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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - SEU BAIRRO/mapa
Do Paquetá, só restou o passado (4)

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Publicado em 16/12/1982 no jornal A Tribuna de Santos

 Leda Mondin (texto) e equipe de A Tribuna (fotos)


Não há áreas de lazer e muitas vezes as crianças ficam confinadas em porões,
espreitando o mudo por entre grades, sem terem onde brincar

Seu Bahia, o homem dos bonecos e dos passarinhos

"Esse aí da fotografia não é o seu Bahia, que vende bonecas e vive assobiando feito passarinho?"

Pois é ele mesmo. Quem não há de reconhecê-lo depois de mais de 40 anos trabalhando em Santos como ambulante, vendendo miudezas de todos os tipos e com seu jeito todo especial de abordar as pessoas?

"Cavalheiro, veja esta cobrinha. Ela morreu, mas ressuscitou. Vou provar para o cavalheiro que ela está vivinha...". Enquanto fala, faz uma cobrinha de borracha se mexer entre seus dedos, como se estivesse viva. Todo mundo olha, acha fácil, mas não consegue repetir a brincadeira. Novamente ele se dirige para alguém: "Agora o cavalheiro encosta o dedo aqui". De repente, a cobrinha gruda-se no braço da pessoa, que acaba se assustando com um brinquedo de plástico.

Esse seu Bahia apronta cada uma! Com uma peça pequena enfiada na boca, imita tudo quanto é pássaro. Disfarça, nem parece que está produzindo todos aqueles sons. Junta um monte de gente em volta para olhar. Logo ganhou um apelido: Rei dos Pássaros.

Um batalhador, esse seu Bahia! Molecote ainda, já trabalhava na roça, na Bahia. Em 1932, ficou desgostoso com a seca que matou as plantações. Partiu para Salvador. Em 1936 chegou a Santos, sem medo do frio e da garoa, disposto a enfrentar tudo.

Tentou ser enfermeiro, desmaiou ao assistir à primeira operação. Foi para a Light: trabalhou nas obras da Usina Henry Borden, em Cubatão, enfrentou lama na altura da cintura. Um dia, caiu num atoleiro tão fundo que quase morreu. Quando saiu do hospital, conseguiu um posto de vigia e chegou a chefe da guarda. Mas perdeu o emprego no tempo de Getúlio Vargas.

Em 1941, lá estava ele pelas ruas, vendendo igrejas feitas com conchas das praias de Santos. Nesse mesmo ano foi chamado para a Marinha Mercante. Ficou no mar três anos, enfrentando os perigos da guerra. Até que um dia ficou doente, desembarcou em Santos. O navio Comandante Lira seguiu para a América do Norte, mas não chegou a seu destino: foi bombardeado. Seu Bahia escapou mais esta vez.

Enquanto não arrumava emprego, vendia coisas pelas ruas. Em 1943, encaixou-se como bagrinho. E, apesar de ex-combatente, só em 1947 conseguiu carteira de estivador. E como estivador se aposentou, em 1962.

Ambulante há mais de 40 anos, com orgulho

Nesse tempo todo, nunca deixou de ser ambulante. Dava um duro danado no Porto e nas horas de folga batia perna por aí tudo, com bichos de pelúcia amarrados pelo corpo, miudezas penduradas pela mão. Só depois de muitos anos conseguiu comprar um carrinho. Hoje, aos 68 anos de idade, continua com a mesma disposição e não deixa de trabalhar um dia.

Pensam que ele é rico, faz isso por ambição? Que nada. Há anos mora em uma casa alugada da Rua Dr. Cócrane e não tem "onde cair morto", segundo suas próprias palavras. Preferiu investir o que ganhou no estudo dos filhos: tem uma filha que é psicóloga e mantém um filho no penúltimo ano de Medicina.

Seu Bahia não esconde o orgulho que sente dos filhos. E nem a satisfação por ser tão popular em Santos. Para completar essa popularidade, só faltava aparecer no jornal. Aí está, seu Bahia!

Veja as partes [1], [2] e [3] desta matéria
Veja Bairros/Paquetá

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Além dos sentidos humanos

Adelto Gonçalves (*)

Algumas vezes, à noite, quando deixo o jornal, agrada-me dar uma volta pelo Paquetá. Vou de carro como um bom pequeno-burguês em que me transformei. Mas, não raro, desço para dar alguns passos, aspirar o ar que vem do estuário, o cheiro das flores que, às vezes, ainda se vendem nas portas das boates hoje tão decadentes. E andar, andar. Como aquelas aves migratórias que voam em círculos no Atlântico porque, antes, ali havia uma ilha, um local de pouso e referência para as longas travessias.

Gosto também de olhar por fora a casa em que nasci. Já quase não a reconheço, tão diferente. Morávamos aqui, eu e minha família, porque, como tantas outras famílias remediadas, não tínhamos conseguido acompanhar a fuga da burguesia em direção às praias. Tanto melhor. Se assim não fosse, talvez eu não tivesse escrito um romance sobre o Paquetá. Seria outro homem. Teria provavelmente enveredado por outros caminhos que não o das letras. Seria um técnico em contabilidade, um administrador de empresas e andaria regurgitando em alguma repartição. Ou, quem sabe, poderia ser até um bem sucedido burocrata com trânsito nos salões em que se movimenta a nossa tão insensível classe dirigente.

Mas eu não estou aqui para falar de mim. E sim do Paquetá, embora seja difícil não ser repetitivo depois que se escreve um livro sobre o assunto. Eu poderia repetir a história que Nego Orlando me contou, um pouco antes de morrer, sobre a rebelião na Ilha Anchieta. Mas já não sinto ânimo.

Ou dizer de Knud Gregersen, Tatoo Lucky, o dinamarquês que preferiu trocar o Paquetá pelo mar de Itanhaém porque a Boca há muito tempo perdeu aquele código de honra invisível que fazia o malandro respeitar malandro e, principalmente, o morador do lugar, fosse lá quem fosse. Em seus últimos dias de Paquetá, o Tatuador já havia sido assaltado três vezes em seu atelier por pivetes armados. Não agüentou mais e foi embora.

Afinal, Tatoo era respeitado até em Marselha - onde ninguém é respeitado. Foi lá que ele se estabeleceu durante um bom tempo, depois que o pai lhe ensinou a tatuar, a arte das linhas e das sombras descoberta há quase dois séculos pelo Capitão Cook entre os nativos da Polinésia. Pois se o Tatuador, que era um homem que amava o Paquetá como ninguém, foi embora, o que dizer mais?

Poderia lembrar do Bola Sete, que era um negro cantor e pianista que, um dia, foi transformado em tela pelo Tatuador. Poderia recordar as brigas famosas do Paquetá, os acertos de contas entre contrabandistas ou uma grande arruaça entre marujos japoneses e filipinos. Poderia falar da decoração belle époque do antigo Restaurante Chave de Ouro (Golden Key), dos quadros com imagens do cais que ficavam pendurados na parede do antigo Bar ABC, ali na esquina das ruas João Otávio e General Câmara.

Poderia lembrar ainda de outros personagens da noite, como o Pescadinha, bailarino exímio de quem diziam que era capaz de dançar um tango em cima de um tijolo; ou o velho Bahia, que era o zelador do Sindicato dos Foguistas e que me inspirou a figura do velho Marambaia, o personagem principal do meu romance sobre o cais de Santos. Poderia falar do Golfo, uma região que não existe no mapa de Santos, mas só na memória das pessoas - lugar de morte certa para os bêbados, os sonhadores, onde nem os homenzarrões da Polícia Marítima tinham coragem de entrar.

Agora, quando ando às voltas com outro romance que não sei se ainda terminarei - porque só os loucos ainda querem ser escritores num país em que se trabalha tanto e ninguém lê nada - o Paquetá tem rondado outra vez a minha cabeça. Mas é um Paquetá bem diferente desse daí de cima. É aquele Paquetá de que fala Ribeiro Couto, um Paquetá que deixa no sangue da gente o instinto da partida, o amor dos estrangeiros e das nações, o Paquetá da greve nas Docas de 1919, quando o poeta Martins Fontes andava pela Cidade a fazer palestras sobre o anarquismo e o delegado Ibrahim Nobre caçava trabalhadores como um capitão-do-mato negros fugitivos.

Esse foi um outro Paquetá, que, com paciência, podemos descobrir nas páginas amarelecidas desta mesma A Tribuna e ficar sabendo, por exemplo, que o bonde da linha 11 saía da Praça Mauá e subia a Rua General Câmara em direção contrária ao fluxo de tráfego de hoje. Um Paquetá de muito heroísmo que reunia os trabalhadores que sustentaram sob a mais feroz repressão uma greve de mais de 30 dias, que levou ao desemprego cerca de dois mil operários das Docas, numa cidade que não tinha mais do que 30 mil habitantes.

Algumas vezes, lendo Ranulpho Prata, outro que há muitos anos escreveu sobre o Paquetá e seus trabalhadores, num livro chamado Navios Iluminados, tendo pensado sobre o que tanto atrai nesse pedaço de terra. E, enfim, sem êxito. Talvez porque o Paquetá está mais além dos sentidos humanos.

(*) Adelto Gonçalves é jornalista de A Tribuna e autor do livro Os Vira-latas da Madrugada, que tem como cenário o Bairro do Paquetá.