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HISTÓRIAS E LENDAS DE S. VICENTE - CÂMARA
Berço da democracia americana (1)

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Embora certos estadunidenses se apropriem do patronímico "americanos", como se os demais povos das Américas não o fossem igualmente, e também se intitulem "campeões da democracia" (apesar das evidências em contrário encontradas em qualquer noticiário internacional da atualidade...), o fato é que o conceito grego de poder do povo (democracia) chegou ao Novo Mundo pela porção Sul do continente.

Foi em São Vicente que surgiu a primeira casa legislativa das Américas, já que nos demais países (então colônias) a possibilidade da população decidir sobre seus destinos só surgiria pelo menos um século depois. Mesmo nos Estados Unidos da América, o instituto do voto só apareceria na época da Declaração de Direitos, em 4 de julho de 1776.

Este discurso do historiador brasileiro Tito Lívio Ferreira (proferido em 1964) foi incluído na obra Poliantéia Vicentina, organizada em 1982 (nas comemorações dos 450 anos da fundação de São Vicente) por Fernando Martins Lichti e publicada pela Editora Caudex Ltda., de São Vicente/SP:


Casa da Câmara e Cadeia, na São Vicente de 1729
(óleo de Gertrudes Hourneaux de Moura Fernandes)
Imagem: reprodução do livro Presença da Engenharia e Arquitetura - Baixada Santista,
Livraria Nobel/Empresa das Artes, S.Paulo/SP, janeiro/2001

São Vicente
Berço da Democracia nas Américas

Tito Lívio Ferreira

O que representa a Fundação de São Vicente?

Representa o dia 22 de janeiro de 1532, quando Martim Afonso de Souza, que tinha poderes quase reais atribuídos por D. João III, presidiu a primeira eleição popular e instalou a primeira Câmara Municipal das Américas, que é a Câmara Municipal de São Vicente!

Senhores: que representa, então, este núcleo onde se realizou a primeira eleição popular na América? Se olharmos para o passado com a visão do presente e esperança no futuro, vemos que aí está a primeira célula de liberdade.

Que é Município? - É uma república municipal. Quando Júlio César conquistou a Grécia, 147 anos a.C., ficou ele encantado com o funcionamento da República Ateniense, que era uma república municipal.

A Grécia era formada por uma federação de repúblicas municipais das quais Atenas era o modelo. Atenas presidida por Péricles.

Então, Júlio César, voltando a Roma, deu à República Romana uma amplitude nacional, para empregarmos expressão moderna, fazendo com que a república municipal tivesse amplitude maior. Todos sabemos como fracassou a idéia de Júlio César.

E Augusto, ao ser Imperador, compreendeu o valor da república municipal. Então, o Império é o laço que une as repúblicas munícipes, os municípios romanos.

Com a queda do Império Romano, no século V, não desapareceu a instituição municipal, porque em todas as províncias do Império Romano existem esses municípios, essas células de liberdade municipal, do Danúbio ao Atlântico, até as vertentes do Mar Mediterrâneo, do Mare Nostrum dos Romanos.

Então, vamos encontrar esta república municipal na Itália, na Dácia, hoje Romênia; nas Gálias, hoje França; na Ibéria, hoje Portugal e Espanha, para ficarmos apenas na civilização latina. Quando se verificou a queda do Império Romano, no século V, não quer dizer que essa instituição municipal tivesse desaparecido. Continuou em estado de latência, vamos dizer assim.

No século IX, quando essas províncias do Império Romano estão completamente desagregadas, elas procuram - e vou usar da expressão que todo mundo gosta de empregar modernamente - a sua autodeterminação. São províncias do Império Romano, porque não existe ainda a palavra Europa para designar o continente que hoje tem esse nome.

Então, aquelas províncias procuravam um meio de se transformar em Nações. Então, no século IX, na Lusitânia, ressurge o "municipium" com o nome de "concilium".

Senhores, a Europa falou durante milênios a língua latina. É preciso que se saiba que, do século I ao século XII, aquilo a que hoje chamamos Europa - e que não existia com essa denominação - falou apenas a língua latina, porque essa era a língua falada em todas as províncias romanas.

E é interessante que neste momento eu vos recorde que romanos eram Jesus, Pedro e Paulo. Romano foi Santo Agostinho que acabei de citar, nascido no Norte da África. De forma que, dentro do Império Romano, estas províncias começaram o trabalho que hoje chamamos de autodeterminação.

Na Lusitânia surgem os concílios - reunião de moradores, de vizinhos, eleitos pelo povo para cuidar dos interesses municipais.

Quando Afonso Henriques cria a monarquia portuguesa, no século XII, em 1140, foi esta mesma monarquia o laço que uniu estas repúblicas municipais. Trata-se de instituição puramente romana.

E de 1500 a 1532 nós vemos como os reis de Portugal olham atentamente pelo desenvolvimento daquela que ainda é a Província de Santa Cruz. Dentro desta orgânica política que se chama monarquia, a Província de Santa Cruz é uma província da monarquia portuguesa.

Em 1519 - prestem bem atenção, senhores -, em 1519, 19 anos depois da viagem de Pedro Álvares Cabral, publicou-se em Lisboa um mapa assinado pelo cartógrafo Lopo Homem, e nesse mapa já figurara todo o litoral brasileiro, da Foz do Rio Amazonas ao estuário do Prata.

E ao longo desta costa de quase 9 mil quilômetros já estão inscritos 150 nomes de acidentes geográficos, rios, cabos, ilhas, golfos, penínsulas.

Martim Afonso partiu de Lisboa, em dezembro de 1530, auxiliado para uma permanência de 2 anos no litoral brasileiro. De tal modo que sua esquadra, pelo roteiro traçado pelo seu irmão Pero Lopes de Souza, que fez o Diário de Navegação, podemos acompanhar a sua viagem de Lisboa até o estuário do Rio da Prata e de regresso com a sua chegada a São Vicente, quando, no dia 22 de janeiro de 1532, Martim Afonso de Souza preside, na povoação de São Vicente, a primeira eleição popular realizada nas Américas - eu disse, senhores, nas Américas, quero dizer, América do Norte, América Inglesa, América Espanhola e América Portuguesa - e instalou a primeira Câmara Municipal das Américas.

Quando digo, senhores, que a São Vicente cabe a honra de ser o berço da Democracia Americana, digo-o consciente daquilo que estou falando, porque é o berço da Democracia em toda a América, desde o Pólo Norte ao Pólo Sul.

A América do Norte, senhores, de 1620 até 1778 pertenceu à Nova Inglaterra, à América Inglesa, com um conjunto de colônias. Esses colonos ingleses não conheceram sequer um sistema de eleição até a data de sua independência.

Na América Espanhola, que abrange desde as fronteiras do México até o Estreito de Magalhães, havia um processo parecido com as Câmaras Municipais luso-brasileiras - era o cabido. Mas os elementos desse cabido não eram eleitos pelo povo, eram designados por aqueles que terminavam o seu mandato. Portanto, o povo não estava presente, não tomava parte, ignorava completamente como era administrada a sua célula municipal.

No Brasil, porém, desde 22 de janeiro de 1532, o povo tomou parte ativa nas eleições do Conselho, hoje Câmara Municipal. É, pois, o povo que comparece e vota, porque há um código eleitoral. E esse código eleitoral é vigente no Reino de Portugal, nos Estados do Brasil, em Angola, em Moçambique, na Índia Portuguesa e em Macau porque há um conjunto de leis que se chama Ordenações do Reino e que eram a Constituição da Monarquia Portuguesa. Hoje temos a Constituição da República como já tivemos a Constituição do Império.

De forma que nas Ordenações do Reino estavam capituladas todas as leis referentes ao Código Eleitoral: como eram eleitos os Vereadores, como funcionavam as Câmaras, o tempo de duração de cada legislatura.

Senhores, não houve eleições nas Américas inglesa e espanhola até a data da independência desses povos. No Brasil, ao contrário, temos uma tradição de democracia desde 1532! E, para maior acentuar este fato: todos conhecem a Revolução Francesa de 1789. Depois de 14 de julho, em França, os convencionais exigiram do Rei Luiz XVI eleições, porque na França não se faziam eleições. E Luiz XVI mandou percorrer os arquivos franceses para saber como tinha sido feita a última eleição, em 1630! Depois de 1630 não houve mais eleições na França até o tempo mencionado. E havia eleições em Portugal e no Brasil! De forma que, senhores, a São Vicente cabe não apenas o dístico que está em seu brasão de armas com o leão rompante de Martim Afonso - Cellula Mater. Cabe-lhe por direito, cabe-lhe historicamente, o título de CELLULA MATER DA DEMOCRACIA AMERICANA.

Esta Câmara Municipal, que se acha tão bem representada por um presidente moço, nesta data em que se comemora o 432º ano de sua fundação, sendo, como realmente é, a primeira Câmara Municipal americana, deve, precisa colocar debaixo da inscrição latina - Cellula Mater - a expressão: DA DEMOCRACIA AMERICANA - democracia americana que não é brasileira, que não é espanhola, que não é portuguesa, que não é inglesa, que não é estadunidense. É uma democracia romana. Porque nós viemos de Roma. Nós somos filhos de Roma. Provimos de lá através do que chamamos Direito Romano. Não precisava que o Império Romano desse ao mundo outra coisa para ficar eterno senão o Direito Romano.

É o Direito Romano que encontramos nas Ordenações do Reino até 1822. É o Direito Romano que encontramos na primeira Constituição do Império.

Coisa interessante: noventa e cinco anos depois de 1822, a legislação civil portuguesa vigorava no Brasil e vigorou até 1916, porque o nosso Código Civil, de 1917, termina com estas palavras: "ficam revogadas as Ordenações do Reino". Quer dizer que noventa e cinco anos depois da Independência do Brasil é que vamos ter um Código Civil Brasileiro. Mas, que é esse Código Civil Brasileiro senão as Ordenações do Reino? E que são as Ordenações do Reino senão o Direito Romano? Isto tudo, senhores, é para que vejamos a força do Direito no seio da civilização.

Em 22 de agosto de 2006, o jornal santista A Tribuna publicou, nas edições impressa e eletrônica:


Quadro no Instituto Histórico reproduz a primeira eleição
Imagem: reprodução, publicada com a matéria

Terça-feira, 22 de Agosto de 2006, 07:45
HISTÓRIA
Primeira eleição política completa 474 anos

Da Sucursal

São Vicente comemora, hoje, 474 anos da primeira eleição das Américas. Em 22 de agosto de 1532, sete meses após a chegada de Martim Afonso de Sousa, ocorreu a formação da primeira Câmara, na época chamada de Conselho. A escolha foi feita somente pelos chamados "homens bons", figuras de prestígio da vila. Passado quase meio século, o Legislativo vicentino conta com 15 vereadores, escolhidos a cada quatro anos, através de eleições diretas.

A importância do fato é destacada pelo presidente do Instituto Histórico e Geográfico de São Vicente (IHGSV), Fernando Lichti, que aos 81 anos também é o mais antigo vereador da Cidade.

"Como parâmetro do pioneirismo da democracia brasileira, vale lembrar que até 1778, na América do Norte, os colonos ingleses não conheciam sequer um sistema de eleição", comenta Lichti.

E prossegue o historiador: "Enquanto o processo eleitoral ocorria regularmente no Brasil, a França, por exemplo, não teve eleições durante 159 anos (de 1630 a 1789), o que só foi modificado com a Revolução Francesa". Apesar do pioneirismo, o Conselho, ou Câmara, era formado apenas por cidadãos que tinham algum tipo de prestígio na recém-fundada Vila de São Vicente. "Realmente, eram homens de evidência", concorda Lichti, explicando que essas eram pessoas que se destacavam ou pela atividade profissional ou posição social.

Eram nomeados, de maneira geral, dois juízes ordinários, dois vereadores e um procurador. O número variava entre as vilas do Brasil. O mandato durava um ano, sendo que as eleições aconteciam de três em três anos - eram escolhidos os membros sucessivos para os três mandatos e a reeleição era proibida por lei.

Pé do ouvido - A primeira eleição das Américas em nada lembra o sistema eletrônico e moderno que dentro de 39 dias milhões de brasileiros usarão para escolher seus representantes. Conforme conta o presidente do IHGSV, o método utilizado era o "pé do ouvido".

"O ouvidor ficava no Pelourinho e os homens bons - cerca de dez ou 15 - vinham declarar a sua escolha, falando no ouvido do ouvidor", afirma Lichti. "O ouvidor tinha que ser um homem muito correto, porque senão ele poderia deturpar o resultado," observa.

Já com relação aos trabalhos desenvolvidos pelo Conselho, segundo o historiador, eles eram praticamente administrativos, já que não existiam eleições para escolha de cargos executivos. "Um de seus membros exercia a função de executivo, não havia outra eleição".

A informação de Lichti é confirmada por outro historiador, Marcos Braga, do Centro de Documentação e Memória de São Vicente. "A Câmara era simultaneamente Legislativo e Executivo. Não existia a figura do prefeito," diz Braga.

Documentos - Segundo Braga, a maior parte dos documentos da época foi perdida ou destruída. Daí a idéia de a Prefeitura criar um local que reúna um acervo sobre a história da Cidade, inclusive contando com doações.

O advogado e professor de História Antonio Teleginski possui uma edição das Ordenações do Reino datada de 1858, onde é possível encontrar todas as atribuições dos chamados oficiais. O procurador tinha a função de verificar o andamento das causas públicas. Os juízes ordinários tinham como obrigações mandar prender e soltar, resolver processos de morte, injúrias, atentados ao pudor e falsificação de moedas.

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