de mais um acordo coletivo e eu, representante da categoria, fui ao Rio de Janeiro. Havia um clima político intenso e nós lá, na Confederação Geral dos Transportes. Senti que haviam decisões políticas importantes. Havia uma assembléia de marinheiros no Sindicato dos Metalúrgicos e eu não quis participar. Isso até que o Oswaldo Pacheco da Silva, presidente da Federação dos Portuários, me chama e diz que o ministro quer falar comigo. Me levaram ao Sindicato dos Metalúrgicos, cheio de gente fardada. Que faço aqui? Não uso farda. A questão estava além. Fui para o hotel, arrumei minha mala e fui para o aeroporto". Era o "cabo Anselmo" insuflando a quebra da hierarquia militar, a serviço da articulação do golpe que viria.

Era 30 de março de 1964. Chegando à cidade, Orlando dos Santos não demorou a se certificar de que suas previsões estavam absolutamente corretas; havia um clima intenso, a tensão era enorme.

Já no dia 31, o sindicalista recebe a notícia de que os tanques de guerra, as armas, tomavam as ruas do país. O poder havia sido usurpado pelos militares.

O que fazer? Orlando foi até o Sindicato, onde estava o dinheiro para pagamento dos trabalhadores: "Se a Polícia Marítima invade, nunca mais o veríamos" - era mais uma previsão que certamente se concretizaria. De posse do que lhe interessava, fechou o prédio e foi para um café na Praça Mauá, Centro da cidade. A idéia era comandar, de lá, a categoria.

Não teve tempo. O poder delegado a Orlando através do voto, pela segunda vez consecutiva, também havia sido usurpado. Um interventor assumiria o Sindicato dos Conferentes e precisava das chaves da sede.

A princípio, não existia nenhuma acusação contra Orlando dos Santos que justificasse sua destituição. Mas, para aqueles que se apoiavam na insensatez de um golpe militar, não seria problema algum construir denúncias de fatos que o pusessem como um risco à segurança e à ordem nacional.

"Um cidadão escrivão de polícia, chamado Silveira, cunhado do interventor Serafim Mendes, cuidou de armar a infra-estrutura do golpe local: nomearam uma comissão no sindicato e garantiram: esse cara é comunista", conta.

Pronto. Este era o crime: Orlando era comunista. Fato, no mínimo, curioso. Como explicar que um comunista pudesse ter recebido um voto de pesar do Fórum Sindical de Debates, formado por militantes da esquerda, em função de sua eleição para o sindicato? Mais: militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) não olhavam com bons olhos as mudanças operadas por Orlando junto à categoria. Não provaram nada sobre a origem "vermelha e subversiva" do acusado.

Então, fizeram outra denúncia: Orlando havia se apropriado do dinheiro da categoria, no episódio dos Lacerdinhas, quando uma ação judicial bloqueou os fundos dos trabalhadores e o sindicato teve que garantir os pagamentos. Nem o Tribunal Superior Militar conseguiu condená-lo.

Desistiram? Não. O poder tinha dono e a eles era dado o direito de fabricar monstros, como um Dom Quixote em luta contra inimigos ferozes, ainda que imaginários. Por isso, o episódio dos Lacerdinhas, em que a categoria recusou-se a aceitar a ingerência do governo na formação do quadro profissional, vai influir na decisão de destituir Orlando dos Santos da presidência do nosso Sindicato. Além de dirigente da União da Orla Marítima, que coordena inúmeras greves, ele havia desafiado a justiça dos homes, a que vigorava.

Orlando dos Santos era sindicalista e como tal havia lutado por direitos, coisa que não era do agrado naqueles anos. Por isso, não escapou dos porões do navio-presídio Raul Soares. Foi preso em 4 de maio de 1964.

"Estávamos nas mãos da pior polícia que existia na época, a temível Polícia Marítima. Gente da pior espécie, sem sentimento nenhum, que resolvia tudo na porrada. Só com muita inteligência para não apanhar. Mas só estar ali já era uma tortura. Me colocaram ao lado do forno e depois do lado do frigorífico. Isso abalou minha saúde até hoje", conta ele.


Foto publicada com o texto

"Haviam distribuído lençóis nos xadrezes e o alvoroço indicava que algo estava para acontecer no navio"

Uma manhã, enquanto fazia a contagem de presos,um sargento da Polícia Marítima informava que o navio iria sofrer uma correição da Justiça Militar, requerida pelo criminalista João Bernardes da Silva. Já na véspera havíamos percebido que algo de anormal estava para ocorrer: haviam distribuído lençóis por todos os xadrezes. E, por sinal, lençóis novos, ainda engomados. Em minha cela, onde jamais deixaram um pedaço de pano para me cobrir durante a noite, os guardas colocaram dois!

Logo depois da revista todos foram retirados de suas celas e colocados no convés enquanto dois homens da Secretaria de Saúde dedetizavam os colchões (...)

Cerca de 10 horas, o promotor Durval Moura Araújo, da 2ª Auditoria de Guerra, desembarcava de uma lancha na plataforma improvisada ao lado do Raul Soares. Subiu a bordo acompanhado do oficial de diligências, Alfredo dos Santos, do capitão dos portos, do advogado João Bernardes da Silva, de um cinegrafista de televisão, de um fotógrafo dos Diários Associados e de um outro da sucursal de A Gazeta. O representante deste último jornal era o mesmo que anteriormente estivera no navio para fazer reportagem dizendo que os presos recebiam tratamento humano (...)

José Peres - esse o fotógrafo - logo que pisou a bordo se pôs a elogiar o tratamento dos homens ali recolhidos (...) Sempre procurando bajular os oficiais da Marinha, o fotógrafo permaneceu no convés, falando alto para ser ouvido por todos os militares que se encontravam nas proximidades:

"Até eu gostaria de estar preso aqui. O tratamento é muito bom, estou vendo. Se me deixassem sair uma vez por semana para ver minha mulher eu ficaria aqui de bom grado".

De um dos cubículos próximos, um detido, revoltado ante tamanha sabujice, gritou a todo pulmão:

"Não precisa sair,não, pode deixar que eu cuido de sua mulher".


Trecho do livro Navio Presídio, de Nelson Gatto.


Presos no convés do Raul Soares durante correição da Justiça Militar. A intenção era demonstra que as denúncias de torturas e maus tratos, que começavam a se espalhar, eram "meros boatos". No círculo à esquerda, o presidente Orlando dos Santos; no círculo da direita, ALdo Ripasarti. Sem camisa, na direita da foto, está o jornalista Nelson Gatto, autor do livro-denúncia que foi apreendido e teve toda a edição lançada ao mar pela Aeronáutica. Somente uns poucos exemplares foram salvos e escondidos pelo autor por longos anos. Gatto morreu em 1983 por problemas de saúde adquiridos durante a prisão no navio. Em sua última entrevista, ao jornal Preto no Branco, pediu: "Não deixem, jamais, que as pessoas esqueçam".

Fotos publicadas com o texto

Uma manobra política dos tempos de guerra

João Moraes da Silva dirigiu o Sindicato por um período pouco maior que dois meses nomeado pela Capitania dos Portos, numa manobra dos tempos de guerra. Sua posse foi articulada para permitir a candidatura de Serafim Mendes a mais um mandato.

A interferência dos militares e demais donos do golpe de 64 nos sindicatos deixava arquivada, por algum tempo, a truculência dos primeiros dias e passava aos truques políticos. O objetivo, como no início, era o mesmo: manter as entidades de representação dos trabalhadores santistas sob estrito controle.


Foto publicada com o texto

Na hora certa, do lado certo

"As lideranças sindicais da região podem atestar, a qualquer momento, como era difícil dirigir um sindicato após a Revolução de 31 de março. Hoje, em plena democracia, com a Constituição em vigor, é outra coisa. Durante o império revolucionário, com atos institucionais, prisões, desaparecimentos, perseguições e ditadura rigorosa, cada audiência com uma autoridade era um desafio de coragem e de habilidade. Tudo era restritivo e discricionário. Normas e decretos-leis eram editados e aplicados de forma imediata, sem discussões ou mesmo aprovação por parte do Congresso. Não havia garantias constitucionais para os trabalhadores e dirigentes sindicais. O capitão dos portos, que acumulava as funções de delegado do Trabalho Marítimo, tinha poderes excepcionais, influindo decisivamente nos métodos de trabalho. Ninguém podia contestá-lo, porque logo vinham ameaças de atos punitivos, inclusive a destituição de cargos eletivos".

As declarações de Nelson Mattos são incontestáveis. De fato, ele assumiu a direção do Sindicato dos Conferentes numa época em que as leis e as armas confundiam-se, atuando uma em favor da outra e ambas contra todo e qualquer direito de cidadania.

Coincidência ou não, os 17 anos de gestão de Nelson Mattos confundem-se com a própria história do regime militar. Sua atuação iniciou em 1965, quando os militares davam sinais de que endureceriam o jogo, e terminou em 1982, quando a palavra democracia voltava ao nosso vocabulário. Para ele, foram os anos dourados da nossa categoria.

O segredo que o levou a tantas conquistas, na área política e social: "Graças ao trabalho desenvolvido nos contatos pessoais com autoridades governamentais e empresários do setor de navegação". Nelson Mattos parece que estava no lugar certo, na hora certa e do lado certo.


Foto: publicada com o texto

Os ventos da mudança

José Bartolomeu de Sousa Lima entrou para a categoria em 1969, quando já era um conhecido dirigente do movimento estudantil em luta pela retomada do Centro dos Estudantes de Santos. Formado em Economia e Direito, Bartô, como é conhecido entre a categoria, é um desses casos de pessoas que nascem talhadas para episódios dramáticos. Por exemplo, ser condenado com base na Lei de Segurança Nacional aos 19 anos de idade, em Pernambuco, e recolhido aos cárceres de Fernando de Noronha entre novembro de 64 e janeiro de 66. Ou então vencer a eleição de nosso Sindicato em 1982, pela oposição, quando isso parecia impossível, e ainda por cima debaixo de denúncias chantagistas sobre seu passado de militante trotskista.

Para quem havia sido militante das lutas das Ligas Camponesas de Francisco Julião antes do golpe de estado, trabalhar no Senai ou na Petrobrás parecia uma espécie de confinamento a lugares exíguos. Ficou poucos meses. Foi encontrar no cais o que procurava: um ambiente de trabalho democrático, com uma estrutura participativa conquistada na luta, segundo suas próprias palavras.

Terreno fértil também para os novos tempos que já se adivinhava no horizonte, foi ao longo de treze anos de trabalho no porto que conquistou o respeito e a confiança da categoria que abraçara. Foi isso, basicamente, que produziu o efeito bumerangue das denúncias contra ele às vésperas da eleição sindical.

Feitiço contra o feiticeiro, acabou recebendo apoio de dois terços dos Conferentes, uma espécie de voto de confiança para reiniciar uma caminhada que as circunstâncias haviam interrompido. Foi um período rico de experiências e vitórias que desembocou num segundo mandato.

Dirigiu uma diretoria preocupada com o que viria a ser depois a Lei 8.630, que já se anunciava a cada investida dos poderosos lobbys de movimentadores de cargas contra os trabalhadores avulsos e a organização do trabalho nos portos.


Foto: publicada com o texto