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BENEDITO CALIXTO
Calixto e as Capitanias Paulistas - 17


Clique na imagem para ir ao índice da obraAlém de refinado pintor, responsável por importantes telas que compõem a memória iconográfica da Baixada Santista, Benedicto Calixto foi também historiador e produziu várias obras no gênero, como esta, Capitanias Paulistas, impressa em 1927 (segunda edição, revista e melhorada, pouco após o seu falecimento) na capital paulista por Casa Duprat e Casa Mayença (reunidas).

O exemplar, com 310 páginas, foi cedido a Novo Milênio para digitalização pela Biblioteca Pública Alberto Sousa, de Santos, através da bibliotecária Bettina Maura Nogueira de Sá, em maio de 2010. A ortografia foi atualizada, nesta transcrição (páginas 185 a 201):

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Capitanias Paulistas

Benedito Calixto

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Imagem: cabeçalho de página da obra (página 185)

CAPÍTULO XIII

Confirmação da doação das "cem léguas de costa" feita ao donatário da Capitania de Itanhaém, d. Antonio Carneiro de Souza, em 1709. - As vilas que estavam criadas nessa época e fazendo parte da Capitania de Itanhaém. - As vilas que pertenciam, de direito e de fato, à Capitania de São Paulo. - As generosidades do rei d. João V para com o marquês de Cascais, e as injustiças praticadas contra o conde da Ilha do Príncipe. - A razão de ser dessa parcialidade, nas decisões régias e nas sentenças pronunciadas neste longo litígio. - Os habitantes da Vila de São Paulo. - O caráter do povo paulista. - Ainda "Os anais da Câmara de São Paulo, de 1640 em diante". - Os ajuntamentos e as arruaças nessa época. - Os camaristas coagidos pelo povo. - Qual era o elemento que constituía o povo, nesses ajuntamentos. - O opulento paulista, Guilherme Pompêo.

fim de bem demonstrar qual era a jurisdição da Capitania de Itanhaém, na época em que d. João V comprou, ao marquês de Cascais, as cinqüenta léguas da Capitania de Santo Amaro, denominada então "Capitania de São Vicente" e depois "Capitania de São Paulo", daremos aqui, na sua íntegra, o "Traslado da Confirmação e de doação ao exmo. sr. conde donatário da Capitania de Itanhaém, na era de 1709 anos, a 19 de fevereiro do dito ano, por el-Rei dom João, o quinto": - "Pedindo-me o dito Antonio Carneiro de Souza, conde da Ilha do Príncipe, que porquanto o dito senhor d. Francisco Luiz Carneiro, seu pai, conde que foi da mesma ilha, ora falecido e por sua morte lhe pertencia o ser donatário das cem léguas de terras incluídas nas Cartas nesta incorporada, como era o dito conde seu pai, por ser seu filho legítimo e de sua mulher dona Euphrasia Felippe de Noronha, condessa do mesmo título, e o mais velho que ficara por morte do dito seu pai, como constava da sentença do Juízo das Justificações, que oferecia, lhe fizesse mercê mandar passar carta de confirmação da doação das ditas cem léguas de terras, em seu nome, para as lograr na mesma forma, em que as possuía o dito conde seu pai; e visto seu requerimento e sentença e justificação referida, e carta nesta incorporada e resposta do procurador da Minha Coroa, a quem se deu vista, hei por bem e me apraz fazer mercê ao dito Antonio Carneiro de Souza, conde da Ilha do Príncipe, de lhe confirmar a doação das ditas cem léguas de terras, formadas em Capitania no distrito do RIo de Janeiro, para que as logre e possua, por sucessão, com todas as jurisdições, preeminências, derrogações e tudo o mais que na doação, nesta Carta incorporada, vai declarada, assim como as teve, logrou e possuiu o dito seu pai d. Francisco Luiz Carneiro, conde que foi da Ilha do Príncipe; pelo que mando ao meu governador e capitão-general do Estado do Brasil, governador do Rio de Janeiro, e a todos os meus ministros da Justiça e mais Fazenda do mesmo Estado, a quem pertencer, cumpram e façam cumprir e guardem esta Minha Carta de Confirmação e doação muito inteiramente como nela se contém, e na sua conformidade dêem posse ao dito conde da Ilha do Príncipe, Antonio Carneiro de Souza, da dita Capitania e terras dela, na forma desta doação, e lha cumpram e guardem como nela se contém, sem dúvida alguma; a qual se registrará nos livros das Contas da Cidade de São Salvador e nas câmaras da dita Capitania de Itanhaém e nas partes onde for necessário, de que os escrivães que a registrarem passarão suas certidões nas costas dela, a qual por firmeza de tudo lhe mandei passar, por mim assinada e selada do meu selo de chumbo pendente, do que pagou, de novo, o direito de quatrocentos réis, que se carregarão ao tesoureiro Aleixo Botelho Ferreira, a folha 70, cujo conhecimento em forma consta no registro geral a folhas 59. Dada nesta cidade de Lisboa, aos 19 de fevereiro de 1709. - Rei. - Miguel Carlos".

Nem Pedro Taques, nem fr. Gaspar tiveram conhecimento desta carta régia de d. João V, pois que não fazem dela a menor menção, não obstante achar-se registrada na Câmara de Itanhaém e nos papéis avulsos do governo do capitão-general de São Paulo, Rodrigo Cezar de Menezes, bem como nos arquivos públicos do Rio de Janeiro e da Bahia.

A jurisdição da Capitania de Itanhaém estava, portanto, bem determinada no documento que vimos de transcrever; entretanto, oito meses após a concessão desta Carta de Confirmação - a 22 de outubro desse mesmo ano de 1709 -, o mesmo rei d. João V autorizava por um alvará a venda das cinqüenta léguas do marquês de Cascais, nas quais incluíra já uma boa parte da capitania do conde da Ilha do Príncipe, inclusive as vilas de São Vicente, Santos, S. Paulo etc., como já ficou demonstrado.

O resto das cem léguas da Capitania de Itanhaém vai, daí em diante, ser - não adjudicado por uma sentença ou decisão régia, mas, simplesmente, usurpado pelos governadores capitães-generais, das capitanias de São Paulo e de Minas Gerais, com a aquiescência do próprio monarca lusitano!

A Capitania de São Paulo ainda não estava criada nesta data - 19 de fevereiro de 1709 - quando d. João V reconhecia ainda os direitos do conde da Ilha do Príncipe na extensa Capitania de Itanhaém; mas, a sua criação teve lugar no fim desse mesmo ano de 1709 e a instalação solene a 18 de junho de 1710, com a posse do seu primeiro governador - capitão-general Antonio de Albuquerque Coelho de Carvalho.

A Vila de S. Paulo, que já tinha o título, embora nulo, de Cabeça de Capitania de São Vicente, concedido pelo seu "governador perpétuo", o senhor dom Manoel Joseph de Castro Noronha de Attayde e Souza, VIII conde de Monsanto e II marquês de Cascais, vai receber também o título de sede da Capitania de S. Paulo. A 11 de julho do ano seguinte, 1711, o mesmo rei d. João V, por uma carta régia, lhe confere ainda o predicamento de cidade, talvez por influência do ex-governadora perpétuo, o senhor Marquês de Cascais, que gozava de tanto prestígio na corte faustosa desse rei lusitano.

Vejamos, pois, qual seria de fato e de direito a jurisdição desta Capitania de São Paulo, criada em 1709 e instalada a 18 de julho de 1710 [47].

Se, conforme rezam as cartas de confirmações e doações concedidas por d. João V, as quais vimos de transcrever, as cem léguas da donataria de Martim Afonso pertenciam de direito ao conde da Ilha do Príncipe, é claro que a jurisdição da Capitania de Itanhaém, da qual o dito conde era donatário legítimo (fazendo mesmo abstração da parte compreendida entre Bertioga e S. Vicente) se estendia ainda da barra de S. Vicente (Ilha Porchat) até a Ilha do Mel, na barra de Paranaguá, e do Rio Juqueriquerê, em S. Sebastião, até Angra dos Reis, ou Cabo Frio, conforme afirma Pedro Taques.

As vilas da marinha, situadas nesta seção setentrional da Capitania de Itanhaém, que ainda faziam parte da mesma jurisdição, após a criação da Capitania do Rio de Janeiro (como se vê dos documentos na parte destas Memorias que se referem à criação dessas vilas), eram as seguintes: Parati, Ubatuba e Caraguatatuba.

No interior, à margem do Paraíba, existiam então, nessa época, as vilas de São José dos Campos, Jacareí, Taubaté, Pindamonhangaba e Guaratinguetá, bem como outras povoações, que ainda não tinham predicamento de vila e que estavam, entretanto, sob a jurisdição da Capitania de Itanhaém.

Grande parte do vasto território de Minas Gerais, com suas respectivas povoações, onde então se extraía o ouro, estava igualmente fazendo parte da mesma capitania.

Na seção meridional desta capitania, na zona marítima já descrita, estavam as vilas de Itanhaém, Iguape e Cananéia; e no interior, a vila de Sorocaba, talvez a de Itu e as demais povoações já fundadas nessa época.

Eram estas, pois, incontestavelmente, conforme o "Traslado de Doação" dado por d. João V, as vilas e povoações que pertenciam à Capitania de Itanhaém.

Veremos agora quais as vilas que faziam parte da jurisdição da Capitania de São Paulo, a qual nada mais era, nessa época, que a parte da donataria de Pero Lopes de Souza, denominada primitivamente Capitania de Santo Amaro - e crismada depois com o nome de Capitania de São Vicente, a qual acabava de ser comprada ao marquês de Cascais, pela Coroa lusitana.

Na parte litorânea desta Capitania de São Vicente, compreendida entre o Rio Juqueriquerê e a Barra de São Vicente, estavam as vilas de Santos e São Sebastião, cuja fundação data, segundo diz Pedro Taques, de 1603.

No interior, dentro dessa zona, estavam apenas as vilas de São Paulo, Mogi das Cruzes, Parnaíba, talvez Itu, e outras povoações que não tinham ainda predicamento de vila.

Na seção meridional desta mesma capitania que abrangi desde a barra de Paranaguá até a Ilha de Santa Catarina, existiam apenas três vilas: Paranaguá, São Francisco e Laguna, visto como, segundo afirma Pedro Taques, o resto desse território estava ainda despovoado nessa época.

Era esta pois a discriminação exata das divisas, entre as duas antigas donatarias, e suas respectivas jurisdições.

Os governadores da Capitania de São Paulo não podiam ignorar esta discriminação, aliás tão clara e tão positiva, pois tinham no arquivo da mesma capitania a carta régia da confirmação dessas doações, com as respectivas divisas, que o rei d. João V havia concedido ao donatário da Capitania de Itanhaém, a qual, por sua ordem, estava registrada nos livros das Câmaras respectivas.

Entretanto, a nada se atendeu; e, com aquiescência do próprio rei, tudo ficou como "letra morta", sujeito ao arbítrio despótico dos capitães-generais.

Todas estas injustiças se teriam, entretanto, evitado, se o rei d. João V tivesse, nessa mesma época, anexado à sua coroa o resto das cem léguas da donataria do conde da Ilha do Príncipe, indenizando-o do seu respectivo valor, como aliás havia feito com as cinqüenta léguas pertencentes ao marquês de Cascais.

Ainda mesmo que essa donataria dos condes da Ilha do Príncipe, que constituía a Capitania de Itanhém, tivesse o dobro ou triplo do valor da antiga Capitania de Santo Amaro, em conseqüência da importância que provinha das suas minas auríferas, como já demonstramos, mesmo assim, não seria difícil e tão oneroso, para d. João V, obter os meios para tal indenização: bastaria, para tal fim, lançar mão apenas de uma parte do crédito das próprias minas, que lhe rendiam, já nessa época, mais de cem arrobas de ouro anualmente, só com o produto dos reais quintos.

Quando se tratou em Lisboa, em 1708, de vender essas cinqüenta léguas da Capitania de São Vicente, ao opulento paulista José de Góes de Moraes, por "quarenta mil cruzados", o senhor marquês de Cascais, proprietário da mesma capitania, declarava ao rei d. João V "que esse preço era excessivo, visto que os rendimentos em juros iriam avultar ainda mais essa importância fabulosa que o Creso paulista lhe oferecia".

O rei d. João V, não querendo que essa donataria viesse cair em mãos de um simples particular, como esse opulento paulista - que desejava "honrar-se com o título de donatário, em uma capitania de tão grande jurisdição", resolveu adquiri-la para sua Coroa; e,  ... sem tratar de regatear o "excessivo preço" que por ela oferecia o argentário paulista, ao contrário, mandou que imediatamente fossem pagos ao marquês, não só os 40.000 cruzados, como ainda os 4.000 a título de luvas!...

Ao passo que com o marquês de Cascais assim se praticava - com tal generosidade -, procurava-se já, como bem pondera o dr. João Mendes de Almeida, "piorar, cada vez mais, as condições dos donatários da Capitania de Itanhaém, a fim de lhes diminuir a indenização", se é que de fato se cogitou de indenizá-los.

O historiador, para bem esclarecer certos pontos, tem o dever de indagar, na própria história, a razão de ser de alguns fatos que, como este, se nos apresentam de forma tão estranha e singular.

Houve, sempre, por parte do rei e dos governadores - como temos visto nesta questão entre as duas donatarias - uma simpatia ou parcialidade bem acentuada a favor dos herdeiros do Pero Lopes e, ao mesmo temo, uma tendência hostil aos legítimos herdeiros de Martim Afonso.

Não procuraremos desvendar a origem ou o motivo dessa parcialidade nos julgamentos dos juízes e nas decisões régias, durante o  desdobramento das fases deste litígio, pois que seria por demais longo e fastidioso. Apenas nos ocuparemos, neste ponto, de indagar a razão do apoio e simpatia prestadas à causa do marquês de Cascais, não só pelos paulistas [48], pelos seus governadores e capitães-generais, como também pelo próprio rei, conforme se está vendo.

Ainda os anais da Câmara de S. Paulo de 1640 em diante

Os habitantes da Vila de S. Paulo foram sempre considerados como gente independente: eram um povo destemido, heróico, cônscio do seu alto valor, da sua audácia e intrepidez, da qual já tinham tantas vezes dado provas, nas suas famosas bandeiras através do vasto continente americano.

"A classe dirigente paulista no princípio do século XVIII, os principais da terra (os sertanistas de outrora) eram nesta época pessoas graves, que já tinham o que perder, desejosos de fidalguia, venerando o seu rei e acatando os representantes dele"... (contribuição para a Hist. da Capitania de S. Paulo, pelo dr. Washington Luís).

O povo paulista que, na época da criação da Capitania de São Paulo, venerava o seu rei e acatava os seus representantes, era ainda o mesmo povo brioso e enérgico e às vezes violento e insofrido, que tantas vezes deu que falar de si, nas reuniões tumultuosas que promovia sempre nas praças públicas e no recinto da Casa do Conselho, conforme relatam os anais da Câmara paulista e os demais documentos, desde 1640 - quando o povo de S. Paulo aclamava seu rei, a Amador Bueno da Ribeira; quando, ainda em 1640 e 1641, a propósito da "liberdade dos índios", se amotinava contra os missionários jesuítas, repelindo as bulas do Santo Padre; protestando e impedindo então que viesse à Vila de São Paulo, em 1660, o governador geral Salvador Corrêa de Sá e Benevides, dizendo "a grandes voes e alaridos, que não queriam o dito Salvador Corrêa de Sá e Benevides nesta vila e que - se trazia algumas ordens de Sua Majestade, que de á (de Santos, onde se achava) as mandasse aos ditos oficiais da Câmara, que eles, como leais vassalos os dariam a sua devida execução...".

O mesmo povo requeria também, nessa data, aos oficiais do Conselho, que "escrevessem ao dito governador para que não viesse a esta vila; com protestação de que vindo, se poriam em defesa e não seriam incursos em pena alguma". (Termo de Vereança - 2 de novembro de 1660).

A propósito de qualquer causa, que não estivesse de acordo com os seus interesses, como se está vendo, o povo de S. Paulo se amotinava. Mandava tocar rebate nos sinos de todas as igrejas e acudia em massa ao pátio da Casa do Conselho, armado de espadas e mosquetes, obrigando os vereadores a fazerem vereança, a aceitarem seus requerimentos e a lavrarem termo de todo o ocorrido, nessas tumultuosas reuniões, cujos termos eram assinados por todos os revoltosos.

São bem curiosos e interessantes tais termos de vereações, da Câmara de S. Paulo, dessa época, que bem definem o caráter e altivez do povo paulista. Muitas vezes, se os vereadores e os juízes não queriam comparecer ao toque de rebate dado pelos sinos, o povo os ia buscar em suas residências, ou no lugar em que se achassem, e os levava violentamente para a Casa do Conselho, a fim de "despacharem os seus requerimentos".

Esse povo, que assim agia, não era, como se poderá supor - a plebe ou a ralé. ra o que a Vila de S. Paulo tinha então de mais nobre e mais distinto, como se vê por este Termo de requerimento lavrado nos livros de vereanças, que tem a data de 23 de janeiro de 1693.

Havia em São Paulo nessa ocasião - o que era aliás muito comum nas outras localidades - uma verdadeira crise monetária! Pois o "dinheiro cunhado" que corria na praça não satisfazia às exigências do comércio miúdo. O povo, sem dúvida cansado de se queixar contra essa falta, resolveu, nesse dia, obrigar as autoridades a tomarem uma providência imediata. Vejamos, pois, o que relata o dito termo sobre essa ocorrência tumultuosa.

"Termo de Requerimento do povo sobre o dinheiro. - ... Perguntando os oficiais da Câmara, para que ali se ajuntava o povo, responderam que tinham elegido seus procuradores para tratar do que lhes fosse bem, ... e que queriam eles (o povo) que crescesse, do valor todo o dinheiro miúdo, pela confusão que havia nesta Vila, de não haverem trocos... Ao que responderam os camaristas, que não podiam levantar o valor do dinheiro sem ordem expressa de Sua Majestade... Com esta resposta puxaram por armas, o povo, perdendo o respeito a todo o Senado, em termos de se botar a perder este povo... O Senado, coagido, lhes respondeu que aceitava o seu requerimento e que consultaria, com os prelados das religiões, e que só então se determinaria o que fosse conveniente etc. ...".

O motivo deste ajuntamento era fútil, para não dizer absurdo; porém, o mais curioso, é o começo da narração do fato, exarado no próprio Termo de Vereança, que diz: "Estando os oficiais da Câmara, debaixo de toda a quietação, fazendo vereança, ouviram tocar o sino, e acudiram, os juízes ordinários, a fim de prender um rapaz que tocava rebate nos sinos, e trazendo à Cadeia Pública preso, o dito rapaz, acudiu um grande concurso de povo, tomando armas na mão, contra a Justiça, violentando, dizendo que era o povo que havia mandato tocar (rebate) e que largassem o preso, e quando não - os matariam; tirando então armas ofensivas, assim espadas como armas de fogo etc." O que o povo queria, nesta ocasião, era apenas o que acima ficou transcrito.

Vejamos, pois, quem foram os promotores desta arruaça em S. Paulo, e que assinaram o termo referido: "- José de Camargo Ortiz - Manoel Lopes de Medeiros - Manoel de Avila - Domingos de Araujo - Simão Nunes de Siqueira - Estevam da Cunha de Abreu - Domingos Dias da Silva - Lucas de Camargo - José de Camargo - Manoel Brito de Souza - José de Lemos de... - Antonio da Rocha Pimentel - Domingos Freire Farto - dom João Rodrigues da Gama - Domingos de Amorim de Almeida - José de Souza Mathias Rodrigues da Silva - Francisco Cardozo Sodré - João de Camargo Pimentel - Fernão de Camargo das Neves - Manoel Ortiz - Domingos de Brito - Domingos dias - Sebastião Soares - Paulo Fernandes Boyto - Manoel Peres - Pedro Rodrigues - Manoel Bicudo Leme - Domingos Rios Moreira - Silvestre Gomes... - Francisco Fernandes Porto - Antonio Guerra Muniz - João Pais de Quadros - José Gomes - Diogo Peres da Gama - João Rodrigues Coelho - José Ortiz de Camargo - Francisco Corrêa de Lemos - Antonio de Siqueira Albuquerque - Francisco Corrêa de Sá - dom Simão de Toledo Piza (por força) - Bartholomeo Preto Moreira - Hyeronimo da Rocha Pimentel - Amador Bueno - João Velho, Salvador Bicudo - Amador Pereira de Avelar - Luiz Dias Cardozo - Antonio Dias Cardozo - Francisco de Camargo Santa Maria - Pedro Taques de Almeida - Pedro Ortiz de Camargo - Antonio Nunes de Siqueira e muitos outros...".

A lista de assinaturas é longa, e dela só destacamos as pessoas gradas e conhecidas, dessa época.

Era pois, como se está vendo, a nata da nobreza paulista que subscrevia esse termo de requerimento. Eram homens graves e circunspectos - como Pedro Taques de Almeida, Antonio Nunes de Siqueira e Amador Bueno -, os que tomavam parte nesses comícios assim violentos, e não se recusavam nem se desdouravam em assinar tais requerimentos.

O único desses fidalgos que assistiu constrangido a esse ajuntamento, sendo afinal forçado a subscrever o dito documento, foi - como se verifica da sua assinatura - o juiz de órfãos, d. Simeão de Toledo Piza, pois que, na sua qualidade de juiz, não podia proceder de outra forma.

Nestes Termos de requerimentos do povo, lavrados nos livros de vereança da Câmara de São Paulo, é preciso que se note: ninguém "assinava de cruz", o que demonstra ainda que o pessoal que acudia aos toques de rebate ao alarme dado pelos sinos, para tais manifestações populares, eram sempre os "homens bons, e a nobreza", aptos para as representações e "cargos da república".

Estes atos assim violentos, se atendermos aos costumes e ao meio da época em que se reproduziam, não devem desdourar nem deprimir o brio do povo paulista, o qual poderá ser qualificado de rude e violento, mas não deixava, entretanto, de exprimir assim a franqueza, a sinceridade com que pautava as normas de sua conduta. Podiam os paulistas ser qualificados de violentos e às vezes até de cruéis em suas ações, mas eram, entretanto, francos, honestos e sinceros e isto constituía uma das principais qualidades da nobreza e da firmeza do seu caráter.

Nestas "arruaças" promovidas pelo povo de São Paulo, nesta época, a que mais acentua o traço de honradez, que o caracterizava, é, sem dúvida, como pondera o dr. Washington Luís, aquela arruaça ou aquele motim popular contra o ouvidor da Capitania, Sotto Maior, obrigando-o a fugir da vil por ter faltado ao respeito a uma menina paulista, com quem depois teve de casar.

Os habitantes de São Paulo, desde os primórdios dessa vila, foram sempre muito ciosos dessa e de outras prerrogativas que tanto abonavam a sua conduta moral. Não admitiam na referida vila os forasteiros de má nota, nem os vadios, vagabundos e linguarudos os quais eram intimados a deixar, em 24 horas, a vila e as fronteiras do município, isto é, as dez léguas em torno, que constituíam então o termo e a jurisdição de cada vila ou município.

Prestavam também o seu apoio e obediência às autoridades e puniam severamente aos delinqüentes quando, isoladamente, alguém se pronunciava contra elas. como, por exemplo, o fato do "desacato contra o desembargador dr. Manoel Jacome Bravo, em 1614", do qual se mandou abrir devassa para saber  quais haviam sido os autores "que atiraram flechadas à janela do dito desembargador, a fim de se lhes castigar, como merecem quem tais coistas cometeu" (Termo de vereança - 5 de fevereiro - 1614).

O "paulista" admitia, e achava razoáveis mesmo, os pronunciamentos populares contra quem quer que fosse, uma vez, porém, que tais manifestações hostis fossem feitas às claras, com a responsabilidade de suas próprias assinaturas; mas não permitia que, às ocultas, traiçoeiramente, se praticasse a menor ofensa a uma autoridade constituída.

Um desses "tipos de paulista opulento", que tanta fama gozou na sua época e foi considerado como "homem de grandes cabedais e muita liberalidade" pelos cronistas paulistanos, é sem dúvida o padre dr. Guilherme Pompêo de Almeida, natural de S. Paulo e falecido em Parnaíba, a 7 de janeiro de 1710, época em que teve início a Capitania de S. Paulo.

Embora a lendária e fabulosa riqueza desse potente paulista esteja hoje reduzida às suas reais proporções, pelas investigações que o exmo. sr. d. Duarte Leopoldo, arcebispo de São Paulo, acaba de fazer, para o seu opúsculo As Capelas de Araçariguama e seus fundadores, não deixam, entretanto, de ser ainda reconhecidos bem avultados os cabedais que deixou esse Creso paulista, adquirindo no comércio das minas de ouro da Capitania de Itanhaém: Iguape, Paranaguá e Minas Gerais.

O sr. dr. Affonso de E. Taunay, que também se ocupa deste notável paulista - Guilherme Pompêo - com importantes subsídios inéditos, diz o seguinte: "Agricultor e criador opulento, assistiu o padre Pompêo aos primeiros movimentos de formidável rush paulista para o ouro, a que se deve a descoberta e o povoamento do solo de Minas, o território imenso dos Cataguazes. sem deixar Parnaíba, associou-se Guilherme Pompêo a estas entradas do sertão, fazendo-se banqueiro dos que partiam... Compreendeu logo que os proventos do ouro nunca são para os mineradores e fez João Pinto (seu associado) voltar por vezes às lavras, levando grandes pontas de gado, ou conduzindo carregamentos, que os mineiros, separados da civilização pelo deserto, sofregamente adquiririam por preços altamente remuneradores... Negociava Pompêo cem dezenas de artigos: panos, linhos, chapéus, calçados, drogas, remédios, ferragens etc. ...".

"Tinha oficinas para fabricar toda a sorte de artigos e ferramentas de que usavam os mineiros; mantinha vasta correspondência com diversas praças do reino, donde lhe vinham gêneros diversos e artigos de indústria. Uma das coisas, porém, que mais avultava no seu comércio era o movimento de dinheiro que pedia e dava, a juros, aos seus fregueses".

Como quer que seja, comenta criteriosamente dom Duarte Leopoldo, "Guilherme Pompêo era menos padre, do que negociante feliz, e ... tão feliz que chegou a ser, no escasso meio colonial, verdadeira potência financeira".

A publicação do seu borrador, ou livro de notas comerciais, feita pelo operoso dr. Affonso de Taunay, veio desvendar-nos a verdadeira fisionomia do Creso Parnaibano, cujas proporções, se bem avultam como legítimo caráter de paulista, desmerecem no brilho que lhe emprestaram as crônicas.

"O que mais impressiona, porém, nas operações comerciais do padre Pompêo, acrescenta o sr. dom Duarte, é a absoluta honorabilidade que o caracteriza: safamos contas; safei contas; estou pela sua verdade; ... deve-me o que disser;  - são expressões incompreendidas hoje que, antepostas à assinatura de um negociante, definem bem duma época e glorificam uma raça.

"Como subsídio para a história colonial e monumento dessa heróica geração de bandeirantes, mais vale o avariado borrador descoberto pelo dr. Taunay que o avariado sectarismo de imaginosos romancistas".

Outro tanto poderemos dizer, ao terminar este capítulo, dos "anais da Câmara de São Paulo": "Os documentos, os termos de vereança e de requerimentos, roídos pelas traças, na sua linguagem ingênua e pitoresca, porém sincera - caracterizam e definem mais a alma e o caráter paulista, dessa época heróica, que todas as crônicas e memórias históricas que até hoje se tem escrito.

Têm a singeleza, a simplicidade, das coisas que, na realidade, são grandes e imorredouras!

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Planta da Bahia de Paranaguá - 1790 em diante, indicando na Ilha do Mel, sob letra A, o ponto em que existia o marco da divisa entre as donatarias de Martim Afonso e de seu irmão Pero Lopes de Souza. Este mapa já foi publicado, pela primeira vez, na obra de B. CALIXTO - Capitania de Itanhaen.

Imagem inserida entre as páginas 196 e 197 da obra - Clique na imagem para ampliá-la


[47] O "termo de posse" das cinqüenta léguas da Capitania de S. Vicente (antiga Capitania de Santo Amaro) foi lavrado a 25 de fevereiro de 1714, em virtude da Carta Régia de 14 de abril de 1712.

[48] O vocábulo "paulista" é aqui aplicado aos moradores da Vila de S. Paulo.

Imagem: adorno da página 201 da obra