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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - ESTRADAS - BIBLIOTECA
Pequeno histórico da Mayrink-Santos (30)

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Em 1962, foi publicado em Sorocaba/SP este livro de 200 páginas (exemplar no acervo do historiador santista Waldir Rueda), composto e impresso nas Oficinas Gráficas da Editora Cupolo Ltda., da capital paulista (ortografia atualizada nesta transcrição):

Pequeno histórico da Mayrink-Santos

Meus serviços prestados a essa linha entre Mayrink e Samaritá

Antonio Francisco Gaspar

[...]


3ª PARTE
XXX - Uma seresta memorável
Crônica da Mayrink-Santos

Há dez anos atrás, quando eu era escalado para ir a essa linha em construção para fazer instalações de aparelhos telegráficos e telefônicos nas estações que iam ficando prontas e inauguradas à medida que as paralelas de aço iam avançando a partir de Mayrink, rumo a Samaritá, travei ali muitas amizades e conhecimentos com engenheiros de serviço, dos quais ainda me recordo e sinto saudades.

Lembro-me que, indo sempre ao túnel do empreiteiro sr. José Giorgi, de saudosa memória, a fim de instalar telefones e telégrafos, em sua sede que ficava no quilômetro 44, a partir de Mayrink, túnel 32, um dos maiores túneis da linha Mayrink-Santos, túnel esse que deu tanto trabalho a ser perfurado, pois levou seis longos anos a dar passagem aos trens de lastro, travei conhecimento com o engenheiro dr. Rotuliano que, além de ser especialista em perfurações de túneis e obras de cimento armado, era também formado médico pela faculdade de Medicina de Milão.

Nessa sede, P.8 e P.9, não muito distante de Itapecirica, estavam sendo perfurados três túneis e contornando a serra do Chiqueiro, cheia de profundos vales e altas montanhas, 1.100 metros de altitude, foi construída uma variante de quatro mil e oitocentos metros de desenvolvimento, cheia de apertados cortes, curvas fechadas com quarenta metros de raio, a fim de dar acesso para que os trens de lastro trafegassem do lado de Mayrink para o lado de Santos.

Essa variante também serviu, por muito tempo, à passagem dos trens mistos com passageiros e cargas.

Descortinava-se dali um belíssimo panorama, principalmente à noite: via-se, a olho nu, ao longe, toda a iluminação da parte mais alta de São Paulo.

O túnel 32, com 450 metros de comprimento na altitude de 950 metros sobre o nível do mar, iria levar alguns anos a ser perfurado. Então, o sr. José Giorgi, incansável empreiteiro dos prolongamentos da Sorocabana, estudou e mandou construir essa linha provisória para que o avançamento não paralisasse enquanto ele não dava pronto o referido túnel.

Foram também instalados dois postos telegráficos próximos às suas duas bocas: do lado de Mayrink, chamava-se Rancho Fundo, e do lado de Santos, Boca Túnel 32.

Quanto trabalho, quantos revezes, quantos empecilhos surgiram ali, durante o longo tempo da construção desse importante túnel!...

Pela topografia do local em que foi designada essa grande obra de arte é que se vê hoje o que não seria outrora aquele local cheio de labirintos, pois até deu origem em chamá-lo Rancho Fundo.

Uma das vezes em que eu seguia no único trenzinho misto, para a ponta dos trilhos, que já tinham atingido a estação de Dúvidas (hoje Engenheiro Marcillac), a fim de, no dia seguinte, instalar uns telefones na sede da 7ª seção, S.22 a cargo do dr. Tomé, encetei conversa com um feitor português por nome José Pinto, que tomava conta da variante de contorno ao túnel 32, ferroviário esse cheio de responsabilidades.

Para se passar o tempo e alegrar o espírito, naquelas paragens serranas, no dia imediato, à tarde, depois do serviço, eu, o feitor Pinto e o guarda-fios compadre Américo fomos a uma Xiboca - nome que os trabalhadores davam às vendinhas e botecos que por ali havia abrigados em grotas e pelos arredores das obras em construção: viadutos, túneis, aterros etc.

O vendeiro, também um português ativo e um tanto bondoso, sabendo que nós cantávamos com violão e havendo alguns fregueses no interior da dita Xiboca, apresentou-nos um bem afinado "pinho" e com ele encetamos uma seresta regular.

Eu tive que cantar o Fado da Severa, o qual foi bisado umas poucas vezes, e com isso presentearam-me com alguns litros de vinho.

O feitor Pinto cantou um fato tristonho lá da "santa terra", intitulado A caveira do meu pai, e o compadre Américo sapecou uma canção de sua autoria. Achando interessante relembrar coisas passadas, tomo a liberdade de as reproduzir nesta croniqueta:

A Caveira do Meu Pai
Mote

A caveira de meu pai
sem ter língua me falou
nada me soube dizer
dos ossos de meu avô.

1ª Glosa:

Eu fui dentro do cemitério
em altas vozes gritando
pelo meu pai chamando
que me contasse o mistério.
"Filho meu, isto é um império
que nesta habitação vi
escuto aqui tanto aí
vozes com tanta ternura"
responde da sepultura
a caveira de meu pai.

2ª Glosa:

"Vem cá, ó meu filho amado,
tempo que eu era vivente
hoje aqui presentemente
um esqueleto mirrado."
Meu pai, esteja descansado
Que Deus assim o terminou
diga se já encontrou
os ossos de meu irmão.
"Esses mesmos ainda estão"
sem ter língua me falou.

3ª Glosa:

"Agora os de tua mãe
esses não os posso encontrar,
não sei onde o coveiro os tem
há, se lá fosse alguém
que neles fosse mexer
isso não posso saber
sem perguntar ao coveiro
tua mãe morreu primeiro
nada me soube dizer".

4ª Glosa:

Eu vi apenas abaixar
aquela triste figura
meteu-se na sepultura
voltou-se a campa a fechar
eu fiquei sem fala dar
meu coração se assustou
uma voz me perguntou:
"Que vens aqui tu fazer?"
Venho aqui para saber
dos ossos de meu avô.

Risadas; bravos; comentários; copos de vinho que, de cheios tornam-se vazios; prelúdios de violão em meio dos ditos chistosos e surge então o compadre Américo com a sua canção regional - Mayrink-Santos:

Até agora, inda me alembro
de um passeio que eu fiz,
fui correr Mayrink-Santos - 
felizmente fui feliz.
Lá na estação de Mayrink
na hora de me embarcá
dei milhares de suspiros
p'ra depois sair de lá.

De Mayrink em diante fui
no trem logo de manhã,
na estação de Guaianã.
Seguindo assim sozinho
meu sentido desespera,
por ter de parar adiante
na estaçãozinha Cangüera.

E de Cangüera p'ra diante
subida que nunca vi,
do alto da Santa Cruiz
avistei Aguassaí
E do Guassaí p'ra frente
fizemo numa carreira,
indo refolgar o trem
no posto Dr. Bandeira.

Assim diante em marcha
o trem não mais se atrapaia,
parando p'ra tomá água
lá na estação de Caucaia.
E logo mais adiante
o trem já ia chegando
p'as bandas de Rancho Fundo

Felizmente em Rancho Fundo
embarcou uma mocinha,
fomos em bonitas prosas
'té a estação de Aldeinha.
De Aldeinha sólito
mais eu me abismara,
quando chegou o trem
na 'stação de Itaquaciara.

Ai como é triste viajá
p'ros lados que não sei foi,
assim como aconteceu
na estação de M'Boy.
E logo de M'Boy
eu ia quase indo só
e assim muitas graças dei
ao chegar lá em Cipó.

O trem partiu de Cipó,
ao dar o sinal de embarque,
parando adispois também
no Engenheiro Marcillac.
E aí de Marcillac
o trem pegou uma raposa
que estava na linha, perto
da Evangelista de Souza.

E de Evangelista em diante
me peguei com todo santos,
por não ter onde dormir
na 'stação de Rio dos Campos.
Mas, graças que encontrei
cousa que não esperava:
deu-me pousada um amigo
de apelido Bacaitava.

No outro dia cedinho
fiz meus passeio a pé
e da Mayrink a Santos
só sinto saudade, olé!..

Muito bem!... Muito bem!... Bravo!... Mais vinho!... Vinho!...

Como já era um tanto tarde e hora avançada dessa memorável noite, levantei-me e disse:

- Meus amigos, por hoje basta, vamos dormir. A Caveira de Meu Pai é excelente. A canção do compadre Américo está boa. Diz os nomes de todas as estações entre Mayrink e Rio dos Campos. Agora escutem: p'ra finalizar, eu vou dizer em versos de "pé quebrado" os nomes das estações de Santos para Mayrink:

Me peguei com todo Santos
inclusive São Vicente,
chegando em Samaritá
muito alegre fui pr'a diante.

Adiante Gaspar Ricardo
logo entrei num sururu
que só foi finalizar
na estação de Acaraú.

No posto Engenheiro Cruz
pertinho de Mãe Maria
deu-se um fato que mais tarde
contarei em poesia.

Mãe Maria convidou
Pai Matias seu vizinho
p'ra juntos subir a serra,
andando devagarinho.

Lá se foram os dois andando
sem alarde e escarcéu
Mãe Maria quis comprar
pr'a Matias um Chapéu.

- Em Chapéu não há chapéus!... - 
diz o nosso Pai Matias
- Molhar vamos a garganta
na Xiboca do Azarias.

Ao chegarem em Rio dos Campos
as montanhas contemplaram:
- Nem campos nem carapuças!...
só abismos ali acharam.

Cansados os dois velhinhos
de Rio dos Campos saíram
e foram a Rio dos Monos
ver o logro em que caíram

Viram-se logo em Dúvidas
caminhando todo o dia
e... bravo passou Matias
o Cipó em Mãe Maria.

Bravos!... Vivas!... Até amanhã, se Deus quiser!... Adeus seu moço!... Até oitra bista!... Olha a "caveira de meu pai"!... Biba ú seu Gaspaire!... Elétecista dú talegrafú!... E "Muchas côsas más" nos dão saudades da linha Mayrink a Santos.


[...]
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