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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS
Custo e carreto

Albertino Moreira (*)

Naquele tempo, na minha terra, não era assim: o empregado no comércio quase sempre vivia numa das dependências da loja, no sótão, ou no porão, e tinha que levantar cedo, antes da partida do primeiro trem de carga e da passagem do de passageiros. Os troles ainda estavam se preparando para ir à estação levar os viajantes, que então tinham o nome de "cometa".

O empregado abria as portas, espanava o balcão de fora a fora, varria a frente do passeio, borrifava água na rua para evitar a poeira. O patrão permanecia lá por dentro da casa, tossindo alto para se mostrar já de pé e alerta.

Comércio na Rua Frei Gaspar, início do século XX

Vinha para loja de café tomado e era então a vez do caixeiro tomar o seu, cumprimentar a patroa, fazer graças às crianças. Era uma coisa de casa. Se tinha ajudante, o ajudante pegava o mais pesado, e dava execução aos serviços duros, de mandalete, vai pr'aqui, vai pr'ali, a passos ligeiros. Senão!...

E o salário? Isso dependia da vontade do patrão, que fazia o preço à sua vontade e que permanecia o mesmo muito além de qualquer esperança.

O dia mais alegre era quando chegavam os "pedidos" de fora, os caixões de pinho, pregueados, as mercadorias bem acondicionadas, tudo logo desencaixotado e posto sobre as mesas para marcação do preço de venda. Os cálculos eram fáceis: somava-se o custo e o carreto e sobre o resultado botava-se vinte por cento, como lucro.

Mas havia sempre um segredo: não se revelava de jeito nenhum o preço de venda, usava-se um código por via de letras combinadas ou de nomes. Na loja em que eu trabalhei, na minha cidade lá longe, o arranjo se fazia com estas palavras: Sul de Mina, equivalente de um a nove. O zero era zero mesmo. Sobre esse arranjo, às vezes, de esperteza, se sobrepunha um aumento, e o patrão esfregava as mãos de muito contente.

De noite, à luz do lampião de querosene, com sua manga de vidro toda limpa, a gente aproveitava a ausência da freguesia para ler o jornal chegado de tarde, ou algum livro tomado de empréstimo, como a "Vida da Princesa Magalona", as histórias de Alexandre Dumas e alguma brochura guardada bem escondida.

Custava a chegar a hora em que a luz do lampião punha-se a dançar escurecendo a manga de vidro, e já então o dono da casa tinha saído para conversar com o vizinho defronte, e a gente precisava esperar que o relógio da Matriz batesse muito devagar as nove horas passadas.

A rua, fechadas as lojas, ficava às escuras, os cachorros latiam de um quintal para outro, e os galos daí a pouco se animavam a cantar. Longe, nos bairros, onde havia vendas a bacolerê, soavam as serenatas e de quando em quando um tiro de espingarda ou de garrucha dava notícia de que se matara alguém.

A cidade ressonava no sossego do sertão.

O dia seguinte seria igual e a vida seria a mesma nesse vagar. E os moços daquele tempo, da minha idade, viam passar os dias, sem que percebessem que a vida estava passando. Época romântica, de sonhos e esperanças indefinidas.

Mas, de súbito o Mundo se mudou. Houve as guerras que nós sabemos, as massas se agitando, cada um querendo o seu, na reivindicação de seus direitos.

E o fim da história é o que nós estamos vendo, já de cabelos brancos: os homens se consideram iguais, defendem com unhas e dentes o produto do seu trabalho, o preço justo de seu salário.

Patrões e empregados dão-se as mãos no mesmo nível.

Que mais que posso dizer?

(*) Albertino Moreira publicou este texto na edição especial comemorativa dos 80 anos da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio (SHEC), publicada em Santos em 1959. Parte das reminiscências é específica de Santos e outra parte é de caráter geral, como quando se refere ao código de letras. O autor compara a situação do comerciário em sua época de juventude com a que encontrava na Santos de 1959.

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