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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - AMARGO AÇÚCAR
História e uso do açúcar

O texto a seguir estava disponível, em 1996, em página Web do Centro de Estudos de História do Atlântico (Ceha), na Ilha da Madeira. Essa página não mais existe na Internet, mas foi arquivada por Novo Milênio, que resgata assim para o meio digital este estudo de Alberto Vieira:

Os sabores do açúcar

"..açúcar faz parte de nossa natureza" sendo "a mais rica e natural fonte de energia. Sem o açúcar a vida seria impensável (...) Mas o açúcar é imprescindível na dieta humana graças à saudável energia que nos oferece..."

Assim o proclama um anúncio recente. Uma questão de marketing ou o retorno às origens? O anúncio surgiu para fazer guerra aos elducorantes, que cada vez mais invadem o mercado. A moda da dieta e a luta sem tréguas ao consumo de açúcar ditou essa necessidade por parte dos industriais.

O açúcar é, de todos os produtos o mais controverso: amado e odiado, de mezinha passou a inimigo da saúde. A par disso, a sua afirmação e expansão foi conseguida com muito suor e opressão. O processo agrícola e industrial movimenta multidões de mão-de-obra escrava ou barata. As teses abolicionistas oitocentistas deram uma machadada no seu progresso e, ao mesmo tempo, contribuiram para o avanço da industrialização dos processos em causa. Para isso foi necessário assegurar o capital para o investimento e os mecanismos que o contabilizam. O escravo deu lugar à máquina. A força motriz da água à do vapor. Esta mudança só foi conseguida pelo inevitável processo de centralização dos complexos industriais.

A domesticação da cana-de-açúcar teve lugar na Nova-Guiné em 8000 A.C. Daí a cultura avançou para as Filipinas e Índia. Depois os árabes trouxeram-na ao mundo mediterrânico. O século XI marca um momento de expansão no mundo cristão, sendo consequência das Cruzadas. No mundo árabe ele foi um dado essencial do quotidiano. À falta de sal, passou a substituí-lo como condimento. Não será por acaso que a arte e a nomenclatura da doçaria são também uma criação da civilização árabe. O doce é uma aportação árabe, tal como o vinho o é do mundo cristão. Por isso não será de estranhar que seja nos autores árabes que o açúcar recebe os maiores elogios.

Na Cristandade Ocidental, o açúcar demorou em tornar-se o manjar de todos. Por muito tempo foi uma raridade, sendo usado, quase sempre como um medicamento. De Galeno a Hipócrates o açúcar tornou-se num elemento inquestionável da farmacopéia ocidental, perdendo, é certo, no século dezasseis com o aparecimento das especiarias orientais. Os textos de Garcia da Horta e Tomé Pires marcam esta transmutação.

Esta aplicação farmacológica do açúcar está documentada nas receitas e despesas dos hospitais de misericórdia e esmolas da coroa em açúcar aos hospitais -Todos os Santos em Lisboa (1506), Misericórdias do Funchal (1512) e Ponta Delgada (1515) - e conventos - Guadalupe (1485), Évora (1497), Beja (1500), Aveiro (1502), Coimbra (1510), Vila do Conde (1519). A tradição da dádiva do açúcar e doces, peculiar no mundo árabe, conquistou a coroa, que cumulou os seus próximos com parte significativa do açúcar arrecadado na ilha.

A tradição manteve-se de modo que Proudhon é levado a afirmar que "o açúcar é toda a farmácia do pobre". Na verdade o açúcar, pelo elevado valor calórico, era um suplemento capaz de suprir a insuficiência calórica. E se tivermos em conta que o principal problema de sociedade do antigo regime é a desnutrição das populações, resultante da pobreza de dieta alimentar, teremos a explicação para tais efeitos benéficos do seu consumo. A dieta alimentar era pouco variada e, quase só, assente no consumo de pão. A ingestão diária de calorias era inferior a 2.000, quando hoje os padrões médios oscilam entre 3.000 a 4.000. A isto liga-se as crises de produção que agravam esta realidade.

Falta de pão não é só sinónimo de fome, mas também de doença e de fome. A maior parte dos moribundos que acolhe aos hospitais é última desta situação, por isso o açúcar, pelo seu elevado valor calórico, era uma mezinha indispensável. Note-se que também o consumo do vinho está na mesma via.

Um dos muitos indícios da fé que os nossos antepassados depositavam no poder fortificante destes produtos está na ração obrigatória estabelecida para a dieta de bordo das caravelas. Ambas supriam as deficiências calóricas e reforçavam a capacidade imunológica.

Nas áreas produtoras como a Madeira. o consumo de açúcar acabou por adquirir alguma importância. Os desperdícios da laboração - escumas, rescumas, melaço - tinham os seus habituais consumidores. O acto de chupar o suco da cana, que muitos de nós terão gravado na memória, é antigo. Já Giulio Landi, cerca de 1530, refere ser usual entre os madeirenses que comiam "em jejum canas maduras e frescas e dizem que rejuvenescem para dar sensualidade ao corpo, para refrescar o fígado, para saciar a sede, e para branquear os dentes". A isto acresce uma receita das mulheres grávidas, consistente em "sopas de pão torrado deitado na última cozedura do suco das canas, cobrindo depois com gemas de ovo", considerado como meio para "recuperar as forças perdidas", para além de confortar o estômago e intestinos e dar boa disposição ao ventre.

Sem dúvida, o maior consumo do açúcar não foi nos fármacos mas sim nos manjares nobres, na forma de doce - alfenim, alféola - conservas e casca de fruta. Em ambos os casos a Madeira ficou célebre. A doçaria conventual fez as delícias dos manjares reais, dos ingleses, franceses e flamengos. Ficou celebre a embaixada de Simão Gonçalves da Câmara ao papa Leão X em 1508. Vasco da Gama levou-o para oferecer ao Samorim de Moçambique. E pela mesma via da rota da Índia deverá ter chegado ao Japão onde ainda hoje persiste, sob a designação de "alfeito".

Hans Sloane, em 1687, insiste no elogio aos doces e compotas que comeu no convento de Santa Clara, rematando que nunca vira "coisas tão boas". Emanuel Ribeiro, em "O doce nunca amargou..." (1928) elucida-nos sobre a riqueza da nossa doçaria.

O açúcar, acima de tudo, era um complemento fundamental na vida económica da ilha. Sucedeu assim até meados do século XVI e, depois, a partir de finais do século XIX, tudo mudou.

A riqueza cumulou os proprietários mas também a arraia-miuda, sendo um factor de progresso social. Com ele ergueram-se igrejas - a Sé do Funchal é um exemplo disso -, amplos palácios que se rechearam de obras de arte de importação - testemunhos evidentes estão no actual Museu de Arte Sacra. A arte flamenga na ilha é um dom do açúcar. O progresso sócio-económico da ilha, o seu protagonismo na expansão atlântica - nos descobrimentos e defesa das praças africanas - só foi conseguido à custa da elevada riqueza acumulada pelos madeirenses.

Todos, sem diferença de condição social, fruíram desta riqueza. Até a opulência e luxúria da própria coroa, lá longe no reino, foi conseguida, por algum tempo, com o açúcar que a coroa arrecadava na ilha.

A homenagem do madeirense e, em especial do funchalense, a isto está expressa nas armas da cidade que foram ornadas de canaviais e pães de açúcar. (...)

Novo Milênio promoveu uma revisão do texto, notadamente ajustando a pontuação e a divisão em parágrafos, mantendo quanto possível a forma lusitana de grafia do original.


Instrumentos usados nos antigos engenhos para a preparação dos pães de açúcar e outros subprodutos da cana-de-açúcar, nos antigos engenhos, conforme ilustrações de diversos autores