Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/santos/calixtoch18.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 07/21/10 15:19:01
Clique na imagem para ir à página-índice de Benedito Calixto
BENEDITO CALIXTO
Calixto e as Capitanias Paulistas - 18


Clique na imagem para ir ao índice da obraAlém de refinado pintor, responsável por importantes telas que compõem a memória iconográfica da Baixada Santista, Benedicto Calixto foi também historiador e produziu várias obras no gênero, como esta, Capitanias Paulistas, impressa em 1927 (segunda edição, revista e melhorada, pouco após o seu falecimento) na capital paulista por Casa Duprat e Casa Mayença (reunidas).

O exemplar, com 310 páginas, foi cedido a Novo Milênio para digitalização pela Biblioteca Pública Alberto Sousa, de Santos, através da bibliotecária Bettina Maura Nogueira de Sá, em maio de 2010. A ortografia foi atualizada, nesta transcrição (páginas 203 a 216):

Leva para a página anterior

Capitanias Paulistas

Benedito Calixto

Leva para a página seguinte da série

Imagem: cabeçalho de página da obra (página 203)

CAPÍTULO XIV

Como se justifica ainda o brio e o caráter altivo e nobre dos paulistas. - O espírito de independência, a altivez e o estoicismo de alguns chefes indígenas. - A razão que tinham os paulistas em desejar que o rei lhes mandasse governadores de linhagem e nobreza reconhecida. - Martim Afonso de Souza exaltado nas estrofes de Luís de Camões. - Os bandeirantes paulistas, no sertão, liam e decoravam os "cantos dos Lusíadas". - A razão que tinham os moradores de São Paulo em exaltarem o marquês de Cascais. - Os títulos nobiliários dos condes de Vimieiro e da Ilha do Príncipe, comparados com os títulos dos condes de Monsanto e marquês de Cascais.

ma vez demonstrada, a largos traços, a altivez de caráter do povo paulista, com especialidade dos habitantes da antiga vila de Piratininga, até a época da criação da Capitania de S. Paulo - precisamos reencetar e concluir o motivo ou o ponto que nos propusemos a esclarecer - isto é, a "razão" que tinha esse brioso povo de São Paulo em aclamar o marquês de Cascais "Governador Perpétuo dessas Capitanias", negando, assim, o seu apoio ao dirito que, sobre essas mesmas terras e vilas, tinham os condes de Vimieiro e da Ilha do Príncipe.

É já bem conhecida, nesse período da história colonial, a tendência cavalheiresca desse mesmo povo paulista, em exaltar-se pelas suas ações, enobrecidas pelo vínculo de sangue que lhes provinha dos príncipes fidalgos portugueses e castelhanos que haviam povoado a Capitania de São Vicente. Sabemos bem quão legítima e justificável era a nobreza de sangue, a nobreza dos feitos da mor parte dos "cavalheiros fidalgos" dos tempos heróicos em que Portugal e Espanha tanto se distinguiram nas grandes conquistas e descobertas.

O paulista orgulhava-se com razão dessa nobre descendência. Embora sentisse correr em suas veias alguns glóbulos vermelhos do sangue americano, a mesclar-se com o sangue-azul das metrópoles, não julgavam, nem por isso, aviltada ou desmerecida a sua nobiliarquia; o íncola, embora selvagem, não deixava também de ser altivo e de ter certa nobreza na intrepidez e na coragem heróica com que ousava afrontar os perigos e a própria morte. Quer nas pugnas sangrentas em defesa de sua gleba, quer nas garras de seus inimigos de tribo, cingido pelos fortes laços fatais da moçurana, sabia o índio - com coragem estóica - afrontar o suplício e repelir,nesse momento extremo, os insultos que lhe eram dirigidos e exaltar ainda os feitos guerreiros de seus companheiros que lhe haviam de suceder na morte.

Para melhor demonstrar a coragem e a intrepidez dos nossos índios, citaremos o que sobre eles escreve o notável historiador Pinheiro Chagas na sua Historia de Portugal, quando trata das nossas colônias.

"A princípio foram benévolas e cordiais as relações entre os portugueses e os índios. Estabelecera-se uma troca de serviços em proveito de ambas as partes; mas a altivez dos índios, o seu espírito de independência, começou a fazer com que os contratos a cada instante se rompessem. Daí resultavam conflitos violentos. Os índios, vendo que os prisioneiros cristãos não eram, como eles, estóicos e resolutos; que não se envergonhavam de implorar a sua misericórdia, quando, depois de prisioneiros, eram como de costume conduzidos ao suplício, começaram a desprezar profundamente os europeus, e a considerá-los covardes e efeminados.

"Mais os impressionava, decerto, o heroísmo dos jesuítas do que a bravura dos soldados europeus. Estes, depois de combaterem intrepidamente, não afrontavam, com igual valor, o suplício, e não hesitavam, ou em pedir misericórdia, o que era tido pelos índios como extremo de fraqueza, ou em oferecer resgate, o que também inspirava aos índios um desprezo profundo. Os jesuítas, esses, marchavam para o suplício, radiantes, de cabeça levantada e cantando os hinos da Igreja, ambicionando a morte como recompensa suprema, porque a morte nessas condições lhes dava a alma do martírio e esse heroísmo estava bem de acordo com as tradições dos índios...".

O paulista reconhecia e admirava, no selvagem, todas essas boas qualidades apontadas hoje pelo historiador português. Reconhecia e admirava também a abnegação e o devotamento - às vezes até o sacrifício da própria vida - com que alguns desses chefes indígenas se aliavam e se dedicavam à causa dos colonizadores.

Eram, pois, desses chefes que alguns nobres paulistas descendiam. Não se aviltavam então, nem se aviltam hoje os mesmos paulistas, em ter no seu "registro nobiliário", pelo costado materno, ou por outras linhas, uma remota descendência dessa raça indígena americana. É por isso que ainda vemos tantas famílias ilustres usarem, como sobrenome, os apelidos desses morubixabas. Famílias há que se honram mesmo em batizar os seus filhos com nomes próprios indígenas, o que é, aliás, muito comum, não só em S. Paulo, como nos demais estados da união e mesmo nas repúblicas do Prata e dos Andes de origem católica.

Todos reconhecem, afinal, que foi pela fusão, pela aliança de sangue, com essa raça americana, que o paulista - o bandeirante- adquiriu e retemperou essa fibra, que tão rija e tão forte se tornou nos dois primeiros séculos de nossa história, e no início do terceiro, isto é, de 1700 a 1721.

A influência da época e do meio em que viveram esses heróicos sertanistas, levava-os a exaltarem e a exigirem mesmo nos "seus governadores" todos os requisitos de nobreza e de bravura.

Assim é que os paulistas dessa época exigiam que o rei só lhes mandasse "governadores de linhagem e nobreza reconhecida, como os que haviam tido desde os primórdios de São Vicente".

Entre esses fidalgos primitivos, o que mais satisfazia por certo a exigência dos paulistas, já pela sua nobreza de sangue, já pelo heroísmo de suas ações - embora desumanas e cruéis, no domínio da Ásia - era, sem dúvida, o primeiro donatário Martim Afonso de Souza!

A fama desse fidalgo lusitano, como governador da Índia e como donatário da capitania de São Vicente, estava ainda bem em voga na vila de Piratininga.

Os paulistas dessa época não se vexavam em reconhecer por patrono e fundador da vila de São Paulo o famoso "herói de Damão", já tão celebrizado nestas imortais estrofes de Luiz de Camões:

"Das mãos do teu Estevão vem tomar

As rédeas um, que já será ilustrado

No Brasil, com vencer e castigar

O pirata francês, no mar usado:

Depois, capitão-mor do Índico mar,

O muro de Damão soberbop e armdo

Escala, e primeiro entra a porta aberta

Que fogo e flechas mil terão coberta.

 

Este será Martinho, que de Marte

O nome tem c'oas obras derivado;/

Tanto em armas ilustre em toda parte,

Quanto em conselho sábio e bem cuidado.

---------------------------------------

(Lusíadas - Canto X - LXIII - LXVII)

Como se está vendo, era assim que o famoso poeta lusitano exaltava as glórias do 1º governador da Capitania de São Vicente.

Pouco importava, pois, aos paulistas dessa época, como já dissemos, que as ações desse governador da Índia houvessem sido taxadas de bárbaras e cruéis; pouco se lhes dava, tampouco, que esses chefes indígenas, dos quais descendiam alguns dos intrépidos bandeirantes, pertencessem a tribos barbarizadas e ferozes. Nada disso desdourava ou aviltava o homem, nesses tempos heróicos, em que acima de todos os requisitos e predicados estava a tenacidade, o arrojo e a intrepidez nas ações, uma vez que esses feitos fossem praticados em proveito e defesa de seu Deus e de seu rei.

O que aviltava então o caráter cavalheiresco do fidalgo eram as ações imorais, as uniões ilícitas "de coito danado, ou de aliança com sangue mouro ou judeu, inimigos irreconciliáveis de sua fé", conforme determinavam as leis canônicas desse tempo, entre os povos latinos.

A união de sangue com o gentio americano era lícita e até acoroçoada pelos missionários jesuítas; e esta aliança não quebrava nem aviltava os vínculos nobiliários, como se verifica nas justificações de genere, que promoviam os paulistas, para provarem os títulos de nobreza, que lhes provinham de seus ilustres antepassados.

O paulista, tão falsamente apreciado e tão barbaramente qualificado pelos historiadores coevos a essa época, não era, já se vê, "um povo de salteadores e de cruéis assassinos, orgulhosos, indômitos, sem noções de leis e sem cultivo"; era ao contrário, como se está vendo, simplesmente um povo brioso e cioso de suas prerrogativas; regularmente instruído, pelo menos - sabendo ler e escrever - conforme se verifica pelos autos e mais documentos da Câmara de São Paulo e do Arquivo Público, nos quais esse povo assinava - não de cruz - mas de seu próprio punho, provando assim que não era analfabeto, como já ficou demonstrado.

Das pesquisas feitas no Arquivo Público e nos cartórios de São Paulo, pelo dr. Washington Luís, no intuito de obter documentação para a História dos Bandeirantes, encontrou umas "declarações testamentárias" feitas, no sertão, por um destes famosos bandeirantes paulistas, o qual, não tendo papel para esse fim, escreveu as suas "disposições testamentárias" no verso de um caderno, em manuscrito, na qual estavam copiadas uma boa parte das estrofes dos Lusíadas de Camões [49].

Homens como este - que em pleno sertão, desprovido de todo e qualquer conforto, curtindo e sofrendo as maiores privações, fazia ainda garbo de carregar na sua desprovida bruaca de sertanista essas estrofes de Camões - não eram com certeza os "ignaros e bárbaros aventureiros" de que tais historiadores nos dão notícia.

O Bandeirante paulista, embrenhado no sertão, lia e decorava os cantos dos Lusíadas, revendo e admirando neles os feitos dos heróis lusitanos, entre os quais ocupava uma posição de destaque o "herói fundador da sua amada povoação de Piratininga" - o 1º donatário e governador da Capitania de São Vicente!...

Por que motivo, pois, esses mesmos paulistas, moradores de São Paulo de Piratininga, que tanto veneravam os feitos de Martim Afonso de Souza, nessa primeira época, o olvidaram depois, de 1624 em diante, na pessoa dos seus legítimos descendentes, os condes de Vimieiro e da Ilha do Príncipe, cerceando-lhes assim todos os seus direitos, na posse da Capitania de São Vicente, para darem ganho de causa aos seus antagonistas, os condes de Monsanto, ao marquês de Cascais, herdeiros do donatário Pero Lopes de Souza?!...

Sim! Qual o motivo, qual a forte razão que agia no espírito dos paulistas, moradores da Vila de São Paulo, em exaltarem o marquês de Cascais, herdeiro da donataria de Pero Lopes de Souza e em deprimirem e negarem os direitos dos condes de Vimieiro e da Ilha do Príncipe, herdeiros legítimos da donataria de Martim Afonso de Souza?!...

Qual a razão, qual o motivo, pois, que tinha ainda esse povo em acoroçoar a política dos capitães generais, de 1711 em diante, contra os direitos reconhecidos dos donatários da Capitania de Itanhaém, e mesmo dessa hostilidade, dessa odiosidade atávica dos cronistas e historiadores modernos, em negarem a legalidade do título de Capitania dado à Vila de Itanhaém pela condessa de Vimieiro e mantido sempre pelos seus descendentes até 1753 ou 1777?!...

Seria, porventura, esse procedimento, essa maneira de pensar dos paulistas, desde 1624, sugerida pela falta do necessário critério, ou a conseqüência de uma falsa interpretação, quanto aos direitos de ambos os donatários, após a iniciação do pleito entre as casas de Vimieiro e de Monsanto?!...

Façamos ainda inteira justiça ao brio e ao caráter do povo de São Paulo dessa época. Não era falta de critério, nem tampouco uma falsa interpretação que os levou a prestarem o seu apoio à causa dos condes de Monsanto e ao marquês de Cascais. Não. Com esta sua inteira adesão aos donatários da Capitania de Santo Amaro, eles, os paulistas, não desprestigiaram o nome, as glórias e os direitos de Martim Afonso de Souza, em proveito de seu irmão Pero Lopes de Souza, que, para eles, era uma figura secundária e quase apagada nos fastos da história dos domínios lusitanos.

Os atos de bravura de Pero Lopes, no Brasil [50] ainda não estavam divulgados nessa época, ou eram atribuídos, em parte, a Martim Afonso, conforme se vê dos Lusíadas. O paulista dessa época, deslumbrado e propenso a grandes cometimentos, ambicioso de conquistas territoriais, pouca importância poderia ligar a essa estreita faixa de terra entre a Ilha de S. Vicente e São Sebastião, denominada Capitania de Santo Amaro, na qual estava compreendida a Vila de São Paulo.

O paulista, com o seu espírito dominador, com a sua proverbial e legítima ambição de conquista, não se contentaria com tão pouca coisa: queria a todo o transe, não só que as três vilas primitivas do tempo de Martim Afonso, como todas as "cem léguas de costa" estivessem fazendo parte da sua capitania.

Quando o conde de Monsanto se apoderou dessa povoações, os habitantes da Vila de São Paulo foram os primeiros a lhe prestarem o seu apoio, com a condição, porém, que essa Capitania de Santo Amaro, da qual o conde de Monsanto era donatário, ficasse desde então conhecida por Capitania de S. Vicente, como de fato aconteceu, conforme ficou provado.

Eis como se explica a "teimosia dos paulistas" em não quererem, jamais, reconhecer os direitos dos condes de Vimieiro e da Ilha do Príncipe e não tolerarem mesmo que essa humilde vila de Itanhaém tivesse a ousadia de se intitular Cabeça da Capitania de Martim Afonso de Souza, com uma denominação diversa da que lhes havia dado esse primeiro donatário.

Eis a razão por que, ainda em nossos dias, se nos vem dizer que o título de Capitania de Itanhaém foi sempre uma coisa ilegal - visto que o seu título verdadeiro devia ser Capitania de São Vicente, da qual as "únicas sedes incontestáveis foram sempre São Vicente e S. Paulo". Era essa, e é ainda, talvez, a opinião geral ou a teimosia dos historiadores paulistas, como se porventura se pudesse admitir, ou conciliar, a idéia, a possibilidade da existência de duas donatarias diversas e distintas, sob a mesma denominação!

Eis finalmente a razão porque os habitantes de S. Paulo, de 1624 em diante, faziam tanto garbo em declarar "nos seus documentos oficiais", que pertenciam de fato e de direito à Capitania de S. Vicente, da qual era "governador perpétuo o senhor marquês de Cascais".. Nestes documentos (Annaes da Camara de São Paulo), os paulistas dão ao mesmo marquês de Cascais o título de governador destas capitanias, porque, já então, alimentavam a esperança de que a Vila de São Paulo de Piratininga fosse condecorada com o título de Cabeça de Capitania de São Vicente, ou de Capitania de São Paulo, com amplas jurisdições em todas as demais capitanias do Sul, podendo assim submeter ao seu domínio a donataria dos condes da Ilha do Príncipe, denominada Capitania de Itanhaém, como veremos adiante.

Esta ambição dos paulistas, embora estribada em atos arbitrários, era ainda justificável, atendendo à tenacidade, à teimosia inquebrantável de seu caráter e ainda aos seus sentimentos, às suas exigências nobiliárquicas, como vamos ver.

Os condes de Vimieiro, principalmente o primeiro desse título, d. Francisco de Faro, que casou com a neta de Martim Afonso de Souza, d. Marianna de Souza da Guerra (condessa de Vimieiro), era, como se vê dos dados biográficos que vão em outro capítulo destas Memorias, personagem distinta nas Cortes das Metrópoles - Portugal e Espanha -, descendendo por varonia de d. Fernando, duque de Bragança.

O segundo conde de Vimieiro, d. Sancho de Faro, filho de d. Francisco de Faro, havia sido igualmente homem de grande prestígio, governador de Mazagão, mestre-de-campo-geral na guerra, governador do Minho e Beira, capitão-general e governador da Bahia, onde faleceu em 29 de agosto de 1703.

Os condes da Ilha do Príncipe, que foram os sucessores dos condes de Vimieiro, na donataria de Martim Afonso de Souza, conforme já ficou demonstrado, eram também de nobre linhagem. "A varonia desta Casa, diz a biografia [51], é Carneiro, de que descendia Antonio Carneiro, que serviu aos reis d. João II, d. Manoel e d. João III e dos dois últimos foi secretário de Despacho Universal e do Conselho, de que fizeram grande estimação. Era senhor da Ilha do Príncipe, comendador do Sensoldos e de Marmellar, na Ordem de Cristo e alcaide-mor de Belém".

Todos estes títulos nobiliárquicos deviam produzir excelente impressão e satisfazer mesmo, em parte, as exigências dos habitantes da Vila de São Paulo, tão propensos a estes requisitos de nobreza hereditária.

Se fizermos, porém, uma recapitulação do que já ficou exposto nesta tão intrincada demanda, entre os herdeiros do morgado de Martim Afonso e de Pero Lopes, ver-se-á logo quão diversa havia sido a ação dos pleiteadores, isto é - dos condes de Monsanto e dos de Cascais.

Ao passo que aqueles, os herdeiros de Martim Afonso, tinham sido sempre vencidos nas decisões desse pleito secular, estes - os herdeiros de Pero Lopes - bem mais ousados, intimoratos e enérgicos em suas pretensões - haviam constantemente saído vencedores; pois dispuseram sempre do valimento e das boas graças dos monarcas e da influência dos juízes e governadores-gerais da Colônia.

Nota-se também, no correr deste pleito, que a ação dos condes de Vimieiro e da Ilha do Príncipe foi sempre fraca e morosa, principalmente após a morte do conde d. Sancho de Faro, governador da Bahia, e depois da enérgica administração de João de Moura Fogaça, de 1624 em diante. Embora no governo da Capitania de Itanhaém estivessem homens de grande prestígio e energia, como Diogo Vaz de Escobar, Luiz Lopes de Carvalho, Antonio Barbosa de Sotto Maior, Garcia Lumbria, Carlos Pedrozo da Silveira e outros paulistas, sempre firmes e dispostos a resistir às prepotências e injustiças praticadas contra o direito de seus constituintes, estes, por sua parte, não correspondiam à boa vontade e à ação enérgica de seus loco-tenentes, em prol de seus direitos incontestáveis.

A têmpera desses fidalgos, herdeiros legítimos do "morgado de Alcoentre", principalmente os últimos condes de Vimieiro, da Ilha do Príncipe e Lumiares, já estava por certo bem amolecida, nessa faustosa corte de d. João V... O espírito lúcido do paulista, sempre perspicaz e profundo nas suas observações, bem compreendia e bem avaliava tais diversidades de caráter entre os dois partidos antagonistas, e não podia deixar de estar ao lado do marquês de Cascais; pois, como bem sentenciava o clássico La Fontaine: "La raison du plus fort, c'est toujours la meilleure" (N.E.: em francês: "a razão do mais forte é sempre a melhor").

De fato, a energia do marquês era, incontestavelmente, bem mais forte que a do conde da Ilha do Príncipe.

Havia ainda uma razão, aliás bem plausível e ponderosa, para que a simpatia, a admiração dos paulistas moradores de S. Paulo pendesse para o lado do senhor de Cascais, como vamos ver:

"A varonia desta Casa (diz a Genealogia dos Grandes de Portugal) teve princípio em o senhor d. Affonso Conde de Guijón e Noronha, filho d'el-rei d. Henrique II de Castella, e na de sua mulher a senhora dona Izabel, filha d'el-rei d. Fernando I de Portugal...".

Os condes de Monsanto, que eram da mesma linhagem dos de Cascais, descendiam também, diretamente, da rainha d. Ignez de Castro e de outros fidalgos da mais alta nobreza lusitana e castelhana.

Se os condes de Vimieiro e Ilha do Príncipe usavam em seus brasões d'armas a simbólica flor-de-liz, a Cruz de Callatrava e as Quinas Lusitanas, os condes de Monsanto e o marquês de Cascais, por sua vez, tinham o direito de usar no seu escudo de prata, ao lado dos seis besantes de bláu, postos em pala, os "leões rompentes" de Castella e as Quinas Portuguesas, que constituíam o brasão d'armas de Martim Afonso de Souza; pois, como se vê da árvore genealógica desse famoso fidalgo, eles, os senhores de Monsanto e de Cascais, descendiam pelo costado feminino desse donatário da Capitania de S. Vicente e não tinham, no seu brasão, nenhum "labéu de bastardia", do que aliás, não estavam isentos os brasões dos Vimieiro e Ilha do Príncipe, que, embora herdeiros legítimos, vinculados no Morgadio de Alcoentre pela linha masculina, nãopodiam negar que "essa linha" lhes provinha de Lopo de Souza, neto não legítimo, mas reconhecido, de Martim Afonso de Souza...

Pequenas e insignificantes particularidades estas, que hoje nada significam e que, entretanto, na época à qual nos estamos referindo, entre um povo tão cioso de suas prerrogativas, como era o povo paulista - muita importância adquirir - pesando fortemente sobre a opinião pública, com a qual se aquilatavam os fatos e se decidiam altas questões, como esta de que nos ocupamos.

Clique na imagem para ampliá-la

Planta cadastral da Cidade de S. Vicente em 1922 - por Benedicto Calixto - 1922 - Desenho de Sizenando Calixto

Imagem inserida entre as páginas 212 e 213 da obra - Clique na imagem para ampliá-la


[49] Foi escrito este capítulo em 1912, quando não estavam ainda publicados os Inventarios e Testamentos dos cartórios de S. Paulo, por ordem do exmo. sr. Washington Luis, presidente do Estado, e já por ele consultados.

Ultimamente, o sr. dr. Alcantara Machado, sob o título Aspectos da vida colonial paulista, publicou no Correio Paulistano (11 de junho de 1921) uma série de comentários sobre os Inventarios Antigos publicados pelo governo; e, ao se referir aos livros e às bibliotecas dessa época, existentes em S. Paulo, diz que "nem um exemplar dos Lusíadas consta dos respectivos róis dos inventários, mas, sem embargo da lacuna, temos um testemunho decisivo de quanto era lido e conhecido o poema de Camões. Aqui está o inventário de Pero de Araújo (1617) processado no sertão de Paraupava a mando do capitão Antonio Pedroso. A carência material de escrita obriga o escrivão do arraial a aproveitar o primeiro pedaço de papel que lhe vem às mãos. Por uma daquelas coincidências esplêndidas, em que o destino se compraz,  última folha dos autos tem numa das faces os termos finais do inventário e na outra a cópia manuscrita de algumas estrofes dos Lusíadas. São precisamente as estâncias em que diz o poeta que depois de terem passado por calmas, por tormentos e opressões, e transposto o limite aonde chega o sol, abordam os portugueses as regiões habitadas por gentes estranhas.

"Vede a profunda beleza, o simbolismo, radioso, o sentido heróico dessa obra maravilhosa do acaso; um fragmento da epopéia dos Gamas e dos Albuquerques servindo de fecho ao inventário de um bandeirante obscuro... dir-se-ia a aparição miraculosa do gênio de Camões, à beira da sepultura em que descansa o herói desconhecido, para associarem na imortalidade e na glória, as caravelas arrogantes e as canoas humildes: os vencedores do Oceano e os desbravadores do Sertão...".

[50] Vide Diario de Pero Lopes, no capítulo que refere à Vila de S. Vicente.

[51] Os Grandes de Portugal - por d. Antonio Caetano de Souza.

Imagem: adorno da página 216 da obra