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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Ribeiro Couto - BIBLIOTECA NM
Rui Ribeiro Couto (15-Q)

Clique na imagem para ir ao índice desta obraUma das obras de Rui Ribeiro Couto é Histórias de Cidade Grande (Contos escolhidos), aqui transcrita em primeira edição digital, a partir do livro publicado em 1960 pela Editora Cultrix Ltda., da capital paulista, na série Contistas do Brasil. A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio pelo secretário Raul Christiano para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 180 a 186:

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Histórias de Cidade Grande

Ribeiro Couto

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Diário de Amor de um Moço Delicado

3 de maio.

Ah! desde ontem sou feliz: encontrei a criatura com que eu sonhava.

Meu ideal, em amor, era uma costureira romanesca. Eu aspirei sempre a viver um pedaço de vida boêmia como nos livros. Entretanto, que animaizinhos sem poesia as costureiras que apareciam no meu caminho. Desde estudante que procuro essa mulher ideal. Tudo inútil. Durante anos a fio passeei pelas ruas desta grande cidade a melancolia do meu coração ermo.

E ontem... Um delicioso acaso!

Eu passava, às sete horas da noite, pelo "Grande Armazém de Modas", àquela hora a fechar-se, quando uma mulher apressada, saindo de uma porta entreaberta, pisou-me os pés. Amparei-a, porque ia caindo, com o tropeço inesperado. Ela voltou-se pedindo-me desculpas e agradecendo-me, a mostrar os dentes brancos.

- Eu é que lhe peço desculpas, senhorita.

- Ao contrário, eu - respondeu com vivacidade.

- Eu, ao contrário - insisti.

- Eu sim senhor. Se não fosse a minha pressa!

E fomos andando. Ela achou-me natural. Não fez o gesto impertinente de parar, esperando que eu seguisse, como tantas outras de quem tenho procurado aproximar a minha inquietação sentimental. Disse-me até, sorrindo:

- O senhor é um moço delicado.

Simpatizou comigo. Então avancei:

- É solteira?

- Não.

- Casada?

- Não.

Só podia ser viúva, portanto. E estupidamente considerei:

- Nesse caso é viúva.

- Também não.

Parei, surpreso. Creio que ela me achou um pouco ingênuo, porque perguntou:

- De que se admira?

E soltou uma gargalhada. Pessoas que iam em nossa frente voltaram-se, felizes de ouvir um riso tão cristalino àquela hora suarenta em que iam, apressadas, tomar o bonde que as recolhesse ao lar longínquo.

Então, comovido, fi-la parar.

Estávamos em frente a uma vitrina de joias. Tomei-lhe das mãos, que ela abandonou nas minhas, e murmurei:

- Encontrei a felicidade.

4 de maio.

Desde as primeiras horas da manhã pus-me a rondar as largas portas do "Grande Armazém de Modas", ainda fechadas. Vi chegarem os primeiros empregados, que as abriram. Vi chegarem as caixeiras. Um pouco atrasada - foi a última - chegou a mulher que eu amo, amo porque em torno da sua cabeça construí o romance da felicidade boêmia.

- Bom dia.

Sorriu-me, dizendo esse bom dia. E passou rápida. Deixou no ar um aroma de carne moça que se esquiva...

8 de maio.

Venho de acompanhar Olímpia até casa.

Às sete horas eu já a esperava, de há muito, na calçada do "Grande Armazém de Modas". Ela apareceu:

- Bela surpresa!

- Obrigada.

- Sabe que não penso senão na senhora?

- Sei.

Espantei-me. Ela sorriu de alto. Íamos caminhando lado a lado, apertou-me as pontas dos dedos, como se quisesse magoar-me. E essa pressão transmitiu-me um calor confortante, nunca sentido.

- Posso acompanhá-la até em casa?

- Moro numa rua muito feia, no subúrbio.

No subúrbio! Era exatamente no subúrbio que eu sonhava um romance. Foi a minha vez de apertar-lhe as pontas dos dedos, com força...

Um bonde levou-nos à Central. No meio do atropelo do embarque tomamos o trem que devia deixar-nos no Sampaio. E, lado a lado, os meus olhos nos dela, eu repleto de uma felicidade muda, ela com um leve sorriso distraído, deixamos que o trem corresse pela planície poeirenta.

No Sampaio saltamos. Ela disse apenas:

- Aqui o senhor fica esperando o trem que passa para a cidade. Não quero que vá até perto de casa.

Desejei ser delicado e não insisti. Ao despedir-se, cravou os olhos negros nos meus e murmurou:

- Não sei porque o encontrei!

Ama-me.

19 de maio.

Já agora, quando ela deixa o trabalho, à noitinha, damos uma volta pela cidade, a bisbilhotar vitrinas. Estamos organizando o futuro ninho. Nossos projetos são lindos: habitaremos um chalé no subúrbio, talvez mais longe ainda, lá para o Engenho Novo. O que cobiçamos muito são certas mobílias de vime, para a sala de visitas e o terraço. Porque em nosso ninho tudo será leve e claro, entre as trepadeiras que se enredarão pelos caramanchões floridos, aromando a noite tropical.

10 de junho.

Venho da casa do meu amigo Viriato Vieira. Venho dos seus braços, entre os quais chorei. Ele me aconselhou os cabarés e as mulheres para entorpecer a imensa dor. Bem sei como são inúteis esses remédios!

... Olímpia tinha-me permitido acompanhá-la, esta noite, até a porta de casa. Eu não sabia com quem ela morava, nem se tinha família, nem que espécie de vida era a sua. Sabia só que não era solteira, nem casada, nem viúva. Podia eu, pois, ter dúvidas sobre a sua liberdade? Indiscutivelmente, Olímpia era uma moça livre. Trabalhava para se manter. Escondia, com certeza, alguma tragédia íntima.

Íamos pela ruazinha em que ela mora, no Sampaio. Ruazinha de subúrbio, mal calçada e poeirenta, com cachorros e crianças em algazarra. Íamos devagar, sonhando. E de repente aparece, surgindo de uma porta, uma senhora gorda, de enormes carnes balanceantes:

- Sua sem-vergonha, que é isso? Quem é esse sujeito? Compreendo agora a pulseira e o colar.

Parei, com o sangue gelado nas veias. Ela apertou-me a ponta dos dedos, disfarçadamente, com o seu modo habitual de exprimir uma solidariedade terna. Pulseira e colar? Eu não dera a Olímpia nem colar, nem pulseira. Seria outro, então. Traía-me. Olímpia me traía!

- Vamos, faça o favor de entrar. O senhor também.

Entrei, seguido de Olímpia e da velha. Entrei tonto, completamente tonto. Achei-me numa sala de visitas pobre, com um sofá de palhinha rustida, cadeiras velhas, um vaso com flores de papel ao centro de uma mesa redonda, um espelho oval numa parede e folhinhas de ano, brindes de fornecedores.

- O senhor sente-se.

Sentei-me.

- Eu me chamo Albina e sou a mãe de Olímpia. E o senhor?

- Minha senhora, afirmo-lhe...

- Mamãe, ele é um moço muito distinto. Você está sendo injusta.

- Bem, o senhor é um moço distinto. Neste caso, quais são as suas intenções?

As minhas intenções! As minhas intenções! Então, num arranco de energias, diante de Olímpia que abaixara a cabeça e da velha que quase me fisgava com todos os pelos do bigode eretos, resolvi ser cínico, resolvi mentir, sair de qualquer jeito da situação.

- As minhas intenções? Minha senhora: tenho a honra de pedir sua filha em casamento. Chamo-me Cláudio Pereira, sou auxiliar extranumerário do Serviço Geológico e Mineralógico do Brasil, tenho vinte e oito anos e possuo um diploma de farmacêutico.

Isso foi dito com altivez. A velha se impressionou pelo tom e principalmente pelo nome do meu cargo, realmente uma coisa pomposa: auxiliar extranumerário do Serviço Geológico e Mineralógico do Brasil. Ela devia ter imaginado funções deslumbrantes.

- Bem, vejo que o senhor é de fato um moço direito. No entanto, compreende que nós, embora pobres, prezamos a nossa honra. Antes de eu tomar todas as informações de que necessito, a seu respeito, não poderei dar-lhe o sim. Peço-lhe oito dias de prazo.

Levantei-me.

- Não quer se demorar um pouco? Tomar um café?

Não quis, naturalmente. Estendi a mão à velha, que a apertou com satisfação, sorrindo, mostrando dois caninos formidáveis na gengiva desdentada.

Olímpia continuava de cabeça baixa. Não dera mais uma palavra sequer. Acompanhou-me até à porta e, agarrando-me as mãos com violência, perguntou-me baixinho, com um hálito quente que me embriagou:

- Queres que fujamos?

- Para onde?

- Não sei, para onde quiseres.

- Adeus.

E caminhei rápido para a estação, onde o trem ia chegando já. Porque eu é que precisava fugir, iludir os sentidos, adormecer a memória... Quem lhe teria dado a pulseira e o colar?

25 de junho (Em Maria da Fé, E. de Minas Gerais).

Esta carta do Macário, meu companheiro de sala, é de enlouquecer. Acabo de recebê-la.

"Meu caro Cláudio.

Apareceu hoje aqui na Repartição uma senhora de idade, muito gorda, a perguntar aos contínuos pela tua vida, pelas tuas relações, se eras um moço digno etc. O caso produziu estranheza. Informaram-na de que havias partido para Minas, em licença, e ela fez um escândalo dos diabos.

- Eu logo vi que era um cachorro! Mas deixe estar! Boto o nome dele nos jornais!

Foi preciso muita diplomacia para ela se acalmar. O José Porteiro, rindo-se muito do caso, com aquela beiçama que nós lhe conhecemos, foi buscar imediatamente um copo de água para a velha.

Isso a pôs furiosa de novo. Então o pessoal perdeu a paciência e virou-lhe as costas. Ela saiu e, na rua, quase que ficou debaixo do automóvel do ministro, que ia passando.

Que embrulho foste tu arranjar: O ridículo do caso é imenso. Salva o teu nome, que está a afundar no humorismo acanalhante da Repartição em peso..."

Devo ir para mais longe? Para Goiás? Como será que se vai para Goiás?