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Publicado em 18/7/1982 no jornal A Tribuna de Santos
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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - OS IMIGRANTES
A colônia árabe (1)

Beth Capelache de Carvalho (texto). Arnaldo Giaxa e Arquivo de A Tribuna (fotos)

O mundo árabe em Santos

O mundo árabe é uma longa e vasta faixa de terra que se estende desde as costas do Atlântico, no Marrocos, até as do Golfo Arábico, com o Iraque, o Kuwait e Omã. Essa faixa tem uma extensão total de sete mil quilômetros, por cerca de três mil, e possui todos os climas, desde os cumes nevados do Líbano, até as areias ardentes dos desertos da Arábia, e as florestas tropicais do Sudão.

Nessa imensa área habitada pelos povos árabes, processou-se, através dos séculos, um verdadeiro desfile de civilizações. Nas regiões do atual Oriente Árabe a humanidade emergiu pouco a pouco do barbarismo. Lá o homem aprendeu a arar, a rezar, a viver em sociedade; lá foi aceso o primeiro fogo, celebrado o primeiro casamento, construído o primeiro navio, inventado o primeiro alfabeto, erigido o primeiro templo, promulgado o primeiro código.

Também foi lá que nasceram as três grandes religiões monoteístas do mundo atual: o Cristianismo, o Islamismo, o Judaísmo. Os lugares santos - Jerusalém, Belém, Nazaré, o Sinai, Meca e Medina exercem um imenso fascínio sobre os vários setores da humanidade.

Mas depois de séculos de brilhante civilização, o Mundo Árabe foi castigado por guerras constantes, mergulhando numa fase de estagnação, da qual só começou a renascer depois da Segunda Guerra Mundial. E foram as constantes invasões políticas ocorridas no Oriente Médio desde o fim das Cruzadas que provocaram a grande onda de emigração dos árabes.

Quando a Turquia invadiu a Ásia Menor e a Europa, os árabes cristãos fugiram das perseguições religiosas. O Império Otomano atingiu toda a região do Atlântico até as entradas de Constantinopla: Marrocos, Argélia, Sudão, Egito, Tunísia, Palestina, Iraque, Síria, Líbano e Meca (onde apareceu a direção do Islamismo, pelo profeta Mohamed Abdala), e também o Deserto de Hijaz, onde se encontra a Arábia Saudita. Toda essa região foi dominada pelos turcos muçulmanos, governados pelo rei Salim, o Primeiro.

A maioria dos imigrantes, portanto, eram os cristãos ortodoxos, que fugiam das perseguições religiosas. Em 1915, em Damasco e Beirute, houve um massacre de todos os líderes árabes pelo governo otomano, o que fez aumentar ainda mais as emigrações.

Ao Brasil, os árabes começaram a chegar a partir de 1858, e a Santos coube receber uma grande maioria de sírios e libaneses, mais especificamente da cidade síria de Antióquia. Eram muitos cristãos ortodoxos, mas também um bom número de muçulmanos.

Eles chegaram e trouxeram consigo quatro milênios de civilização, sua cultura, sua religião, suas lendas. E integravam-se imediatamente, progredindo graças ao seu trabalho, e chamando mais árabes, que se fixaram por todo o Brasil.

Escolhendo a princípio as cidades perto do porto, eles foram entrando cada vez mais para o Interior, principalmente devido à profissão de mascates. Hoje é possível encontrar uma colônia árabe nos lugares mais afastados, como a Região Amazônica, e também nos estados do Norte e do Nordeste.

Em seus países, deixaram uma eterna gratidão pela terra que os acolheu e onde fizeram suas vidas. Uma placa, na cidade libanesa de Zahlhe, diz que "as parreiras do Líbano se curvam para um brasileiro passar". E existem no Líbano não apenas uma, mas várias avenidas chamadas Brasil.

Diz Antônio Husne sobre seus compatriotas: "Das montanhas da Síria e do Líbano eles desceram com seu agudo perfil, sua capacidade de trabalho e de sonho, sua ânsia de viver, sua áspera coragem. Atravessaram o oceano e desembarcaram no Brasil. No dia seguinte, todos eles eram brasileiros".


Nas festas da colônia, o dabke, dança tipicamente oriental, ao som de alaúdes

O fim do século passado [N.E.: século XIX] marcou a chegada dos primeiros árabes a Santos. Libaneses e sírios, principalmente antioquinos, eles se dedicaram, sobretudo, ao comércio, seguindo a antiga tradição de mercadores. Poucos no começo, foram aumentando em número, à medida que as primeiras famílias se estabilizavam, vencidas todas as dificuldades iniciais de comunicação, adaptação aos costumes e trabalho.

Aqueles que eram bem sucedidos escreviam contando sua história, e assim incentivavam a vinda de parentes e amigos. A comunidade foi crescendo, e foram surgindo as primeiras associações, como a Sociedade Beneficente Síria, hoje desativada, e a Sociedade União Antioquina. Mais tarde, o Clube Sírio-Libanês se transformaria num dos clubes santistas mais procurados, possuindo sócios de todas as nacionalidades.

Em 1960, ficava pronto o templo da Igreja Ortodoxa São Jorge, freqüentada pela comunidade ortodoxa; em fevereiro de 1983 será inaugurada a mesquita da Sociedade Beneficente Islâmica do Litoral Paulista, que reúne a comunidade muçulmana, formada a partir do término da Segunda Guerra Mundial.

Foi ao comércio que os árabes radicados em Santos mais se dedicaram, e hoje são inúmeros os estabelecimentos comerciais que eles possuem, espalhados pela Cidade.

Mercadores - Os mascates árabes eram famosos por sua coragem ao escolher novos mercados para o seu oficio. Assim, acabaram chegando às regiões mais isoladas do Brasil, e fizeram as mais estranhas freguesias, inclusive nos sertões do Norte e Nordeste, e na Região Amazônica. Sobre esses feitos, há pelo menos duas lendas, que podem inclusive ter sido inspiradas pelo mesmo personagem.

Uma delas conta que um desses aventureiros, oferecendo suas mercadorias em cada povoadozinho do sertão adentro, acabou indo parar bem no meio de uma aldeia indígena, quando só lhe restava uma antiga máquina de costura para vender. Os índios se interessaram, mas como pagamento o árabe recebeu a mão de uma bela jovem da tribo. Apaixonado, acabou ficando por lá, onde foi descoberto por outros mascates, tão aventureiros como ele.

Outra lenda, que foi citada por Salomão Jorge, poeta árabe, em uma conferência proferida no Clube Sírio-Libanês, fala de um grupo de mascates que, em suas andanças, acabou preso por índios de uma tribo selvagem. Apavorados, começaram a lamentar-se em sua língua, e logo chamaram a atenção do cacique, que lhes respondeu no mesmo idioma: "Não se preocupem, eu também sou árabe, e já passei por apuro semelhante. Como podem ver, me saí muito bem". Assim, tiveram sua liberdade garantida pelo cacique patrício.

Isso é apenas lenda, mas a tradição de bons mercadores dos árabes é real e bem antiga. E no Brasil não foi diferente. Era bem raro, no início do século [N.E.: século XX], encontrar empregados árabes. Ao imigrar, eles já chegavam com a garantia de encontrar um amigo, já estabelecido, disposto a conceder-lhes crédito para o primeiro estoque de mercadorias.

O pagamento desse empréstimo, e a utilização das primeiras economias para a aquisição de um estabelecimento comercial fixo, eram as próximas etapas da vida do imigrante árabe em Santos. Assim foram adquiridas quase todas as centenas de lojas, grandes e pequenas, de proprietários sírios e libaneses que existem em Santos.

São casas dos mais diversos ramos, principalmente dos setores de armarinhos, calçados e couros, camisarias, tapeçarias, tecidos e vestimentas em geral. Lojas das mais tradicionais na Cidade pertencem a imigrantes que conservaram a tradição de mercadores de seus antepassados. Os filhos desses comerciantes, em sua maioria, já optaram por outras profissões, freqüentaram as universidades e hoje trabalham nos mais diversos ramos econômicos, políticos e culturais.

Quibe e esfiha - Segundo David Nasser, a natureza deu ao Líbano as ramazeiras, os damasqueiros e as tamareiras, para alegria do seu paladar. E o homem, para ser digno de tantas bênçãos, produziu, ele próprio, o quibe. Se o libanês produziu, o brasileiro adotou. O quibe, se já não tivesse sua nacionalidade secular, seria adotado como comida típica do Brasil.

"Um quibe e um caldo de cana". "Uma esfiha e um cafezinho". Lanche rápido e barato para o brasileiro trabalhador, que só tem tempo para dar um pulinho na pastelaria do chinês, para comer quibe com garapa. Em Santos, onde as pastelarias se espalham, e onde acontecem essas coisas engraçadas com a culinária, o lanche de quibe ou esfiha de chinês com garapa também chinesa na produção é uma refeição bem difundida.

Mas outras comidas árabes são consumidas na cidade, em restaurantes e lanchonetes típicos, em restaurantes e lanchonetes não típicos, e até em casa, com os produtos prontos comprados nos supermercados. Pão sírio com homos (espécie de patê feito de grão-de-bico), o sanduíche Beirut (pão sírio com kafka, alface, tomate e queijo), kafka no espeto (rolinhos de carne moída, com tempero especial, feitos no espeto), já são comidas mais do que adotadas pelos santistas.

São servidas em lanchonetes e também em restaurantes, onde se encontram pratos mais sofisticados, como tabule, o kabab, arroz com nozes e frango, charutinhos de folha de uva e muito pepino, tomate, erva-doce, rabanete e pimenta.

Os doces, são variadíssimos, e também facilmente encontrados em Santos, e a qualhada [N.E.: coalhada] serve de café da manhã para muita gente que de árabe não tem nada.


Objetos típicos, em exposição no Sírio

Sírio-Libanês - Outra criação dos imigrantes árabes, que a comunidade santista adotou, foi o Clube Sírio-Libanês. Na noite de 21 de setembro de 1952, um grupo de representantes da colônia reuniu-se no Hotel Bandeirantes para discutir a fundação de um clube social que congregasse e irmanasse todos os originários e descendentes de árabes residentes na Baixada Santista.

Uma comissão provisória já havia elaborado os tópicos mais importantes para a concretização desse projeto, e reuniu-se uma Assembléia Geral presidida por Abdala Cury e secretariada por Eduardo Daguer. Nesse mesmo dia foi escolhido o nome da nova agremiação, e votado o primeiro conselho deliberativo. O primeiro presidente foi Abdala Cury, e nos dois primeiros anos a sede foi instalada na casa onde hoje funciona o Pronto-Socorro Ana Costa [N.E.: Av. Ana Costa, 468].

Em sua segunda fase, o Sírio-Libanês ocupou as dependências do antigo Cassino Atlântico, quando promovia as antigas "domingueiras". Antigas e casamenteiras. Nesse local, o Sírio ficou por vinte anos, até que o imóvel foi vendido, e teve início a construção da sede própria na Av. Ana Costa.

Há duas datas nacionais que são comemoradas todos os anos no clube: o dia da República Síria e o dia da República do Líbano. Em setembro, é realizada a Noite Árabe, em comemoração ao aniversário do clube. Na festa, as comidas típicas, regadas com muito arak (cachaça feita de uva e erva-doce); a música árabe, dabke, tocada em alaúdes, e a dança do ventre.

Além disso, o clube promove noites de arte, bailes, aulas de natação, judô e karatê, futebol e muitas outras atividades que são freqüentadas pelos santistas. Além disso, como lembra o presidente Ibrahim Curi, há o Carnaval do Sírio, um dos mais movimentados de Santos, e cujos convites sempre se esgotam.

União Antioquina - Na Rua Mato Grosso, bem defronte da Igreja de Nosso Senhor dos Passos, fica a Sociedade União Antioquina de Santos (Quem ainda não foi a uma festa de casamento em seus salões?). Pequena e aconchegante, com seu jardim de inverno e um estilo discretamente oriental, a sede da União Antrioquina é um dos lugares mais procurados para recepções de casamentos e chás beneficentes.

Reconhecida como entidade de utilidade pública, e credenciada na Secretaria de Assistência Social do Estado, presidida por Miguel Kodja, a entidade também tem promoções próprias, destinadas a fins beneficentes. Esta é a maneira que encontrou para participar da vida da Cidade, sem perder as suas características iniciais de sociedade fechada, cuja finalidade é agregar os imigrantes originários de Antióquia.

Fundada a 11 de outubro de 1925, por um grupo de cidadãos antioquinos, destinava-se a amparar os patrícios que chegavam em grande número naquela época. Só mais tarde, quando a imigração praticamente acabou, é que surgiram as atividades benemerentes e sociais, uma vez que as famílias de Antióquia foram-se estabilizando e progredindo. Mas a finalidade inicial de reunir os antioquinos foi conservada. Hoje, a sociedade tem apenas 140 sócios, e só admite antioquinos, seus filhos e agregados.

Todos os anos, a União Antioquina promove festas típicas, com comidas e danças típicas da região que representa. Lá são recebidos diplomatas e personalidades árabes que visitam a Cidade, e lá são feitas as festas de despedida dos que viajam para visitar o Oriente.

A Grande Antióquia - Diz a lenda que, 300 anos antes de Cristo, o rei Seleucius, cuja dinastia reinou na Síria durante três séculos, depois da morte de Alexandre, o Grande, procurava um centro para instalar a sua capital. Para isso, subiu ao templo de Zeus, para consultá-lo, e então viu uma grande águia pousar sobre a Montanha de Amanus. Não concordando com a escolha, construiu ali somente o porto de mar no Mediterrâneo, e deu-lhe o nome de Seleucia (Sueidiye).

Voltou então ao templo, e novamente viu uma águia, ainda maior que a primeira, carregando sua caça e pousando-a sobre o grande Monte Silpius, beirando o Rio Orontes, que rasga campinas verdejantes. Seleucius admirou o local, pois além de central era um belo recanto, e ali construiu a sua capital, que chamou Antióquia, em homenagem a seu pai, Antiochos, e a seu filho, que tinha o mesmo nome.


Sírios e libaneses reúnem-se em seu clube

Veja as partes [2] e [3] desta matéria