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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - CANAIS - BIBLIOTECA NM
Posicionamento da Prefeitura - 04


Clique na imagem para voltar ao índice do livroA polêmica acirrada entre o idealizador do sistema de canais para Santos e os vereadores santistas, que marcou o início do século XX, levou o jornalista Alberto Sousa a escrever o livro A Municipalidade de Santos perante a Comissão de Saneamento, publicado em 1914 pelas Officinas Graphicas do Bureau Central, em Santos, em que polemiza com o engenheiro Saturnino de Brito.

O exemplar, com 257 páginas, foi cedido a Novo Milênio para digitalização pela Biblioteca Pública Alberto Sousa, de Santos, através da bibliotecária Bettina Maura Nogueira de Sá, em maio de 2010. A ortografia foi atualizada, nesta transcrição (páginas 15 a 24):

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A Municipalidade de Santos perante

a Comissão de Saneamento

Alberto Sousa

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PARTE I - EXPOSIÇÃO E DEBATE
III - O verdadeiro histórico da questão

O artigo segundo da série é consagrado pelo seu autor ao histórico da questão, e à sua razão de ser. Entende o sr. Saturnino de Brito que "quem houver de projetar os esgotos tem por dever projetar as ruas futuras, se não houver na ocasião um plano geral, organizado pelo poder competente, que é a Municipalidade".

Desde, pois, que, na opinião de s.s., na época de executar-se o serviço de esgotos, que é municipal, a Câmara, por qualquer motivo, deixa que outro agente projete e execute aquele serviço, de sua alçada exclusiva, abre mão de sua competência e de sua autonomia, que passam a ficar subordinadas ao outro agente que, no caso em discussão, é o Governo Estadual, representado pela Comissão de Saneamento.

Ora, para discutir-se lealmente este ponto, é necessário remontarmos a mais longe o histórico da questão, cujo início o sr. Saturnino de Brito faz partir erroneamente da época em que se deu começo prático à execução das obras de saneamento em Santos.

É certo que a Lei Orgânica atribui às Câmaras Municipais a competência de providenciar sobre o serviço de esgotos; e a Lei n. 240, de 4 de setembro de 1913, dá-lhes ainda a atribuição de tratar do saneamento local, em todos os seus detalhes, podendo o governo subvencionar aquelas que demonstrarem insuficiência de meios para as despesas respectivas.

O art. 5º da Lei n. 240 dispõe, outrossim, que, enquanto não estiverem definitivamente organizados os serviços de higiene municipal, e em épocas excepcionais, poderá o Governo do Estado chamar a si os encargos e atribuições que são da competência das municipalidades.

O que se deu com a cidade de Santos, ao tempo em que ficou resolvido saneá-la, foi exatamente o que prevê o artigo acima citado: os serviços de higiene não se achavam organizados, e atravessávamos uma época excepcional, a braços com o irrompimento de uma nova e terrível epidemia de febre amarela.

Foi então que o Governo do Estado, tendo em vista o descrédito crescente em que soçobrava a reputação de nosso porto principal, resolveu enfrentar, enérgica e decisivamente, o problema de seu saneamento definitivo. O que influiu no espírito da alta administração estadual não foi meramente o propósito cavalheiresco e generoso de dar a Santos as condições normais de salubridade, que lhe faltavam; o que o levou a essa patriótica resolução foi o interesse da segurança do Estado.

A febre amarela já não se limitava mais ao território santista; tinha galgado a serra, invadido a capital e estabelecido seu campo de ação nas férteis zonas do chamado Oeste. Campinas, Jaú, Descalvado, Limeira e outras muitas localidades importantes, núcleos de imigração e de trabalho agrícola, tinham sofrido a invasão da epidemia.

Sanear Santos era, pois, defender a integridade do território do Estado, a vida dos habitantes do interior, os seus vastos campos de lavoura; era atrair a corrente imigratória, indispensável à exploração dos produtos do solo paulista; era chamar de novo, ao nosso porto, os navios das nações com quem tínhamos relações comerciais e que daqui se afastavam, comprometendo gravemente os mais respeitáveis interesses de nossa vida econômica.

"É preciso, à custa de todos os sacrifícios, sanear a cidade de Santos", escrevia ao presidente de então, em caráter oficial, o dr. Vicente de Carvalho, secretário do Interior, a quem coube a glória de dar o primeiro impulso ao problema, chamando para estudá-lo um especialista afamado da Norte-América, o engenheiro dr. Fuertes.

Assim, pois, o que forçou o Governo do Estado a projetar o saneamento de Santos não foi nenhum motivo de ordem local: foi a defesa geral do território paulista e do nosso futuro econômico que se encontrava em perigo. Se a questão da salubridade de Santos interessasse apenas à vida local, é possível que o seu saneamento fosse feito aos poucos, à proporção dos nossos próprios recursos, e sob a responsabilidade exclusiva das administrações municipais.

Reconhecido, porém, que o saneamento de nosso porto e cidade era uma questão vital para os interesses primordiais do Estado, o governo paulista não podia obrigar nem exigir que a Câmara, com os seus escassos rendimentos orçamentais, mandasse executar uma obra que importaria, pelo menos, em soma equivalente a mais de 20 anos da totalidade de nossa arrecadação.

Desde que se tratava da defesa do Estado, era a este que cabia, logicamente, assumir as responsabilidades e encargos de obras tão complexas e tão custosas. A Municipalidade, portanto, não abriu mão de sua competência no assunto, como se afigura ao sr. Saturnino de Brito. Sendo do interesse dos dois poderes as obras  executar-se, e dispondo o Estado de recursos financeiros para dar começo aos trabalhos e levá-los a cabo, incumbiu-se deles, cabendo, todavia, à Municipalidade reembolsá-lo de todas as despesas feitas.

Quem lê o que o sr. Saturnino de Brito escreve, enaltecendo o Governo Estadual, pensa que este entregou Santos saneada à respectiva Municipalidade, sem exigir dela o menor sacrifício, o que é uma pura ilusão. A taxa de esgotos, que pertence ao Município, está sendo arrecadada pelo Estado, até completa indenização dos gastos operados.

O que o governo fez, levado, aliás, por uma necessidade urgente de salvação pública, foi dirigir as obras e adiantar ao Município de Santos o preço de seu custeio. Era natural, entretanto, que, sendo a obra levada a efeito no interesse da defesa geral do Estado, este, a quem ela aproveitou grandemente, contribuísse, dentro dos seus orçamentos, para a sua execução, não se limitando apenas a adiantar, como fez, as quantias de que se vai cobrando regularmente todos os anos.

Uma vez, portanto, que o Estado não fez o saneamento de Santos senão dominado pelas mais prementes circunstâncias de ordem geral, e que assim mesmo não contribuiu comum ceitil de suas rendas para essas obras, tão imperiosamente exigidas, mas apenas adiantou aos cofres do Município as quantias necessárias à realização delas, não se pode afirmar, de boa fé, que a nossa Municipalidade tenha declinado de sua competência e fugido à responsabilidade de seus encargos legais, que vai suportando até agora e suportará por longos anos ainda.

O que é fora de dúvida é que a Administração Municipal faria mais tarde o saneamento, como tem feito outras obras, à medida que os seus recursos, aumentados com a renda dos esgotos, que é paga ao Estado, o permitissem, e realizando, mesmo, as operações de crédito indispensáveis à grandeza da obra.

Mas, o que o Município de Santos não podia, mormente naquela época, era atender ao aflitivo apelo do Estado, que precisava, a todo o transe, defender seu território, seus habitantes válidos, seu comércio, sua economia, contra os incalculáveis prejuízos que lhe acarretavam, no momento, as assolações epidêmicas da febre amarela. O que ele pôde fazer, fez, entretanto, com o mais denodado desprendimento, assumindo, sozinho, por dilatados anos, a responsabilidade dos compromissos tomados em favor dos interesses de todos.

É, pois, desse início que deve partir o histórico da questão, que o sr. Saturnino de Brito se propôs narrar, para conhecimento do público.

Prosseguindo nas suas considerações, o ilustre engenheiro aprofunda-se em cogitações respeitantes ao conceito jurídico de autonomia municipal e prerrogativas que desta decorrem.

A Constituição Federal, em artigo simples, conciso, categórico e claro, prescreve apenas que "Os Estados organizar-se-ão de forma que fique assegurada a autonomia dos municípios, em tudo quanto respeita ao seu peculiar interesse".

O afamado sanitarista, por uma sutil interpretação, que lhe assegura os créditos de jurisconsulto art-nouveau, entende que as "Câmaras, para gozarem da autonomia que a Constituição define para as administrações capazes de se governarem autonomamente, será preciso que elas cuidem de fazer todos os trabalhos reclamados urgentemente, como de salvação pública".

Pondo de lado a redação gramatical desse período, que, sobre deselegante, é péssima, quedemo-nos, embasbacados, diante da sapiência jurídica deste constitucionalista de repica-ponto.

A Constituição manda que a autonomia dos municípios seja assegurada pelos Estados, simplesmente e nitidamente. O sr. Saturnino, porém, exige uma condição preliminar para essa autonomia: que as administrações sejam capazes de se governar autonomamente. Sem que essa condição exigida por Brito seja cabalmente preenchida - ponhamos de lado as nossas veleidades autonômicas.

Mas, a prova de que as administrações são capazes de se reger autonomamente, em que consiste? Responde-nos Brito, no período acima transcrito na íntegra: é preciso que cuidem de fazer urgentemente todos os trabalhos reclamados. Com tal exigência, é evidente que não poderia existir no Brasil nenhum só município autônomo, porque não há um só que seja capaz de fazer urgentemente todos os trabalhos reclamados pelas necessidades locais.

O saneamento de Santos está se fazendo há longos vinte anos, e ainda não se acha pronto. Nestas condições, e diante das exigências de Brito, nem o próprio Estado de S. Paulo pode aspirar aos foros de município autônomo, quanto mais ao de estado modelarmente constituído!

E o chefe da Comissão de Saneamento continua, em colunas cerradas, a combater a autonomia municipal. "Pela Constituição - diz ele - os municípios serão autonômicos. Entretanto,no Distrito Federal, o prefeito é nomeado pelo presidente da República". Esquece-se, ou antes, ignora o sr. Saturnino que é a própria Constituição da República que estabelece essa exceção, pela inconveniência de existir na sede do Governo um poder autônomo em contraste com o do presidente? A nomeação do prefeito do Distrito Federal resulta de um preceito constitucional positivo, que determina que esse Distrito seja administrado pelas autoridades municipais, salvas as restrições especificadas na Constituição e nas leis federais.

Como os Estados devem se organizar, respeitando os princípios constitucionais da União, não são ilegais as nomeações dos perfeitos de Recife, de Niterói e de Belo Horizonte, capitais de Estado. Militam em favor dessas exceções os mesmos motivos constitucionais relativos ao Distrito Federal.

Mas, atentaria contra a Constituição da República, destruindo o regime da autonomia municipal, que ela garante, qualquer lei generalizando a todos os municípios a prerrogativa, concedida constitucionalmente ao chefe da Nação e aos chefes dos Estados, de nomear livremente os prefeitos das suas capitais.

A nomeação dos prefeitos das estações de águas em Minas, a que também alude o sr. Brito, é flagrantemente inconstitucional, embora haja razões superiores que a expliquem. Não é porque o Estado tenha feito obras nessas estações que ele nomeia os prefeitos. É porque as águas, que são a vida de tais localidades, pertencem ao Estado e são exploradas por ele, diretamente, ou por concessões a arrendatários. Mesmo assim, semelhante processo é ilegal, porque a Constituição da República não cogitou da exceção a não ser para a sede do Governo Federal.

E, na sua faina de tudo reformar, cidades, códigos, doutrinas e leis, o sr. engenheiro-chefe, não contente com propor à Câmara de Santos uma reforma errada da cidade, propõe a seguinte reforma ao preceito da autonomia municipal: "O governo nomeará os prefeitos das cidades onde o Estado tenha executado serviços municipais". E acrescenta, à guisa de comentário e de reprimenda: "Paguem as cidades os trabalhos executados pelo Estado e gozem então da autonomia municipal".

Ora, como a cidade de Santos paga pontualmente, todos os anos, ao estado, por conta das obras executadas, a renda dos impostos municipais de esgotos - segue-se que ela se acha compreendida entre aquelas que, no entender do eminente sanitarista, estão aptas para gozar da sua autonomia.

Em apoio de suas opiniões, cita o sr. Saturnino de Brito, a Alemanha e a Bélgica, onde os conselhos municipais são legalmente obrigados a sujeitar à superior administração daqueles países os planos de expansão das respectivas cidades.

Parece incrível que um homem, cujo cérebro se deveria ter disciplinado no estudo metódico da Matemática, que ensina a ser lógico e a ser positivo, invoque em abono das proposições que avança, argumentos deste jaez, que envergonhariam a um incipiente aluno de Preparatórios.

Em primeiro lugar, lá existe a lei obrigando as municipalidades a tal subordinação; aqui, ao contrário, a nossa lei fundamental forra os municípios a essa absurda sujeição, incompatível com as regalias do regime autonômico puro.

Em segundo lugar, não se devem comparar velhos países monárquicos, de tipo retrógrado, nos quais o poder central tudo absorve e domina, com um país novo, como o nosso, com a sua organização republicana, baseada na mais lata descentralização política e administrativa.

Evocá-los como exemplos e modelos, que nos devam guiar e orientar em nossos cometimentos, é renegar a conquista republicana, é quer que, sob o rótulo exterior de república, abriguem-se em nosso país as instituições que caracterizam o regime monárquico e que daqui foram banidas por contrárias às correntes da evolução brasileira.

Aliás, não precisava o sr. Saturnino de Brito socorrer-se da legislação estrangeira e do exemplo das monarquias européias, em proveito de suas opiniões, aberrativas do senso republicano. Nós tivemos o exemplo em nossa própria casa, no tempo do Império.

Debaixo desse regime, as nossas Câmaras não podiam fazer vigorar seus orçamentos e nem executar suas posturas, sem prévia discussão e aprovação das Assembléias Provinciais e dos presidentes das províncias. Era um sistema análogo ao da Alemanha e ao da Bélgica. Mas foi justamente para eliminar semelhante sistema, inibitório da necessária expansão das forças locais, que se fundou a República, com a instituição básica da organização autonômica dos municípios, como a pregavam os chefes republicanos no tempo da propaganda.

Vem agora o sr. Saturnino de Brito reclamar, com impertinência e azedume, a volta ao velho sistema, imprestável e anti-republicano, somente porque a sua vaidade profissional exige que se imponha à Câmara de Santos a aprovação de um plano errado, destituído de estética e de conforto, e incompatível, pela sua careza, com os recursos financeiros do nosso tesouro local.

O que ressalta de tudo isto é que o sr. engenheiro-chefe, com uma deplorável deficiência de lógica, estranhável sobremodo num matemático positivista, de polpa e de topete, argumente com uma organização municipal que ele desejaria que existisse, e não com a que existe, real e constitucionalmente. O sr. Saturnino de Brito sonha com o Município de Santos escravizado aos caprichos de sua Comissão e ao arbítrio do Governo Estadual - sem a prévia reforma da Constituição da República; como sonhou com a gigantesca e maravilhosa reforma da cidade - sem inquirir previamente onde encontrar dinheiro bastante para essa obra caríssima.

S.s. é um sonhador, é um delirante, é um vigilâmbulo, sonha acordado, vive sob a influência auto-sugestiva das desvairadas inspirações de sua ardente imaginação, estimulada pelo seu orgulho.

Imagem: reprodução parcial da obra de Alberto Sousa (página 17)