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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - SEU BAIRRO/mapa
Encruzilhada e o seu grande dilema (1)

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Publicado em 11/11/1982 no jornal A Tribuna de Santos

 Leda Mondin (texto) e equipe de A Tribuna (fotos)

É Encruzilhada no nome. E numa encruzilhada parece estar: conseguirá subsistir como um bairro residencial ou perderá esse caráter, sucumbindo diante do avanço da Vila Matias? Muita gente anda preocupada com essa vizinha, que cada dia se faz mais presente com suas oficinas, marcenarias, lojas que vendem peças de automóveis. O que poderá acontecer nos próximos anos? Os moradores serão expulsos pelo comércio?

Quase desabitada no começo do século XX, Encruzilhada viu-se tomada por chalés com o correr do tempo. Mas, esses chalés desapareceram e no lugar deles surgiram sobrados e edifícios. Dificilmente se encontra algum lote vago nesse bairro de quase quatro mil residências e mais de 18 mil habitantes.

As últimas grandes áreas livres - onde ficavam os campos do XV de Novembro e do Praia, dois populares representantes do futebol varzeano - foram ocupadas pelos 23 prédios do Conjunto Residencial Ana Costa.

Conclusão: tudo o que restou para o lazer da população são duas praças pequenas e mal conservadas - Almirante Tamandaré e Padre Champagnat. E, como não há uma sociedade de melhoramentos para reivindicar, a população convive com os problemas. As reclamações contra a má iluminação e a sujeira no terreno da Fepasa quase nunca passam das conversas na esquina ou das mesas de bares.

Muita gente nem sabe que em Santos há um lugar chamado Encruzilhada. Trata-se de um bairro novo, criado em 1968, mas desde o século XIX se conhece o núcleo por esse nome. Os chalés de outros tempos foram substituídos por prédios e sobrados e, agora, os moradores temem que o bairro perca a característica de residencial: a Vila Matias começa a invadir novas ruas com seu comércio diversificado.


Comercial ou residencial? Eis o grande dilema que enfrenta atualmente o Bairro da Encruzilhada

Que tal soltar a imaginação e voltar ao século XIX? Estamos em um caminho sinuoso, de terra mal batida, sem valas, com águas pluviais acumuladas aqui e ali, esperando que o sol forte venha secá-las. Por ser oblíquio, acaba por encruzilhar-se com a vereda seguinte, que também se encontra no mesmo estado: cheia de poças de água entre o mato rasteiro. Não se vê nem sinal da Avenida Conselheiro Nébias.

Agora retornemos aos dias de hoje.

Os dois atalhos tão mal conservados transformaram-se em, nada mais nada menos, que nas ruas Luís de Camões e Oswaldo Cruz. Juntas, formavam a única passagem para a praia e ficaram conhecidas em toda Santos como Caminho Velho da Barra.

E justamente por causa daquele popular encruzamento de veredas, todos começaram a chamar as áreas próximas de Encruzilhada. Não era um nome oficial até que, em 1968, quando se definiu o novo abairramento de Santos, a região ganhou status de bairro. No final das contas, prevaleceu a denominação tradicional.

Tão antigas quanto o Caminho Velho são histórias que se conta sobre ele. Misturou-se verdade com fantasia, imaginação, malícia e outros ingredientes de sabor bem popular para resultar em casos que correm por aí até hoje.

Um deles propala que havia à beira da vereda uma grande cruz, que durante muitos anos simbolizou o sentimento religioso do povo. No local morrera uma senhora muito piedosa, à qual atribuíam dons miraculosos.

Os detalhes incluem até nomes: a mulher chamava-ses Maria Gertrudes de Jesus, morava nas imediações do Caminho da Barra e vivia feliz com o marido Policarpo dos Passos Fogaça e o filho Policarpinho. Embora sua casa fosse modesta, costumava acolher todos que tinham sede ou fome.

Certa vez, chegou até lá um homem, de sobrenome Carvajo, acompanhado de um filho bem novo. Um dia, quando retornava das compras, Maria Gertrudes foi assediada por ele, mas o repeliu. Carvajo, louco da vida, sacou de uma faca e a matou.

Para assinalar o local do crime, os familiares colocaram uma cruz de pedra, que logo em seguida foi destruída. Uma segunda cruz teve o mesmo fim, até que uma família importante mandou colocar uma terceira, de grande porte, que durante muitos anos conservou-se na Encruzilhada.

Verdadeiras ou não, histórias como essas fazem parte do folclore de um bairro, E ninguém pode negar a importância do folclore como fator de união de comunidade. Vamos, então, reconstituir outras coisas e causos passados.

O colorido dos pássaros e balões em contraste com as ruas enlameadas - E quem se chega para conversar é Antônio Henriques, ou simplesmente Antônio Carvoeiro. As carvoarias há muito tempo desapareceram da paisagem de Santos, mas o apelido de seu Antônio sobreviveu às mudanças e assumiu a projeção de testemunho de uma época. Mas isso de alcunhas que se investiram de tamanha importância é uma história que fica para depois.

O ex-carvoeiro, no bairro desde 1924

Seu Antônio mora na Encruzilhada desde 1924 e conheceu a Rua Luís de Camões de outros tempos. Não uma passagem enlameada como no século passado, mas já melhorada, um simpático caminho de pedras, desses que só se vê nos morros de Santos. Veio de Portugal sozinho, para tentar a sorte, e se instalou no chalé de número 192 da Rua Cunha Moreira.

Um outro mundo, a Encruzilhada daquele tempo. Não é como agora, que se abre a janela e dá de cara com o vizinho escovando os dentes ou almoçando. Havia um chalé aqui, outro adiante, devidamente encobertos por frondosas árvores.

Mato não faltava, com todos os bichos e aves que lhe são de direito, desde preás até passarinhos multicoloridos que embelezavam ainda mais o céu de um azul intenso. Azulões, coleirinhas, curiós, pintassilgos, pixoxós. Quem viu, não consegue esquecer.

O céu só ficava mais colorido quando forrado de balões. Balões enormes, capazes de encobrir uma casa e que tinham formas e apelidos os mais diversificados possíveis. Só para citar alguns: charuto, almofada, homem, tangerina, porco e cruz. Subiam alto, bem alto e tentavam competir com as estrelas. Perdiam em número: naturalmente, porque as estrelas se destacavam como elas só, naquelas épocas em que a escuridão predominava no mundo cá de baixo.

O que contrastava com toda essa beleza era a lama, que transformava a Rua Cunha Moreira em caminho intransponível. Seu Antônio Carvoeiro lembra-se muito bem: nem os tradicionais carros puxados por animais conseguiam ir em frente. Atolavam, empacavam e nem se sacudindo feito maria-mole saíam do lugar. O suficiente, enfim, para a molecada fazer uma farra danada. Por isso mesmo, nem os lixeiros se atreviam a cruzar a Cunha Moreira com suas carroças. Vejam como faz tempo: ainda se recolhia lixo em carroças.

Com os novos tempos, o fim das carvoarias e dos campos de várzea - A Avenida Washington Luís também "não valia nada", no dizer de seu Antônio. A Conselheiro Nébias, apesar de ostentar valas dos lados, era bem bonita, com seus canteiros cheios de árvores. Os famosos canteiros que desapareceram para se poder alargar as pistas.

E se as moradias eram poucas, as casas comerciais em número menor ainda. Uma das primeiras de que se tem notícia é o Armazém Madeira, na Avenida Washington Luís com Rua Cunha Moreira, do português Manoel Ferreira. Começou a funcionar no final da primeira década do século XX, sobreviveu à chegada de outras mercearias e dos grandes supermercados, e atende até hoje no mesmo endereço. Os irmãos Ferreira apenas trataram de modernizar as instalações: desapareceu o Armazém Madeira para surgir a "venda dos ilhéus".

A carvoaria de seu Antônio  levava o pomposo nome de Empresa Camões e estava instalada junto à casa onde morava. Por muitos anos, foi a única das imediações, mas depois chegaram mais duas, na mesma Cunha Moreira. Por fim, seu Antônio resolveu vendê-la em 1946, passando a fazer carretos com um pequeno caminhão. Carregou muito café pelas ruas que se multiplicavam e recebiam melhorias.

Os novos tempos determinaram o fim das carvoarias e de muitas outras coisas. Não sobrou uma única chácara de japonês, embora houvesse muitas delas. As últimas a desaparecer se estendiam da Washington Luís até a Rua Luís de Camões e ostentavam machucheiros para ninguém botar defeito.

A antiga estrebaria, que ficava no miolo onde está hoje a Rua Pérsio de Queiróz Filho, deu lugar a um quartel, cujos imponentes portões davam de frente para a Rua João Guerra. Mas também o quartel deixou de existir e, em áreas que lhe pertenceram, funciona a Confecções Chaddad.

Sob os prédios do Conjunto Habitacional Ana Costa ficaram sepultados os campos do XV de Novembro e do Praia, dois populares representantes do futebol varzeano de Santos. Sem campos, como pode sobreviver esse futebol de garra, que cansou de revelar novos craques?

Os estabelecimentos que restaram e um sítio colorindo uma avenida - Mas nem tudo se tornou lembranças do passado, pois vários antigos estabelecimentos comerciais continuam servindo aos filhos, e às vezes netos, dos velhos moradores. A Padaria A Preferida tem mais de 40 anos, e a Panificadora Camões, apesar de bem mais nova, pode ser considerada um "patrimônio do bairro", como costumam dizer alguns.

O Armazém Minerva tem pelo menos uns 60 anos e como todo armazém que se preza vende uma infinidade de artigos e produtos, desde vinho tinto e groselha até vassouras, invariavelmente penduradas à vista do freguês.

Uma "bagunça organizada" tão grande quanto na casa de ferragens do Mercado Metrópole: nessa se vende de pião a artigos de plástico, passando ainda por conserto de panelas. O mercado tem uns 20 anos e 15 boxes, onde funcionam, entre outros, um açougue, uma loja de artesanato, um cabeleireiro e uma casa de laticínios que ostenta enormes barris do lado de fora.

Qual avô que não precisou, numa emergência qualquer, dar uma chegadinha na Farmácia Conselheiro Nébias? E quantos algum dia não se sentaram na cadeira do barbeiro Antônio Lopes Quiroga? Antigo na Encruzilhada, conserva uma chapeleira dessas com espelho no meio e vários vidros de produtos que desapareceram do mercado há anos: Água de Portugal, Água de Quina, Mentolado. Para quem quiser conferir: Avenida Conselheiro Nébias, 399.

Quem for até lá não deixe de dar uma olhadinha no painel sobre o bar ao lado, que nada mais é do que uma reprodução de uma vista da "fazenda de aguardentes" do Sítio Sandy. Esse sítio fica no Estuário de Santos, poucos santistas sabem da sua existência e muito menos que lá ainda se prepara dessas pingas bem branquinhas, com cheiro de canavial.

O painel está lá, bonito como ele só, se destacando na acinzentada Avenida Conselheiro Nébias. Seu colorido faz lembrar um quintal cheio de roupas secando ao sol, como aqueles das tradicionais lavadeiras da Encruzilhada. Cedinho já se entregavam ao trabalho no tanque, curvadas sobre a água, pau de sabão na mão. Depois, enchiam os varais e iam cuidar do almoço tranqüilas: não havia roubos, ninguém mexia em nada.

Outros tempos, não resta dúvida.


Os bonitos jamboleiros, alegria das crianças de diferentes gerações

Veja as partes [2], [3] e [4] desta matéria
Veja Bairros/Encruzilhada

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